Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 dezembro, 2011

Tudo me ultrapassa e ninguém me obedece


Uma multidão, uma massa informe de gente, uns riem, outros vagueiam, outros conversam animados, outros, solitários, detêm-se junto à paisagem, uns para a frente, outros para trás. E eu ali, invisível, no meio da multidão que se move.

Passam por mim, avançam, não sei para onde vão, não sei sequer se têm destino ou se, simplesmente, estão de passagem. Ninguém os encena, ninguém os dirige, ninguém os detém.

Observo-os, um a um, recuo para colher melhor ângulo, deslizo em silêncio, fixo a imagem de casais de namorados, de novos, de velhos, de uma mãe com uma criança, de excêntricos, e ninguém me vê. Por vezes alguém parece detectar a minha presença, parece que o seu olhar se foca em mim, quase temo que me esteja a ver; mas logo percebo que apenas vê um vulto pois apenas se desvia, passa sem me ver.

Está um dia de luz intensa, uma luz branca e fria e eu ali, mulher imaginada, no meio de todos, silenciosa, construindo frases de palavras que se cruzam no ar, construindo legendas para as imagens, e as minhas personagens não me vêem.

Poderia pensar que assim é o mundo quando não tem luz - as pessoas desorientadas avançam sem rumo, umas para a frente, outras para trás, ninguém vê ninguém. Mas não, aqui há luz, aqui há apenas a liberdade absoluta, a alegria de respirar a luz, a fruição dos movimentos libertos, do riso franco, a urgência de viver.

Aqui no meio de todas estas pessoas, invisível, inventada, movo-me em silêncio e a minha mão, livre, toma a sua feição, feliz, dizendo que sim, dizendo que não, e eu, secreta, furtiva, vou guardando as imagens de todas as pessoas que comigo se cruzam.

Faço colecção de pessoas.



[Ficaria melhor se, antes de ter começado a ler, tivesse ido ali abaixo pôr o quintento de cordas e clarinete de Mozart mas, enfim, ainda está muito a tempo. Mozart  leva-nos para outra dimensão, uma dimensão quase lúdica]



                               Tudo me ultrapassa
                               e ninguém me obedece.
                               Será isto uma peça?
                               Talvez uma arruaça
                               (pelo menos parece)
                               mas nada que se esqueça.
                               Sem luz ninguém dirige
                               palavras, corpos, gestos,
                               ou a fremente mão
                               que desliza ou transige
                               e fora dos contextos
                               toma a sua feição
                               de quem se regojize
                               dizendo sim e não.


                              ('19. O encenador' de Pedro Tamen in 'Um teatro às escuras')

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