Hoje as gaivotas andavam loucas, rodopiavam nos ares, longas asas brancas em longos bailados. Pareciam que andavam à minha volta mas, logo que passava um veleiro, afastavam-se. Sentem aquela atracção fatal, despudorada pelos veleiros que rumam a sul.
Entre os troncos, abrigado, um belo gato, de cristalinos olhos inocentes, olhou-me, um olhar fixo, inquisidor, e eu deixei-me olhar. Aproximei-me sorrateira, como sempre faço, e o belo gato manteve o olhar e então senti que me olhava com compreensão.
É outono, a manhã estava fria, o rio corria rápido, azul, e eu percorria estes caminhos que percorro mil vezes. Penso em ti, por vezes parece que ouço o teu nome, parece que das janelas vazias destas casas abandonadas alguém te chama. Mas é apenas saudade, isto. E, então, desejo que algum destes pássaros de longas asas brancas chegue até onde te retiras, talvez atravesse oceanos, talvez suba às montanhas, solte um longo grito de saudade e, depois, pouse na tua janela, no meio de flores de desumana beleza.
Por aqui ando, rente ao rio, com a minha memória, sem dor, sem cinzas, esperando que este e todos os outonos sejam, afinais, auspiciosas primaveras.
[Começamos hoje com Bach, aquele que veio do além para nos iluminar com a sua música que não é deste mundo. Desça um pouco mais e entrará na semana de Bach.]
Belíssimo gato de belíssimos olhos marinhos no Jardim do Ginjal, mesmo rente ao Tejo |
Os gatos resguardam-se da chuva.
Alguém diz o teu nome à janela,
olhando as aves que partem para o sul.
Há uma memória embaciada de outro outono,
cinzas no pátio,
o cheiro de alguma coisa que morre, mas não dói.
(Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros')
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