Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 novembro, 2013

Quando me beija, há um pássaro espavorido que deixa um arrepio nos meus lábios secos


Subo ao mais alto do misterioso castelo que está sobre a colina e por lá fico. Também o vento entra e fica, tal como as gaivotas que entram e ficam, e a luz que entra e fica, e o mesmo com a noite. Este é o castelo de quem não tem mais para onde ir. Tanta noite agarrada às paredes, escondida nos recantos. É lá que me abrigo quando nada mais tenho para tapar a minha saudade.

Pelos corredores há rosas secas espalhadas, restos de música, perfumes antigos. Aqui nos escondíamos do mundo no nosso tempo de amantes interditos. Nessa altura, abraçados, espreitávamos o mundo pela janela, eternos, inconscientes.

Esse tempo acabou. Dele resta apenas um fio de voz, estas minhas palavras gastas, secas, gretadas.

Disseste um dia, lembras-te?: os teus lábios são uma rosa húmida. Murchou essa saudosa rosa e em seu lugar há apenas pássaros assustados que gritam e tremem e arrastam as vencidas asas pelo chão de cada vez que sentem a respiração de alguém que passe à porta.

Relembro as brincadeiras junto às fontes, a nudez que mutuamente nos oferecíamos, sexos inocentes, risos inaugurais, e sempre muita luz. 

Por vezes tenho medo, medo da solidão, medo de intrusos. Penduro, então, punhais de marfim à cintura. Com eles trespasso o tempo nesta luta absurda em que me debato contra ideias vagas, sonhos perdidos, beijos que há muito se afogaram no mar, palavras de cujo sentido para sempre me perdi.



[Abaixo da casa abandonada sobre o Tejo, um poema de alguém que tem andado arredio, José Agostinho baptista. E, logo a seguir, mais uma brilhante interpretação do violinista Benjamim Schmid]


Edifício abandonado numa das encostas do Ginjal



                                              Em qualquer lugar, há alguém que caminha
                                              para as fontes,
                                              com um cântaro de argila pura.
                                              Uma mulher,
                                              uma rapariga com perfumes de sândalo, no
                                              misterioso castelo sobre a colina?
                                              Por que brilham os punhais de marfim da
                                              sua cintura?

                                              Não sei.
                                              Quando me beija, há um pássaro espavorido
                                              que deixa um arrepio nos meus lábios secos,
                                              com rugas excessivas.

                                              Mas quem és tu, meu amor, o que fazes aqui,
                                              para onde me levas,
                                              com todas estas rosas que morrem tão
                                              depressa como
                                              as palavras que trocámos num porto de âncoras
                                              impossíveis?


['Em qualquer lugar' de José Agostinho Baptista in 'Esta voz é quase o vento']


Benjamin Schmid interpreta Bazzini - Le Ronde des Lutins




27 novembro, 2013

O peito esquece a hora em fuga


Está frio, um vento frio. A vinha virgem está em fogo mas não vem dela calor suficiente para aquecer estes dias tão frios. A luz que há no ar é azul, gélida, os tempos são de fuga, de peitos vazios, de corações deixados ao abandono. As mãos estão desoladas, caídas, o olhar fechado, ausente. 

Onde o olhar alcança apenas há pó, lembranças desfeitas. 

Mas, sabes velho leão dos mares?, não tarda as ruas encher-se-ão de novo e todos juntos cantaremos, unidos e levantados. Já vai sendo tempo das cidades vibrarem com a emoção dos renascimentos. 

Devemos essa força ao exemplo das árvores que resistem às intempéries, que se mantêm de pé, livres, encerrando toda a força do vento, apesar da tristeza das chuvas que, por vezes, vêm chorar no seu regaço. 

Ressurgiremos um dia destes, paredes em flor, corações ao alto, faces erguidas, mãos abertas, olhar lavado. Ressurgiremos. Ressurgiremos.



[Abaixo da Boca do vento, mais um belo poema de Soledade Santos e, logo a seguir, mais uma magnífica interpretação de Benjamin Schmid]



Uma parede coberta de vinha virgem na Boca do Vento
(sobre o Ginjal, com Lisboa do lado de lá)


                                              Sopra um vento nítido erguendo
                                              nuvens de pó na serra ao longe e vibra
                                              a alegre conversação das folhas.
                                              Árvores acodem
                                              de todos os sítios da lembrança e do olhar agora.
                                              O peito esquece a hora em fuga,
                                               fala o vento    a luz     o corpo imediato.


