Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 dezembro, 2011

Ainda me atiro à vida desafiando o eterno sem rede - e assim quero continuar em 2012. Que tenham vocês também um belo 2012, um ano que permita todas as vossas ilusões, que vos permita ser muito felizes.

  
Eu era uma menina que gostava de brincar na rua, de andar na rua até ser noite. A grande aventura era brincar de noite na rua. Havia uma liberdade que me era ainda desconhecida, havia uma magia nas luzes amarelas que mal iluminavam a rua, uma magia que eu, então, apenas intuía. Brincava desafiando o medo, escondia-me desafiando os seres nocturnos que poderiam saltar para me amedrontar, e conquistava o meu espaço, a minha segurança.

Ainda hoje, quando posso andar à noite, sob a luz escassa, em jardins por onde passeiam também fadas e duendes, sinto o mesmo - um medo indefinido, uma atracção aliciante, uma vontade de fixar dentro de mim as imagens inventadas que se formam à minha vista.

A criança que eu fui, curiosa, aventureira, destemida, desafiadora e, também frágil, e também sonhadora, a menina que se deslumbrava perante a beleza da rua, dos jardins, das estrelas, da lua, a menina que se deliciava com o sorriso no rosto dos outros ainda está dentro de mim. Todos os dias essa menina convive comigo e, de todos os seres que me rodeiam e que me habitam, é a essa menina que eu dou mais ouvidos, é ela que comanda a minha vida.

Essa menina que adorava correr, que adorava correr em descidas sentindo-se acelerar até quase sentir que não conseguia parar, a menina de cabelos ao vento, a menina que queria ver estrelas candentes, a menina que tudo queria, que tudo amava - essa menina ainda sou eu.


Que 2012 continue a permitir-me guardar dentro de mim, intacta, a criança que fui e sou, que seja uma ano muito bom. E, se o desejo para mim e para os meus, desejo-o também para vocês. Que tenham todas as razões para serem felizes. Construam as vossas próprias razões. Não as deixem passar ao vosso lado. Procurem-nas. Sejam felizes. Em 2012 e em todos os anos que se seguirão.



[E, claro, para encerrar 2011 e abrir 2012, tinha que aqui ter uma ode à alegria e, estando nós a encerrar a semana de Beethoven, teria que aqui vos oferecer o final da 9ª sinfonia - para vos desejar um 2012 muito alegre!]

Jardim junto ao Tejo, em Belém - de noite


                                      Ainda me atiro à vida
                                      desafiando o eterno
                                      sem rede, porque não há
                                      e verdadeiramente não houve
                                      e o pouco dinheiro
                                      poupado para a idade
                                      avançada do tempo gastei.

                                      Volto à ilusão plena
                                       da liberdade da essência
                                       e zango-me completamente
                                       com o absurdo de ter
                                       trabalho para sustentar
                                       a criança que me habita
                                       indo e vindo
                                       digo-lhe:

                                       porta-te bem
                                       criança do meu corpo
                                       sossega o ímpeto do desejo
                                       da luz que não verás
                                       a não ser na ilusão até ao fim
                                       brinquedo nas minhas mãos
                                       enquanto viver.


                                       ('Ir & Vir' de Emerenciano in 'Ir & Vir)
                            

Beethoven - Leonard Bernstein e a Orquestra Filarmónica de Viena interpretam a Ode à Alegria (final da 9ª Sinfonia)





30 dezembro, 2011

Era já noite mas eu corria, corria cegamente pela página fora

 
Vou levada pela aragem fresca que vem do rio. Aos poucos as pessoas vão rareando. É quase noite, daqui a instantes já é mesmo noite e eu já estou sozinha. Passam pequenas embarcações iluminadas no rio, riscos de luz atravessando a escuridão com cheiro a maresia.

Percorro esta rua e não sei o que procuro. Talvez um rosto que saia do escuro, talvez uma voz que suba do rio, talvez um corpo nu esperando por mim no fundo de um veleiro, talvez uma luz, talvez.

E, então, vejo que sob os meus pés começam a nascer palavras. Emocionada detenho-me. Um caminho feito de poesia. Por cada passo que dou, nova palavra se desenha. E eu vou lendo Tejo, gente, pertence, minha terra, meu mundo e, então, começo, quase em silêncio, quase sem ver, a dizer as palavras que nascem à minha passagem. Eu, mulher feita de palavras, percorro as linhas dos poemas que alguém, um dia, dispôs gentilmente sobre uma página.

Por estas linhas de palavras vou, guiada por uma estrela invisível, silenciosamente andando pela noite dentro.




