Amigos comuns vieram dizer-me que, quando a noite cai, tu sais de casa e vais, rente ao Tejo, percorrer os caminhos que, durante tanto tempo, foram os nossos.
Dizem que estás velho, magro, curvado e que te vêm a carregar sacos, livros, pequenas peças que terão sido minhas. Dizem que caminhas lentamente ao longo das paredes gastas das quais, à noitinha, saem vultos esguios e sombrios, dizem que os cães ladram à tua passagem e que tu segues, silenciosamente, nem dás por eles, nem dás pelos amigos com quem te cruzas.
Dizem que, quando a noite cai, e apenas as luzes dos navios que cruzam o rio ou a luar em noites de lua cheia ilumina esta rua desolada, tu passas como um fantasma, e, dizem, parece que, por vezes, te ouvem a cantar.
Amigos comuns contam-me, com tristeza, que nem pareces tu, que quase não falas, quase não sais, quase não te arranjas. Dizem que por vezes te abeiras do rio e ali ficas olhando o rio negro quase como se tentasses ver a tua imagem nas águas espelhadas. Dizem que, por vezes, te sentas, livros e sacos e demais recordações aos teus pés, acendes um cigarro e ali ficas, distante, vendo o fumo elevar-se no ar. Dizem que, no fim, apagas o cigarro nas mãos, como se fosse natural, como se nem sentisses dor.
Dizem-me isso e eu não reconheço nesse homem o homem que tu foste.
Dizem que, se te quiser ver, é ir ali ao cair da tarde, quando os gatos recolhem às ruínas mágicas, quando os pescadores abandonam os cais, quando o rio bate nas muralhas e esse é o único som que se ouve, que, nessa altura, tu passas por ali e já não se sabe se vais vivo, se vais morto. E dizem que, por vezes, se alguma gaivota, por acaso, por ali passa, te ouvem a gritar o meu nome.
Mas eu peço que não me contem, não quero ouvir, prefiro nem saber. Nem quero pensar nisso.
É que, sabes, se eu lá for é para te trazer para casa porque eu não passo sem ti, porque te amo como uma louca, porque já nem me lembro porque me zanguei contigo, porque me quero esquecer do dia em que jurei que te ia esquecer, porque quero esquecer o dia, tão longínquo, em que te vi e virei a cara para o outro lado, porque quero esquecer o dia em que bateste aqui à porta e me viste, sorridente, com um outro homem. Sei que um dia, antes que seja tarde demais, vou lá ter contigo, vou dizer-te que tu, só tu, és o meu amor e que a tua casa, meu amor, sou eu.
[Logo abaixo do belo poema de Luís Pedroso, poderão encontrar uma belíssima interpretação ao piano de uma inesperada intérprete de Prokofiev - venha comigo, vamos ouvir.]
No Ginjal, mesmo rente ao Tejo, homem ao cair da noite |
Carrego entre os dentes um alfinete
com a espessura dos teus cabelos
e passo tranquilo entre os pingos da chuva.
Dispo-me em frente ao espelho
e com a ponta dos dedos em chamas
toco ao de leve no vidro as minhas mãos.
Toco o meu avesso.
O meu vulto caminhando e cantando
através de um espelho liquefeito.
Estou de partida para lugares inacabados.
Pressiono com a mão direita intensamente
o peito esquerdo e sinto a máquina.
Funciona.
Viva.
['Declaração académica' de Luís Pedroso in criatura]
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