['Exterior' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra']


A Vienna Philharmonic Orchestra com Benjamin Schmid no violino interpreta Fritz Kreisler - Concerto in One Movement a partir do Concerto para Violino de Paganini




26 novembro, 2013

Por dentro do perfume das flores já não anda a tua boca


Onde andas, amor meu, que já não beijas os meus lábios? Onde andas que já não vens cheirar a curva do meu pescoço, que já não vens comigo olhar as gaivotas? Que já não me embalas nos teus braços nem me levas a ver as estrelas?

Achas bem deixares-me assim, sem chão, sem amparo, sem o teu calor, sem o teu amor?

Passeio por aqui e sigo o voo solitário da gaivota. Sou eu que por ali ando, procurando-te, chamando por ti, soltando suplicantes gritos, chorando lágrimas que ninguém vem secar?

Ai amor que me deixaste tão triste.

Por aqui vou, gelada, sozinha. Mais à frente um cão abandonado olha-me, oferecendo-me a sua companhia. Mas afasto-me. Não posso ficar com qualquer um porque não é qualquer um que pode ocupar o teu lugar. Porque me abandonaste? Porque não esperaste por mim? Pudesse eu voar para te procurar pelos céus, pelos mares, pelos montes, pelos infinitos labirintos onde te perdeste de mim, amor. Ai tão triste que estou, amor.



[Abaixo do Ginjal envolto num frio frio e perfumado a maresia, um poema de José Gomes Ferreira e, logo abaixo, mais uma grande interpretação do violinista Benjamin Schmid]



Manhã fria no Ginjal


                                         
                                          Por dentro do perfume das flores
                                          já não anda a tua boca
                                          a beijar as estrelas
                                          na cor do silêncio
                                          - para além do gosto agudo das mucosas.

                                          Agora no luar caído
                                          só uma cadela de gelo
                                          morde o perfume das rosas...


                                          [(Desvio lírico do problema) de José Gomes Ferreira in Poesia III]


25 novembro, 2013

Benjamin Schmid, com a Vienna Philharmonic Orchestra, interpreta Erich Wolfgang Korngold - Concerto para Violino




E, sem razão, repito a todo o instante nos meus lábios cansados esse nome que ainda me falta em quase tudo


Foste-te com o frio e deixaste-me sem o teu calor na cama em que antes nos embalávamos. Passeio agora sozinha junto ao rio e, onde antes havia a tua mão, agora há apenas a saudade da tua companhia. O rio turva-se, o azul escurece, são nuvens, são recordações, são sombras.

Caminho e, em surdina ou nem isso, vou dizendo o teu nome, vou chorando as minhas mágoas. Aqui ninguém sabe o que se passou na minha vida. Sou orgulhosa demais para mostrar os meus sentimentos. Mas, aqui, onde ninguém me ouve, choro em silêncio a dor e as saudades, tão insuportáveis. Porque te foste? Porque me deixaste aqui sem ti? Nunca antes pensei que isto me fosse acontecer. Nos meus sonhos, eu e tu éramos um para todo o sempre.

Mas deixa.

Há mais marés que marinheiros. De onde vieste, há mais como tu. Não tenho pressa. Não nasci para caminhar sozinha nem para me deitar sozinha na cama. Nada a fazer: sou assim. E sei que não caminharei sozinha por muito tempo.

Talvez um dia, quando eu caminhar acompanhada pela sombra da tua memória e chame o teu nome, seja um outro a responder à chamada. E talvez venha rodeado de palavras voando à sua volta, talvez venha para me dizer ao ouvido poemas de amor e para me aquecer nas noites frias em que a saudade me gela. Talvez, então, eu o deixe entrar na minha vida, na minha cama, no meu corpo.

Por isso, se te foste, deixa-te estar onde estás e não voltes. Vou esquecer o teu nome.