[Às palavras silenciosas dos poemas deverá juntar-se a beleza imaterial da música que abaixo poderá encontrar - um raro momento de beleza, como poderá confirmar]


Anoitecer à beira Tejo, num caminho feito de palavras em Belém


                               Era já noite mas eu corria
                               corria cegamente pela página fora.
                               Ou era talvez a rua. Corria
                               para um encontro
                               não sei ao certo de que
                               de quem.
                               Um nome um rosto
                               um corpo nu deitado no abismo.
                               Mas era uma estrela
                               que me
                               guiava.
                               Era um sismo
                               era um vento.
                               Ou talvez a palavra. Ou talvez a palavra.
                               E por isso eu corria
                               loucamente corria pela noite dentro.


                               ('Um sinal' de Manuel Alegre in 'Livro do Português Errante')
 

28 dezembro, 2011

É preciso ir além do deslumbramento, como se foi além da dor

  
Como falar desta terra tão amada? Como dizer-te que a minha amada cidade é quase intangível, é luminosa e branca, tem castelos e vielas, becos e escadarias, tem matas e palácios, e guarda mistérios, indizíveis segredos, tem jardins de rara beleza, tem lagos, estátuas, fados e má vida, tem ruas com tectos de jacarandás, tem cais onde se fazem juras de sangue e escadas que descem para um rio que a banha, um rio largo e suave que tem veleiros e grandes navios que vão para o outro lado do mundo? Como dizer-te?

Chega-te aqui e olha comigo. Vês este manto leve e transparente que a cobre? Vês como é bela a cidade branca que aqui se desdobra para nós?

Vem, assiste a este raro deslumbramento, senta-te aqui em silêncio e olha comigo. Não arrisquemos errar nas palavras. Que palavras poderia eu usar para te dizer como é tão grande esta minha devoção, como explicar-te que é quase dor isto que sinto?

Não, não arrisquemos manchar a sublime transparência desta cidade sonhada, não, deixa que guarde as palavras. Deixa que algum poeta as escolha. É que, sabes?, esta é a cidade dos poetas, por aqui se desenha a rota para a poesia. Fica, pois, junto a mim e rezemos, que divina e bela é a cidade que guarda todos os sonhos dos poetas.



[Depois do belo poema aqui abaixo, um momento sublime: os violinos trazem-nos o som dos deuses, ou dito em prosa, de Beethoven]


Numa manhã de neblina, veleiro branco numa atmosfera quase imaterial,
o Tejo e Lisboa envoltos em tule branco


                                          Houve terras que de tão sonhadas
                                          não puderam ser ditas senão em prosa lenta,
                                          isto é, em poesia.
                                          É preciso ir além do deslumbramento,
                                          como se foi além da dor
                                          (e é mais difícil,
                                          porque o deslumbramento dura menos
                                          e distancia).

                                          Nessas terras o comércio das palavras
                                          fez-se entre olhares desdenhosos e juras
                                          de sangue.

                                          Foi tão estranho seguir
                                          esta rota para a poesia...


('O caminho das Índias' de Luís Filipe de Castro Mendes in 'Lendas da Índia')
 

Beethoven: o Amadeus Quartet interpreta String Quartet Op.18-6 2/4




 

27 dezembro, 2011

O pulsar das palavras

  
Subo estas escadas que não levam a lado nenhum. Fico mais perto do céu, mais perto das aves que esvoaçam por aqui. Vejo o rio em toda a sua largueza, vejo a branca e luminosa cidade. Estas escadas são brancas e alguém, nelas, desenhou o céu e as nuvens.

Uma vez ali, olho à volta e digo 'daqui solto as palavras, daqui as deixo voar'.

Umas vezes vejo-as a voar, a elevarem-se nos ares. Mas, outras vezes, elas caem, rodopiam rente ao chão, mergulham no rio, afogam-se. Então chamo por elas, 'voltem, voem, afaguem-me, afagem o meu amor, afaguem aquele gato, afaguem aquele velho que ali olha o horizonte, voltem, voltem' mas elas, nesses dias, têm uma densidade que não lhes permite voar, o seu peso arrasta-as para o interior da terra, para o fundo do mar.



[Continuamos com Beethoven e a sonata para violino e piano, já ali abaixo, deixa-nos ver o contraste entre densidade e leveza]



No jardim do Ginjal, escadas para o céu
(e para ver melhor o Tejo e Lisboa)

                                    O pulsar
                                    das palavras,
                                    atraídas
                                    ao chão
                                    desta colina
                                    por uma densidade
                                    que palpita
                                    entre
                                    a cal
                                    e a água,
                                    lembra
                                    o das estrelas
                                    antes
                                    de caírem.


