Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 dezembro, 2011

E abre os braços para deixar cair na cidade um ano favorável ao senhor


Um homem passa com majestade, o andar desenvolve-se com serenidade, é um cardeal que se desloca, vai com vagar, o casaco pende-lhe quase como se fosse uma pesada veste pregueada, vagamente ondulante. O homem avança e vai sereno, rosto aberto, peito feito ao frio do entardecer, passos de assombro e desprendimento. Olha a paisagem, olha as pessoas, olha os pássaros, olha com compaixão, com um afecto contido que não pertence aos dias comuns e nós não lhe vemos os olhos. Mas a sua compaixão pousa nos nossos ombros, uma mão forte e quente que se imagina.

Este homem que eu olho caminha contra o vento, caminha para dentro da noite.

E então pára.

De perfil, com nobreza no porte, altivez no olhar que se esconde, deixa-se ficar imóvel, superior, ele é o homem que olha a paisagem, ele é o homem que domina a paisagem, pensamentos voando em seu redor, palavras rodopiando em silêncio, palavras sopradas por um deus que se esconde no vento, palavras que as crianças que passam agarram, palavras como folhas de outono, palavras, palavras, palavras. Palavras de poeta.  

Este homem que aqui se entrega à noite que chega, que segura nos braços as palavras de um qualquer deus, é um poeta, um poeta quase apostólico como são todos os poetas.



[Leia, por favor, o poema abaixo do Ruy Belo e depois desça um pouco mais - verá então o que é irreverência e joie de vivre. É Mozart, claro, mas um Mozart muito peculiar]


Belo tronco e belo perfil num fim de dia rente ao Tejo


                               Está sereno o poeta
                               Desprende-se-lhe dos ombros e cai
                               depois em pregas por ele abaixo a manhã
                               Não pertencem ao dia os gestos que ele tem
                               não morrerão na noite seus assombrosos passos
                               Dizem que ele volta a pôr em movimento a roda
                               de crianças de atitudes desmedidas
                               que o vento varreu e parque algum queria
                               E abre os braços para deixar cair na cidade
                               um ano favorável ao senhor
                               E põe o rosto do senhor por trás das suas palavras
                               Elas decerto o hão-de dar a quem as demandar 



                               ('Poema quase apostólico' de Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates" )

 

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