[Abaixo de um rio azul como uns lençóis muito frios, recebo uma vez mais Maria do Rosário Pedreira que sempre será aqui muito bem vinda. Logo a seguir o violino de Benjamin Schmid faz-nos uma excelente companhia]


O Tejo este domingo avistado do Ginjal, toldado pelas nuvens que fazem sombra nas águas



                                          Sei a nuvem de cinza que turva o
                                          oceano, a sombra que desfigura a
                                          minha mão vazia. Sei as paisagens
                                          que um dia se deitaram entre nós
                                          para sempre adormecidas. Sinto

                                          a dor estendida sobre a memória
                                          do teu corpo na cama que ficou
                                          aberta como uma ferida. E, sem
                                          razão, repito a todo o instante nos
                                          meus lábios cansados esse nome
                                          que ainda me falta em quase tudo.



[Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum Nome Depois']


21 novembro, 2013

Jorge Palma e Rui Reininho, dois 'ganda' malucos, interpretam Frágil




o turvo e torpe véu sedento do desejo


Esta quarta feira levantei-me com o nascer do sol, o rio suave banhado a rosa, um ou outro barquinho branco como um brinquedo. Tive vontade de me pôr a fotografar, tão bela a vista que me banhava o olhar. Mas estava com pressa, não o pude fazer. 

Depois, na estrada, o chão em vez de verde estava prateado, coberto pela frialdade da noite. Fui deslizando pela manhã, acompanhada pela música na rádio, a antena 2, e pelos meus sonhos. Sozinha no carro, era como se a noite ainda ali se estendesse suave ao meu lado, sonhos bons, metáforas delicadas, e eu vou andando, olhando a paisagem, os campos, as casas, as árvores. Tão agradável, tanta serenidade.

Penso muitas vezes que talvez eu fosse capaz de viver retirada, no campo, entre árvores, contemplando a terra - uma vez são flores, agora rebentam tenros cogumelos outras vezes são folhas, ramos, musgos, pedras. O que sou eu mais do que qualquer destas coisas? Sinto-me tão próxima de tudo isto. Tenho mais afinidades com um cedro, com o alecrim, com o musgo verde e macio, do que com tanta gente que por aí anda. Sentar-me num recanto, acolher-me aos braços de uma árvore, deixar-me estar. Que bom deveria ser, que desejo gostoso este o meu.



[Abaixo de um resto de árvore, como se fosse um resto de pele, um poema muito belo de Armando Silva Carvalho. Logo abaixo um momento de graça e generosidade: o grande Jorge Palma com dois jovens: Encosta-te a mim.]


A pele seca de um eucalipto caída na estrada que leva ao Ginjal


                                                 
                                                      Acordo
                                                      mais um dia
                                                      com ele o turvo e torpe véu sedento

                                                      do desejo.

                                                      Não me doem as costas
                                                      a matéria dos sonhos ainda me persegue
                                                      translúcida no quarto.

                                                      Só o peso do chão
                                                      do negro chão da espera
                                                      se estende espesso a meu lado como mundo
                                                      e metáfora.



['Manhã' de Armando Silva Carvalho in 'a vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura]



Jorge Palma com o Nuno e o Salvador (da OT 3) interpretam "Encosta-te a Mim"


19 novembro, 2013

Se tiveres de escolher um reino escolhe o relento


A noite. Meu ninho, meu aconchego. A noite, meu reino.

Quando, como hoje, me sento ao volante e percorro quilómetros e quilómetros - e sozinha vou ouvindo a música, vendo a paisagem, e sei que ainda me esperam horas de trabalho e que ainda falta tanto para chegar a casa - penso que, não tarda, cairá a noite e que, na noite, envolvida pelo veludo macio da escuridão, caminharei rente ao rio. E logo sinto uma expectativa que me anima, uma quietude que me serena.

Depois, mal vejo a hora de me mudar e me dirigir para os cais, para essas fronteiras de onde os solitários espreitam os rios, e enfrentam a frialdade do relento, e enfrentam o medo da solidão, e de onde se vê como os navios deixam um rasto silencioso e branco na negrura das águas.

O ar de noite, rente ao rio, está muito frio. Quase ninguém. As luzes que se reflectem no rio são um alabastro de prata, as pedras da calçada ficam quase douradas, a mulher que sozinha, num banco, de frente para a grande cidade, quase parece feita de pedra macia - e tudo me parece acolher.

Olho com delongas este meu canto, este meu pedaço de mim. Esta é também a minha casa.