                                    ('VII. Micropaisagem' de de Oliveira in Trabalho Poético)

 

Beethoven - Anne Sophie Mutter no violino e Lambert Orkis no piano interpretam Sonata (Sonata for violin and piano No.8 in G major. op.30 Nr.3)



26 dezembro, 2011

Diz-me assim devagar coisa nenhuma

 
Estou numa torre de vidro, transparente, e eu, tão rodeada de gente, sinto-me sozinha. Faltam-me as tuas palavras doces, os teus abraços quentes, os teus lábios no meu pescoço, faltam-me o teu olhar marialva e irreverente pousado nas minhas pernas, invadindo o meu decote. Faltas-me tu.

Se te perguntasse, dirias que também sentes a minha falta, dirias que, antes, fazia de ti um homem melhor, que agora te falta a motivação.

Mas não pergunto. Custa-me muito ouvir essas tuas palavras - sou eu ao espelho, eu sem ti ao meu lado, imagem amputada.

Saio do gabinete, desço ao interior da terra e, uns minutos depois, estou a emergir à superfície. A profissional exigente ficou para trás. Dirijo-me à beira do rio. Lá onde o ar é fresco, o horizonte largo, as pessoas desconhecidas, as aves de longas asas brancas atravessam os mares, lá eu respiro fundo, misturo-me na pequena multidão que por ali paira. Ninguém me conhece, ninguém me vê, e isso é bom, sinto-me completamente livre.

Vou falando em silêncio, 'ficaram tantas palavras por dizer, ficaram tantos sorrisos por esboçar, tantos beijos, tanta ternura, tanta emoção por viver, deixámos tantas coisas para trás.' . Mas logo me repreendo. 'Tanto queixume, coisa desagradável. Vá mulher, coração ao alto.'

E então tropeço em ti. Sorris, contente e surpreendido, caloroso, cheio de ternura. Abraçamo-nos felizes, íntimos, só nós dois. E então, sorrindo, numa voz meiga, dizes-me, 'Diz-me devagar coisa nenhuma'. E eu sorrio, aconchego-me no teu ombro e digo-te, baixinho 'eu tenho uma vida e, ao lado, um destino. Não se encontram. E sou fiel ao meu destino, tal como sou fiel à minha vida. O meu destino é um mundo só meu, povoado por memórias, por sonhos, um mundo de abraços, de espelhos luminosos, de sorrisos, um mundo sem mácula, todo e só verdade'. Tu abraças-me, beijas-me o rosto, estás inesperadamente quentinho, sinto que sorris, 'eram outras as palavras que quereria, agora, ouvir mas, ainda assim, obrigado, continua a dizer-me palavras assim, sem mentiras, sem reservas, continua presa a mim e a dizer-me, devagar, coisa nenhuma'.

E deixamo-nos ficar abraçados, sorrindo de ternura, contando um ao outro, vezes e vezes sem conta, coisas nenhumas. E, no entanto, ambos sabemos que é apenas uma miragem. De facto, o que abraçamos é uma miragem, um sonho, coisa nenhuma.



[Desça um pouco, leia o belo poemas de Jorge de Sena e, logo a seguir, deixe que eu, quase desejando ser belle de jour, eu clair-de-lune, o/a leve até à Sonata Moonlight de Beethoven. A semana Beethoven começa hoje e começa envolta em recordações. Veremos o que o resto da semana nos reserva]



                                   Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
                                   como a só presença com que me perdoas
                                   esta fidelidade ao meu destino.
                                   Quanto assim não digas é por mim
                                   que o dizes. E os destinos vivem-se
                                   como outra vida. Ou como outra solidão.
                                   E quem lá entra? E quem lá pode estar
                                   mais que o momento de estar só consigo?
                                   Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
                                   o que à morte se diria, se ela ouvisse,
                                   ou se diria aos mortos, se voltassem.


('Fidelidade' de Jorge de Sena de Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço)
 

Beethoven - Valentina Lisitsa interpreta "Moonlight" Sonata op 27 # 2 Mov 1,2



22 dezembro, 2011

Perpassam vivas, gravemente alegres, junto de nós e dos que nós nem vemos

 
Era eu e era, então, uma menina e tinha os meus avós. Fiquei mulher e eles ficaram velhos. Um a um foram partindo. Depois foram também alguns tios. Vão indo. E alguns colegas. E alguns amigos. E os poetas. Um dia foram também Sophia e Eugénio. David já tinha ido - David que um dia escreveu que haveria sempre um lugar à mesa para quem muito se amou e que partiu mais cedo.

Vou andando por aqui, neste sítio tão azul, um céu imenso cobrindo um rio azul e uma cidade branca e as palavras vão voando à minha volta. Palavras alegres, luminosas que voam como aves brancas e livres.

