Não tens mundo, dizias-me. Encolhia-me, eu, encostado à parede na beira do cais, olhando o rio e os barcos que nele buscam outros mundos.
Não tens mundo, tantas vezes o ouvi que quase acabei convencido.
Mas, no fundo de mim, sabia que não tinhas razão.
O mundo para mim é o que vejo e o que sonho e as palavras que digo em silêncio e que constroem caminhos que me levam onde nunca fui. Mas nunca fui capaz de to dizer. E tanto que queria.
De todas as vezes que percorri estes caminhos, sozinho, sonhador, olhando as asas dos pássaros e as velas dos barcos, pensava que um dia te iria dizer que tenho mundo, sim, um mundo muito puro, muito vasto, sem limites, sem medos.
E esse dia chegou, foi hoje: hoje enchi-me de coragem. A porta estava aberta, a escada escura subindo na direcção da luz e, ao fundo, a buganvília em flor, vibrante, cor de fogo. Subi. Devagar. Coração numa ânsia. Relembrei todas as palavras com que, ao longo de anos, fui enchendo todo o espaço do meu imenso mundo.
Depois sentei-me no último degrau e fiquei a olhar o rio lá em baixo. Esperei por ti até ser noite. Vi o sol afogar-se no rio, em fogo. Tive vontade de me atirar, em queda livre, despenhar-me (na esperança que aparecesses para me salvar).
É outono e eu ainda espero por ti. Quero que entres no meu mundo.
Esperarei o tempo que for preciso. Até ao fim dos tempos, até ao fim do mundo.
[Abaixo da buganvília que espera no cimo da escada, temos um poema de Armando Silva Carvalho e, a seguir, Kate Aldrich, uma grande intérprete, traz-nos Carmen de Bizet]
Escada numa casa arruinada no Ginjal |
Entrego estes frutos minerais
tardios.
Envolvo numa sombra a mão
que mos recebe.
A isso chamo eu mundo.
Entrego mais e mais, amei falsificando,
e ajeito o pescoço à lâmina
dos dias.
Com os olhos bem abertos abarco
toda a queda.
Eu sei, é o outono.
[Poema da página 34 de Armando Silva Carvalho in Canis Dei]
Que melhor do que cair no Outono sobre um tapete de folhas?
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