Daqui a nada, a beira do rio acolherá um novo dia. E eu, deslumbrada, assistirei ao seu nascimento aqui da janela de onde espreito o tempo que passa. A minha casa é, assim, o rio e a janela de onde o espreito, o meu mundo feito de pequenos instantes, eternos e sem nome.



[Abaixo de Lisboa e do Tejo avistadas numa noite muito fria, recebo, uma vez mais, o Poeta Padre José Tolentino Mendonça. A seguir, Jorge Palma e toda a sua emoção com acompanhamento de João Gil]


No cais de Cacilhas, sobre o Tejo, de frente para Lisboa



                                                           Se tiveres de escolher um reino
                                                           escolhe o relento
                                                           a noite tem a brancura do alabastro
                                                           ou mais extraordinária ainda

                                                           Ao que vem depois de ti
                                                           cede o instante
                                                           sem pronunciar
                                                           seu nome


['Versões do mundo' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos']



Jorge Palma e João Gil interpretam 'Senta-te aí'



Letra: João Monge 
Música: João Gil 

17 novembro, 2013

Esta mão que escreve a ardente melancolia


Com estas minhas mãos escrevo. Delas nascem palavras que não chegam a passar pela minha cabeça. Não as filtro, não as controlo. Soltam-se de mim, livres, voadoras. Quanto mais idade tenho, mais livre me sinto, mais livres as minhas mãos, mais livres as minhas palavras. 

Estas minhas mãos que deslizam pelo teclado é como se bordassem, é como se pintassem, e eu olho admirada para o que delas nasce, palavras que, entre elas, formam flores, nuvens, pássaros, barcos, sombras. São palavras que não me pertencem, palavras que olham admiradas as cores, a música, as lágrimas que delas se soltam.

O mundo é largo, por vezes assustador, por vezes muito belo e as minhas palavras espreitam-no, ora tímidas, ora em festa. Um céu imenso nasce do rio e avança sobre mim, vem carregado de luz e de palavras. 

(Tantas saudades, tantas. Tento iludi-las com palavras e nisso as minhas mãos são exímias, disfarçam tão bem a melancolia.)

É que, sabes, há também o coração e esse não me obedece mesmo. Tantas vezes ele sai do peito para se aninhar na concha das mãos, para que as palavras transportem a sua batida, o seu calor, o seu amor. 

(Tantas, tantas saudades. Não sabes, por acaso, como precisa de carinho o meu coração? Vem, volta, fala comigo, diz-me baixinho coisa nenhuma.) 



[Debaixo de um céu imenso, quase irreal, está parte de um poema imenso do Poeta imenso, Herberto Helder. A seguir, um duo inesperado, Jorge Palma e Pierre Aderne, e uma canção de amor]


O Tejo 


                                               

                                                 Esta mão que escreve a ardente melancolia
                                                 da idade
                                                 é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
                                                 que à imagem do mundo aberta de têmpora
                                                 a têmpora
                                                 ateia a sumptuosidade do coração.


[Excerto de '(a carta da paixão)' de Herberto Helder in Photomaton & Vox]



Pierre Aderne & Jorge Palma interpretam 'Preciso mentir que te amo'


13 novembro, 2013

Nunca se sabe quando estamos num lugar pela última vez - (acrescentado com os preciosos contributos de dois leitores)


De cada vez que vivo um instante, vivo como se pudesse não voltar a vivê-lo. Ainda há pouco. Já era quase noite, o rio escuro, um céu que se despedia furtivamente do dia, barcos que chegam e partem sem parar, gente apressada, carregada, silenciosa. O ar frio. Um cheiro a castanhas assadas, um fumo perfumado envolvendo as gentes devoradas por vidas difíceis.

E eu no meio de todos. Transparente como sempre. Passo por entre as pessoas, detenho-me tocada pela admiração que sinto pela sua determinação e força, vejo como correm vergadas pelo cansaço e pelos sacos, andam sempre tão carregadas. Não há crianças a esta hora. Faz tanta falta o riso das crianças nestas noites escuras junto ao rio. 

Ninguém me vê enquanto por ali ando. 

E penso. Tenho que fixar dentro de mim estes momentos. Amanhã podem não ser estas as pessoas, podem passar de uma outra forma. Ou posso eu não poder voltar aqui a misturar-me com estes meus iguais.