Quem disse estas palavras que aqui voam brancas e leves, vivas e libertas? Sophia, Eugénio, David, Natália, e outros que alguns pensarão que estão ausentes. Não estão. As suas doces imagens perpassam neste local mágico, iluminam os nossos dias apagados, abrem os limites, desdobram os horizontes.

Junto a mim estão os ausentes, todos os ausentes, todos os que estão longe, todos os que a vida afastou de mim, está aquele que o meu coração ama. Ao meu lado voam os meus pensamentos, as minhas recordações, as palavras que os poetas disseram, as palavras que os meus queridos disseram, as palavras de doce sorriso que aquele que o meu coração ama um dia me disse.



[Depois do poema encontrará uma tocata e fuga, Bach, claro, um ser gravemente alegre, iluminado, de quem nasceu uma música absolutamnete luminosa]


Reflexo do Tejo, de Lisboa, do Tejo numa janela no Ginjal e a sombra de alguém que passa


                              DOCES IMAGENS QUE PASSARAM. ERRAM
                              ao nosso lado, deste lado ausentes.
                              Perpassam vivas, gravemente alegres,
                              junto de nós e dos que nós nem vemos.
                              E, contudo, de não as vermos surgem.
                              Cumprem os movimentos luminosos
                              da sua natureza, que os oculta
                              ao pesadume material dos olhos.
                              Não obstante, sabemos que as imagens
                              alegremente ao nosso lado vivem
                              e, com certeza, pacientes sabem
                              condescender com os limites,
                              embora imponham a evidência grave
                              que a ordenação não omite.
                              Passam. Perpassam aqui perto. Trazem
                              um mundo a iluminar-se e que os exige.


                              ('Doces imagens que passaram' de Fernando Echevarría in 'In terra viventium')

Bach - Karl Richter interpreta Tocata e Fuga (BWV 565)


21 dezembro, 2011

Um beco denso chama ao segredar que não virá ninguém

 
Ninguém chama por ti. Ninguém te espera. Vais até onde os passos te levam que o coração ficou para trás, naquela casa velha, paredes caídas, janelas exangues.

Caminhas e ninguém te acompanha, ninguém fala contigo. Vais por este caminho que não te leva a casa nenhuma, que não te leva a ninguém. Vais rente a estas outras casas, casas vazias, casas desoladas, e tentas ouvir uma riso, uma voz, um gemido que seja. Nada. Ninguém. As vozes ausentaram-se destas casas há tanto tempo. Encostas-te mais, talvez das paredes venham segredos, um sussurro, uma respiração. Nada.

Então, começas, sozinho e quase silente: dá-me, meu deus, um sorriso, dá-me, meu deus, o calor de uma mão, dá-me, meu deus, uma luz, uma voz, dá-me, meu deus, algum alento, não me deixes aqui sozinho, meu pai, dá-me um rosto que se debruce sobre o meu, dá-me, meu pai, um olhar que me aqueça, dá-me, senhor, uma casa onde alguém me espere. Por aqui vou, meu pai, ao longo da margem deste rio e vou exausto, tão exausto, meu deus, tão exausto, dá-me senhor alguma ilusão, alguma alegria. Dá-me, senhor, uma mão que limpe estas lágrimas que me queimam, dá-me, senhor, um carinho, um qualquer afecto, estas paredes estão caídas, estas casas estão mortas, a minha casa está tão triste, meu pai.

E, então, sentes um afago ligeiro no rosto. Sorris. Com a tua mão sentes o teu rosto que tão suavemente foi acariciado. Sabes que foi o vento, outra pessoa diria que foi apenas o vento. Mas que mal tem?

E então, acompanhado pelo vento, caminhas mais feliz, já não vais tão sozinho.



[Não deixe de buscar o som de deus nos violinos de Bach. Está logo a seguir ao poema de José Bento]


No Ginjal, casario velho, abandonado, o Tejo bem vivo e alguém que olha


                                       Uma estrada, um carreiro
                                       inscrito por passos que o não lembram;
                                       um beco denso chama
                                       ao segredar que não virá ninguém.

                                       Aí mantém-se a casa,
                                       apesar de tão ausente em anos
                                       de estar e não estar
                                       senão com o dono, como errante.

                                       Onde vozes e luzes
                                       se conciliam a cingir os dias;
                                       e palpitante, a sombra
                                       prolonga quartos, orações, vigílias.

                                       Margem de um rio exausto,
                                       esse domínio jaz incerto
                                       com astros, ervas, sangue,
                                       cifras para interrogar ou prescrever.

                                       Ao findar essa estrada
                                       outra começa, e um descampado;
                                       onde se tentam vagas
                                       passadas a conduzir a um acaso.

