Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 outubro, 2013

Há vozes onde se espelha a vastidão dos séculos


Pelo batimento do meu coração percebo que talvez tenha passado por aqui aquele pelo qual ele tanto bate.

Há quem diga que no peito tenho uma ferida, sangue escorrendo, silêncio, um doloroso vazio. Não é verdade. Dentro de mim tenho um coração fremente, saudoso, é certo, mas ansioso. Ponho a mão no peito e sinto-o, quase o ouço, peço-lhe que se aquiete. Tenho vontade de lhe dizer que o dono já vem.

Por aqui percorro estes caminhos, procuro nas águas marcas de quem por aqui passou, pegadas, palavras esquecidas, procuro nas paredes sombras, restos de abraços, umas letras riscando a superfície. Talvez descubra algum fiapo que me leve até aquele de quem um dia fui tão próxima. Quem tão pouco tem, a qualquer coisa se agarra com esperança.

De dentro das casas em ruínas vêm suspiros, respirações, sons inesperados. Talvez sejam gatos amando-se na noite, talvez sejam apenas sombras procurando os corpos de onde se desprenderam. Por vezes detenho-me. Tento perceber que sons são aqueles mas depois afasto-me e quase corro, tenho medo, não sei que vultos são estes, que vozes são estas que vêm de tempos muito antigos, que escondem segredos sem perdão. Mas volto sempre: pode ser que um dia reconheça a voz daquele de quem o meu coração tantas saudades tem.




[Abaixo dos reflexos e das sombras do cais rente ao Tejo, um poema de José Alberto Oliveira deixa um rasto de inquietação que atordoa o coração e, logo a seguir, estreia-se uma grande intérprete, Cecile McLorin Salvant. É o jazz de volta ao Ginjal.]




O Ginjal à noite, o cais dos cacilheiros



                                                   Há vozes onde se espelha
                                                   a vastidão dos séculos
                                                   e os segredos mais subtis
                                                   da Natureza; há sintomas,
                                                   sinais, pégadas nos caminhos
                                                   do deserto, que evocam
                                                   inquietações tão fundas
                                                   que se corre o risco de ficar
                                                   atónito, a tropeçar na pauta
                                                   de uma história, que se teima
                                                   em não esquecer. Consegue-se,
                                                   então, ouvir a pausa que separa
                                                   os batimentos do coração.


['Semiologia (para o António Barahona) de José Alberto Oliveira in Telhados de Vidro, nº18]

2 comentários:

  1. Suspender a vida entre dois batimentos, um intervalo na esperança de recuperar o tempo.

    Abraço

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  2. As vidas infelizes dão muitas vezes fantásticos personagens. Mas é melhor que sejam mesmo apenas personagens porque, suspensões da vida assim, na vida real, dão geralmente vidas muito sofridas.

    Quando me ponho na pele de tristezas assim quase fico triste de verdade, de tal forma a solidão é avassaladora (mesmo que não passe de ficção).

    Um abraço jrd!

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