Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 dezembro, 2011

Diz-me assim devagar coisa nenhuma

 
Estou numa torre de vidro, transparente, e eu, tão rodeada de gente, sinto-me sozinha. Faltam-me as tuas palavras doces, os teus abraços quentes, os teus lábios no meu pescoço, faltam-me o teu olhar marialva e irreverente pousado nas minhas pernas, invadindo o meu decote. Faltas-me tu.

Se te perguntasse, dirias que também sentes a minha falta, dirias que, antes, fazia de ti um homem melhor, que agora te falta a motivação.

Mas não pergunto. Custa-me muito ouvir essas tuas palavras - sou eu ao espelho, eu sem ti ao meu lado, imagem amputada.

Saio do gabinete, desço ao interior da terra e, uns minutos depois, estou a emergir à superfície. A profissional exigente ficou para trás. Dirijo-me à beira do rio. Lá onde o ar é fresco, o horizonte largo, as pessoas desconhecidas, as aves de longas asas brancas atravessam os mares, lá eu respiro fundo, misturo-me na pequena multidão que por ali paira. Ninguém me conhece, ninguém me vê, e isso é bom, sinto-me completamente livre.

Vou falando em silêncio, 'ficaram tantas palavras por dizer, ficaram tantos sorrisos por esboçar, tantos beijos, tanta ternura, tanta emoção por viver, deixámos tantas coisas para trás.' . Mas logo me repreendo. 'Tanto queixume, coisa desagradável. Vá mulher, coração ao alto.'

E então tropeço em ti. Sorris, contente e surpreendido, caloroso, cheio de ternura. Abraçamo-nos felizes, íntimos, só nós dois. E então, sorrindo, numa voz meiga, dizes-me, 'Diz-me devagar coisa nenhuma'. E eu sorrio, aconchego-me no teu ombro e digo-te, baixinho 'eu tenho uma vida e, ao lado, um destino. Não se encontram. E sou fiel ao meu destino, tal como sou fiel à minha vida. O meu destino é um mundo só meu, povoado por memórias, por sonhos, um mundo de abraços, de espelhos luminosos, de sorrisos, um mundo sem mácula, todo e só verdade'. Tu abraças-me, beijas-me o rosto, estás inesperadamente quentinho, sinto que sorris, 'eram outras as palavras que quereria, agora, ouvir mas, ainda assim, obrigado, continua a dizer-me palavras assim, sem mentiras, sem reservas, continua presa a mim e a dizer-me, devagar, coisa nenhuma'.

E deixamo-nos ficar abraçados, sorrindo de ternura, contando um ao outro, vezes e vezes sem conta, coisas nenhumas. E, no entanto, ambos sabemos que é apenas uma miragem. De facto, o que abraçamos é uma miragem, um sonho, coisa nenhuma.



[Desça um pouco, leia o belo poemas de Jorge de Sena e, logo a seguir, deixe que eu, quase desejando ser belle de jour, eu clair-de-lune, o/a leve até à Sonata Moonlight de Beethoven. A semana Beethoven começa hoje e começa envolta em recordações. Veremos o que o resto da semana nos reserva]



                                   Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
                                   como a só presença com que me perdoas
                                   esta fidelidade ao meu destino.
                                   Quanto assim não digas é por mim
                                   que o dizes. E os destinos vivem-se
                                   como outra vida. Ou como outra solidão.
                                   E quem lá entra? E quem lá pode estar
                                   mais que o momento de estar só consigo?
                                   Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
                                   o que à morte se diria, se ela ouvisse,
                                   ou se diria aos mortos, se voltassem.


('Fidelidade' de Jorge de Sena de Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço)
 

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