                                       Se um apelo nos laça,
                                       talvez venha de lá, mas sem um nome
                                       a trazê-lo com rosto.
                                       E só nos move o longo vento ao longe.


                                      (Poema 69, 'a Ricardo Defarges' de José Bento in Sítios)

Bach - Rachel Podger e Andrew Manze interpretam Concerto para Dois Violinos

 


 

20 dezembro, 2011

Não sou a imagem que buscas fixar, na objectiva do espanto tu não me vês

 
Dizes, vou fotografar-te e eu sei que queres tanto fazê-lo. Dizes, vira-te para a luz e eu faço-te a vontade, fico de frente para a luz. Dizes, vira-te um pouco, quero-te quase de perfil; eu viro-me, assim está bem?

Olhas pela objectiva e dizes, estás tão séria, sorri, e eu olho-te nos olhos, por dentro da objectiva e digo, não consigo.

E tu olhas-me nos olhos por fora da objectiva e eu recebo o teu olhar nu. Eu, que estou virada para a luz, entrego-me nua, banhada pela luz, sem te ver. Não sorrio, não te vejo. Dizes-me, então, não feches os olhos e eu digo-te que é da luz mas que foi apenas um bater de pálpebras. E tu dizes, não estás aí.

E eu digo-te que estou, que fixes a minha imagem. E tu insistes, não estás cá.

E eu, então, fecho os olhos e penso, não, não estou aqui. A minha quietude esconde o meu voo, estou a voar, parti sobre o rio, não me vês porque não podes, guarda o teu espanto.

Esta que aqui vês, que tem o meu cheiro, que tem os meus olhos, que tem o meu corpo, esta que ocupa um espaço que antes era meu, esta não sou eu. Eu há muito que parti, eu há muito que estou onde não me podes alcançar. Mas não faz mal, eu finjo que estou aqui. Vou sorrir, dispara agora.



[E então a flauta de Bach começa a vibrar enchendo este grande espaço. Desça um pouco para recolher as notas, para segurar as palavras, para registar o instantâneo.]




                                    Não sou a imagem que buscas fixar,
                                    na objectiva do espanto tu não me vês
                                    porque não podes.
                                    A quietude é uma velocidade vertiginosa,
                                    entre um oscilar de pálpebras e outro
                                    orbitei o universo
                                    regressei ao ponto de partida.

                                    E não são meus
                                    os aromas de bosque que ocuparam
                                    o espaço onde antes fui eu.


                                    ('Instantâneo' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

Bach - Emmanuel Pahud interpreta Corrente (Partita BWV 1013)




 

19 dezembro, 2011

Que mais fazer se as palavras queimam, cegam

 
Não é fumo, não, nem névoa, nem a neblina que vem do rio. Não. Está frio, sim, e há este suave nevoeiro, coisa ao de leve, um transparente tule mas não é nevoeiro, não.

Vem da água, dizes-me. E eu olho e digo-te que sim, que vem do rio mas que também vem da terra, das árvores, dos arbustos, das silvas, das ardentes sarças. Olhas e dizes, parece quetambém anda à volta dos gatos e eu vejo que sim mas também das rochas e tu chamas-me a atenção, olha, também à volta das gaivotas.

Depois insistes, parece mesmo fumo mas eu pergunto-te, mas então onde estão as chamas. E tu dizes que estão no olhar dos gatos e eu sorrio, inesperadas palavras vindas de ti. E vou atrás, vêm das asas das gaivotas e tu acrescentas, e das velas dos veleiros e eu abraço-te e digo, e vêm das nuvens e tu beijas-me a boca e depois dizes, e vêm da tua boca e eu tapo-a porque não quero que se percam no ar, são as tuas palavras.

E eu abraço-te e digo-te, deixa, deixa que ganhem vida própria as minhas palavras, deixa que voem, deixa-as, deixa-as ir. E então tu abraças-me e dizes, gosto tanto de ti, minha mulher feita de palavras.

E eu fecho os olhos, agradecida, porque alguém viu dentro de mim, alguém tocou as minhas palavras.



