Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 outubro, 2013

Deus vive só e eu sou o único que toca a sua infinita lágrima


Caminho sem saber para onde vou, os caminhos deixaram de levar a clareiras, caminhamos e parece que estamos a afundar-nos num labirinto infecto. No meio desta solidão, olho uma parede que parece sorrir. Mas pode uma parede sorrir, Deus meu?

Olho melhor. Uns olhos abertos espreitam-me de trás de uma janela. Mas são uns olhos que não pertencem a um corpo. São uns olhos colados a um vidro. Mas o que poderão ver uns olhos que não estão ligados a um coração, meu Deus?

Continuo, pois, sozinha. Alguém desenhou um sorriso numa parede em ruínas mas a casa continua fechada, vazia, triste. Em vez de um sorriso, deveria ter sido desenhada uma lágrima. Uma lágrima escorrendo pelas paredes, pelos rostos do meu triste país, pelo meu rosto.

Termino as minhas perguntas com um grito para o vazio, mas em vez de vazio eu digo deus. No fundo eu gostava que houvesse um deus que nos pudesse salvar. No entanto, nenhuma voz me responde. Apenas as cordas que amarram os navios ao cais gemem mas nos gemidos eu não ouço nenhuma resposta, apenas lágrimas, mais lágrimas. 

Não sei onde está o deus em que tanta gente acredita que não responde aos nossos lamentos nem cala os demónios que as trevas vêm vomitando sobre o meu país. Não sei.

Podia rezar mas não sei rezar. Limito-me a tentar tocar a lágrima de deus, a sua infinita lágrima.

Onde estás deus meu que não secas as nossas lágrimas? 



[Abaixo da parede que sorri, temos mais um das belos e simples poemas de Mia Couto. A seguir temos um grande momento: duas mulheres com grandes vozes interpretam Norma de Bellini]



Janela e parede no Ginjal



                                                 Deixei de rezar.

                                                 Nas paredes
                                                 rabiscadas de obscenidades
                                                 nenhum santo me escuta.

                                                 Deus vive só
                                                 e eu sou o único
                                                 que toca a sua infinita lágrima.

                                                 Deixei de rezar.

                                                 Deus está numa outra prisão.



['Versos do Prisioneiro (1) de Mia Couta in 'idades cidades divindades']

2 comentários:

  1. Não acredito. Mas também não creio que Deus seja prejudicial, apenas penso que é inútil pedir a sua ajuda.

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  2. Pois é, jrd, é dentro de nós que temos que arranjar criatividade e energia para sairmos do buraco negro em que caímos.

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