Não é fumo, não, nem névoa, nem a neblina que vem do rio. Não. Está frio, sim, e há este suave nevoeiro, coisa ao de leve, um transparente tule mas não é nevoeiro, não.
Vem da água, dizes-me. E eu olho e digo-te que sim, que vem do rio mas que também vem da terra, das árvores, dos arbustos, das silvas, das ardentes sarças. Olhas e dizes, parece quetambém anda à volta dos gatos e eu vejo que sim mas também das rochas e tu chamas-me a atenção, olha, também à volta das gaivotas.
Depois insistes, parece mesmo fumo mas eu pergunto-te, mas então onde estão as chamas. E tu dizes que estão no olhar dos gatos e eu sorrio, inesperadas palavras vindas de ti. E vou atrás, vêm das asas das gaivotas e tu acrescentas, e das velas dos veleiros e eu abraço-te e digo, e vêm das nuvens e tu beijas-me a boca e depois dizes, e vêm da tua boca e eu tapo-a porque não quero que se percam no ar, são as tuas palavras.
E eu abraço-te e digo-te, deixa, deixa que ganhem vida própria as minhas palavras, deixa que voem, deixa-as, deixa-as ir. E então tu abraças-me e dizes, gosto tanto de ti, minha mulher feita de palavras.
E eu fecho os olhos, agradecida, porque alguém viu dentro de mim, alguém tocou as minhas palavras.
[Estamos na semana de Bach e eu até seria levada a pedir-lhe que desça um pouco mais, que ponha a música de hoje, Glenn Gould extraordinaire e que, só então, leia o poema de Ana Luísa Amaral, talvez também o que acabei de escrever, acho que as palavras voarão mais alto]
Jardim do Ginjal, sobre o Tejo, Lisboa encantada do outro lado |
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
que não chegam
– mas cegam
('A impossível sarça' de Ana Luísa Amaral in Vozes)
Olá, UJM
ResponderEliminarEste seu texto é um dos melhores que já li. Sentimento, sensibilidade, aliados a um saber escrever que nos toca. E quando as palavras queimam temos de fazer como faz: deixá-las escorrer, correr, soltá-las ao vento ao encontro do nosso receptáculo de eleição.
Em contraste,no poema de Ana Luísa Amaral encontrei o poder das palavras que não chegam, mas cegam...
Bom Natal.
Beijo
Olinda
Olinda,
ResponderEliminarAs suas palavras são sempre tão calorosas, tão agradáveis de ler. Muito obrigada.
Sabe que eu adoro escrever, e gosto de escrever sem censura interna, sem filtros. E às vezes as palavras têm vida própria, é como se eu não soubesse bem o que estou a escrever. E no fim não me apetece reler, parece que estaria a invadir um território muito pessoal e quase alheio.
Não sei bem explicar este fenómeno. É como quando pinto. Não sei o que vou pintar, não sei bem o que estou a pintar mas, afinal, as coisas aparecem.
E ainda bem que há quem goste.
Sabe que, quando pinto, as pessoas depois começam a dizer-me que estão a ver ali uma fonte, a sombra de não sei o quê, e eu olho e parece mesmo e eu nem tinha reparado e, no fim, descubro coisas que apareceram sozinhas.
Vá lá a gente perceber como funciona a nossa cabeça, não é?
E depois de escrever isto, viro para o Um Jeito Manso e atiro-me ao Passos Coelho e desanco no governo e já parece que é outra pessoa.
Mas sou sempre eu.
Aproveito paar comentar também o que escreveu no outro, sobre Bach. Fascinante esta música e como consegue incorporar uma outra dimensão nas palavras, não sente isso?
Um beijinho, Olinda e, se não nos falarmos antes, que tenha um bom Natal, que seja uma bela festa e um sentido encontro.