[Estamos na semana de Bach e eu até seria levada a pedir-lhe que desça um pouco mais, que ponha a música de hoje, Glenn Gould extraordinaire e que, só então, leia o poema de Ana Luísa Amaral, talvez também o que acabei de escrever, acho que as palavras voarão mais alto]


Jardim do Ginjal, sobre o Tejo, Lisboa encantada do outro lado


                                         Que mais fazer
                                         se as palavras queimam
                                         e tanta coisa em fumo em tanta coisa
                                         sarças ardentes do avesso
                                         o fogo em labaredas que mais
                                         fazer

                                         Que mais fazer
                                         se nem a água tantas vezes
                                         descrita      abençoada
                                         mas de mais e cristã
                                         também castigo

                                        Mas como nem castigo
                                        nem as nuvens de fumo na sarça
                                        do avesso
                                        se tudo no avesso
                                        das palavras

                                        que não chegam
                                        – mas cegam


                                       ('A impossível sarça' de Ana Luísa Amaral in Vozes)
  

Bach - Glenn Gould interpreta Sarabande from Partita No.4 (BWV 828)

 
Les beaux esprits se rencontrent 




 

18 dezembro, 2011

Alguém diz o teu nome à janela, olhando as aves que partem para sul

Hoje as gaivotas andavam loucas, rodopiavam nos ares, longas asas brancas em longos bailados. Pareciam que andavam à minha volta mas, logo que passava um veleiro, afastavam-se. Sentem aquela atracção fatal, despudorada pelos veleiros que rumam a sul.

Entre os troncos, abrigado, um belo gato, de cristalinos olhos inocentes, olhou-me, um olhar fixo, inquisidor, e eu deixei-me olhar. Aproximei-me sorrateira, como sempre faço, e o belo gato manteve o olhar e então senti que me olhava com compreensão.

É outono, a manhã estava fria, o rio corria rápido, azul, e eu percorria estes caminhos que percorro mil vezes. Penso em ti, por vezes parece que ouço o teu nome, parece que das janelas vazias destas casas abandonadas alguém te chama. Mas é apenas saudade, isto. E, então, desejo que algum destes pássaros de longas asas brancas chegue até onde te retiras, talvez atravesse oceanos, talvez suba às montanhas, solte um longo grito de saudade e, depois, pouse na tua janela, no meio de flores de desumana beleza.

Por aqui ando, rente ao rio, com a minha memória, sem dor, sem cinzas, esperando que este e todos os outonos sejam, afinais, auspiciosas primaveras.



[Começamos hoje com Bach, aquele que veio do além para nos iluminar com a sua música que não é deste mundo. Desça um pouco mais e entrará na semana de Bach.]


Belíssimo gato de belíssimos olhos marinhos no Jardim do Ginjal, mesmo rente ao Tejo


                               Os gatos resguardam-se da chuva.
                               Alguém diz o teu nome à janela,
                               olhando as aves que partem para o sul.

                               Há uma memória embaciada de outro outono,
                               cinzas no pátio,
                               o cheiro de alguma coisa que morre, mas não dói.


(Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros')

Bach - Mischa Maisky interpreta o Prelúdio para Violoncelo (Suite No.1)





16 dezembro, 2011

Atravessa os campos da noite e vem


De onde estás, tão longe, tão longe, voa até mim. Vem, terei a janela aberta. Os meus braços quentes estão sempre abertos para ti. São macios, perfumados, e fecham-se em torno do teu coração quando queres um ninho, quando queres sentir um coração a bater junto ao teu. Vem. Atravessa a noite que eu estou aqui, esperando por ti. Atravessa os rios, os mares, os oceanos, vem do outro lado do mundo, vem, mesmo que leves uma vida, vem, mesmo que saias de noite e chegues ao raiar da aurora - vem.

Nos recantos da minha pele que se arrepia ao teu toque, no meu olhar molhado que se sacia com o teu sorriso, nas minhas palavras que nascem para te falar com vagar o meu afecto suave e apaixonado, encontrarás a paz que procuras, encontrarás a chama que procuras.

Vem. Voa até mim.

No Ginjal, pássaro levanta voo sobre o Tejo, Lisboa do outro lado


Atravessa os campos da noite
e vem.

A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.


('Apelo' de Luisa Dacosta in A Maresia e o Sargaço dos Dias)
 

Mozart - Don Giovanni, Là ci darem la mano

 


14 dezembro, 2011

E abre os braços para deixar cair na cidade um ano favorável ao senhor


Um homem passa com majestade, o andar desenvolve-se com serenidade, é um cardeal que se desloca, vai com vagar, o casaco pende-lhe quase como se fosse uma pesada veste pregueada, vagamente ondulante. O homem avança e vai sereno, rosto aberto, peito feito ao frio do entardecer, passos de assombro e desprendimento. Olha a paisagem, olha as pessoas, olha os pássaros, olha com compaixão, com um afecto contido que não pertence aos dias comuns e nós não lhe vemos os olhos. Mas a sua compaixão pousa nos nossos ombros, uma mão forte e quente que se imagina.

Este homem que eu olho caminha contra o vento, caminha para dentro da noite.

E então pára.

De perfil, com nobreza no porte, altivez no olhar que se esconde, deixa-se ficar imóvel, superior, ele é o homem que olha a paisagem, ele é o homem que domina a paisagem, pensamentos voando em seu redor, palavras rodopiando em silêncio, palavras sopradas por um deus que se esconde no vento, palavras que as crianças que passam agarram, palavras como folhas de outono, palavras, palavras, palavras. Palavras de poeta.  

Este homem que aqui se entrega à noite que chega, que segura nos braços as palavras de um qualquer deus, é um poeta, um poeta quase apostólico como são todos os poetas.



[Leia, por favor, o poema abaixo do Ruy Belo e depois desça um pouco mais - verá então o que é irreverência e joie de vivre. É Mozart, claro, mas um Mozart muito peculiar]


Belo tronco e belo perfil num fim de dia rente ao Tejo


                               Está sereno o poeta
                               Desprende-se-lhe dos ombros e cai
                               depois em pregas por ele abaixo a manhã
                               Não pertencem ao dia os gestos que ele tem
                               não morrerão na noite seus assombrosos passos
                               Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda
                               de crianças de atitudes desmedidas
                               que o vento varreu e parque algum queria
                               E abre os braços para deixar cair na cidade
                               um ano favorável ao senhor
                               E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras
                               Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar 



                               ('Poema quase apostólico' de Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" )

 

Mozart - O Quintessence Saxophone Quintet interpreta a 25th Symphony, "25 plus" - a festa da irreverência



Tudo me ultrapassa e ninguém me obedece


Uma multidão, uma massa informe de gente, uns riem, outros vagueiam, outros conversam animados, outros, solitários, detêm-se junto à paisagem, uns para a frente, outros para trás. E eu ali, invisível, no meio da multidão que se move.

Passam por mim, avançam, não sei para onde vão, não sei sequer se têm destino ou se, simplesmente, estão de passagem. Ninguém os encena, ninguém os dirige, ninguém os detém.

Observo-os, um a um, recuo para colher melhor ângulo, deslizo em silêncio, fixo a imagem de casais de namorados, de novos, de velhos, de uma mãe com uma criança, de excêntricos, e ninguém me vê. Por vezes alguém parece detectar a minha presença, parece que o seu olhar se foca em mim, quase temo que me esteja a ver; mas logo percebo que apenas vê um vulto pois apenas se desvia, passa sem me ver.

Está um dia de luz intensa, uma luz branca e fria e eu ali, mulher imaginada, no meio de todos, silenciosa, construindo frases de palavras que se cruzam no ar, construindo legendas para as imagens, e as minhas personagens não me vêem.

Poderia pensar que assim é o mundo quando não tem luz - as pessoas desorientadas avançam sem rumo, umas para a frente, outras para trás, ninguém vê ninguém. Mas não, aqui há luz, aqui há apenas a liberdade absoluta, a alegria de respirar a luz, a fruição dos movimentos libertos, do riso franco, a urgência de viver.

Aqui no meio de todas estas pessoas, invisível, inventada, movo-me em silêncio e a minha mão, livre, toma a sua feição, feliz, dizendo que sim, dizendo que não, e eu, secreta, furtiva, vou guardando as imagens de todas as pessoas que comigo se cruzam.

Faço colecção de pessoas.



[Ficaria melhor se, antes de ter começado a ler, tivesse ido ali abaixo pôr o quintento de cordas e clarinete de Mozart mas, enfim, ainda está muito a tempo. Mozart  leva-nos para outra dimensão, uma dimensão quase lúdica]



                               Tudo me ultrapassa
                               e ninguém me obedece.
                               Será isto uma peça?
                               Talvez uma arruaça
                               (pelo menos parece)
                               mas nada que se esqueça.
                               Sem luz ninguém dirige
                               palavras, corpos, gestos,
                               ou a fremente mão
                               que desliza ou transige
                               e fora dos contextos
                               toma a sua feição
                               de quem se regojize
                               dizendo sim e não.


                              ('19. O encenador' de Pedro Tamen in 'Um teatro às escuras')

13 dezembro, 2011

Mozart - Servio Bosi no clarinete interpreta Quinteto K581




 

É pelo rodopiar das folhas no chão que saberás que este tempo chegou

 
Agora os dias acabam cedo. Com o cair do dia caem as últimas folhas, mergulham no rio as últimas aves, cai a nostalgia sobre as pessoas. Caminham sozinhas e seguras as mulheres ao encontro dos amantes previstos, caminham sozinhas e inseguras as mulheres a quem ninguém espera.

Caminho por aqui, à beira deste rio silencioso, dourado, um veludo macio. Vou sozinha. Ninguém me espera.

Mas, enquanto caminho sozinha, sei que estou à tua espera.

Sabes que nestes dias assim, em que as caem as últimas folhas, em que a noite avança mansa e secreta, eu saio pela beira do rio à tua procura. Sabes que, nestes dias assim, os deuses te levarão ao meu encontro, sabes que eu estarei na beira do rio, na escada que sobe das águas, estarei esperando por ti, mulher pássaro, mulher com cheiro a mar.

E vou caminhando, devagar, a dar-te tempo. A tua bússola secreta conduzir-te-á até mim. Não tenho pressa.

E então, apesar de ser quase noite, vejo-te. Caminhas na minha direcção - ah não, os deuses ainda não partiram - e eu vou dizendo baixinho, em festa, 'meu amor, meu amor, meu amor' e tu vens, como se viesses do fim dos tempos, e, de longe, quando me vês, sorris, e abres os braços e eu só não corro para ti porque quero que o momento dure. Sorrio, feliz. É outono, as folhas rodopiam no chão, entardece, cheira a maresia, sopra uma aragem suave, está tudo certo, e tu vens na minha direcção e, então, quando chegas perto de mim, baixas-te, e eu ouço as ondas ao de leve e vejo que escreves no chão a palavra pela qual toda a vida esperei. Em torno dela erguerei um templo e, dentro desse templo sem paredes, seremos felizes.



[E porque de alegria e sonho se fala aqui, sigam por favor, para a sonata de Mozart - mas obviamente apenas depois do poema de Ivone Costa, logo abaixo da fotografia]


Os deuses não partiram
(À beira Tejo numa tarde de Outono em Belém)


                             É pelo rodopiar das folhas no chão
                             que saberás que este tempo chegou.

                             Porque apontam as certezas
                             saberás que as bússolas não dormem.

                             Porque se cruzam os caminhos
                             saberás que os deuses não partiram.

                             Dá-me a tua mão
                             e eu mostro-te a escada
                             por onde subiram os séculos.

                             Dá-me uma palavra
                             e eu escreverei o teu nome
                             nas ruínas de um templo,
                             esquecido nas escarpas
                             onde batem as ondas.


(Poema VI de '5. Contos de Fadas' de Ivone Costa in Ordem Breve, produção e edição de João Carlos Lopes, a quem muito agradeço o ter-me enviado o belo e cuidado livro)

11 dezembro, 2011

Agora vou falar da preguiçosa e fina névoa entre os olhos e o rio


Neste dia frio e envolto numa diáfana névoa, deixo-me ir pela beira do rio, vou sem pressa, sem fito, vou simplesmente.

As árvores vergam-se húmidas, parecem tristes, e eu vejo através delas, quero véus, filtros, não quero hoje imagens nítidas, incomoda-me a frieza dos limites puros, incomoda-me a certeza das figuras objectivas. E assim vou, desloco-me carregando o meu sonho, deslizo invisível junto aos gatos vadios, olho os pássaros que se elevam, que chegam, que partem.

E, então, reparo neste barco que avança sobre o rio, lavra a água com suavidade, as velas abertas ao vento, que vai lento mas decidido, sabe onde quer chegar, certamente alguém de olhar molhado o espera, certamente.

Avança este veleiro e um pássaro de grandes asas voa à sua volta e eu na margem, invisível, sonhadora, vejo-o seguir, vejo-o partir.

Através das árvores, através destas cortinas de folhas escorrentes, de lábios mordidos pelo vento, pelo frio, pelos sonhos por cumprir, vejo-o partir.

Algures, numa qualquer travessa, ao raiar da aurora, alguém o espera. Alguém, não eu. Adeus, adeus.



[Começa hoje, aqui, a semana Mozart. Desça um pouco mais. A seguir ao poema entrará na semana da criatividade à solta, do sonho, da alegria e da tristeza, das emoções sem limite.]


No Jardim do Ginjal, barco lavrando o Tejo, Lisboa já ali


                            Agora vou falar da preguiçosa e fina
                            névoa entre os olhos e o rio.
                            Às vezes passava um barco.
                            Era como um arado lavrando
                            no meu coração a terra morta.
                            À proa o vento salgado dos pinhais.
                            Não sei para onde ia.
                            Devia haver em qualquer parte
                            um porto para o seu desassossego,
                            alguém de olhar molhado no cais
                            à sua espera. Numa cidade
                            pequena do Norte. Alguém
                            com nome, talvez Kai, os lábios
                            mordidos pelo vento, Kai
                            Haagen, no porto de Göteborg,
                            na costa da Suécia. Adeus, adeus.


('Alguém com nome' de Eugénio de Andrade in 'Os lugares do lume')