Depois continuo o meu caminhar, levada pela maresia nocturna, tão fresca, tão limpa, a noite a tombar carregada de saudades. Um casal abriga-se no muro, abraça-se enquanto olha a magnífica cidade. Talvez pensem como eu que têm que gravar na sua memória esta imagem de uma beleza tão efémera, de uma tal quietude, de uma elegância quase excessiva. Ou podem temer que amanhã a mulher não possa sair de casa, ou que o homem possa não chegar a tempo.

E posso eu não poder estar aqui para testemunhar o amor que os une neste escurecer tão frio. 

A vida é um breve instante e nem sempre acaba bem. 

Quantos abraços não ficam por dar, quantos amores não ficam por confessar, quantos, quantos. Tantas as vezes em que os instantes se interrompem para nunca mais. Por isso, porque amanhã posso também não poder estar aqui a escrever palavras como estas, vos peço que sejam fiéis depositários dos afectos que por aqui, enquanto posso, vou partilhando convosco.

E que dure por muito tempo este nosso breve encontro.



[Abaixo do casal que olha Lisboa, a bela, mais um poema de Inês Lourenço. A seguir a voz suave de Waldemar Bastos.]


Em Cacilhas, de frente para Lisboa


                                                         Nunca se sabe
                                                         quando estamos num lugar
                                                         pela última vez. Numa casa
                                                         que vai ser demolida, numa sala
                                                         provisória que vai encerrar, num velho
                                                         café que mudará de ramo, como
                                                         página virada jamais reaberta, como
                                                         canção demasiado gasta, como
                                                         abraço tornado irrepetível, numa
                                                         porta a que não voltaremos.


                                                         ['Sala provisória' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']

***

Quantas vezes caminhamos entre iguais,
e o silêncio que nos une tem a dimensão de mil palavras que se perderam.
Na volatilidade dos nossos gestos e olhares,
 atravessamos os sentimentos alheios
e vivemos a empatia dos seus sonhos e desejos. 
No interior das nossas ausências,
nunca estamos verdadeiramente sós.  
Passamos e repassamos a ternura das nossas sombras pela existência circundante,
mas permanecemos os mesmos seres sensíveis e solidamente etéreos. 
Os lugares permanecem para além da nossa presença.
Apenas a nossa memória resistirá à verdadeira ausência
e reconstruirá mil futuros em cada passado esquecido.
Ubíquos na imaginação,
jamais esqueceremos a vaga sinestesia das vivências e dos lugares dum passado evanescente.

[De dbo num comentário aqui abaixo]

***

se eu adormecer e não acordar diz-lhes que o sol é imenso
e regressa em cada madrugada
que o mar, essa grande paixão, será sempre um mistério
de fúria e mansidão 
que o Outono por mais belo e dourado
traz o vento
a debandada
o prenúncio do fim 
e que eu não voltarei mais
mas as palavras que deixo
(mal arrumadas, eu sei)
desajeitadamente falarão por mim

[De Era uma Vez num comentário aqui abaixo] 

11 novembro, 2013

Waldemar Bastos interpreta Velha Chica


Recebe o sentido do que se não exprime sequer


Nos dias que precedem o fim de alguém a quem tanto afecto sempre dediquei, a vida parece-me um caminho que acaba numa parede, ou uma página branca, vazia. Onde o sentido da vida que assim trata os seus mais puros? Um caminhar doloroso para um fim que se sabe inevitável e sofrido, um rasgar dorido de laços que ainda tinham tantos mais laços para dar - assim são os dias que se sabem finais de alguém cuja caminhada final não consigo interromper, ninguém consegue interromper.

Ainda não há muito falava da esperança que a sua boa disposição me trazia. Mas, pouco depois, as células descontrolaram-se de forma a cada dia mais apressada. Aceitar o fim pode ser um bom propósito quando não há este assistir a um súbito declínio, tão triste, tão triste, as forças a faltarem, a fala a desaparecer, a respiração a custar, a quase ausência.

Não há metáforas, não há fantasias, não há nada.

Direi um dia destes outras palavras, talvez saudades, reconhecimento, talvez recorde alegrias, talvez conte outra vez como é dourada a memória dos seus risos, das suas palavras sempre tão queridas.

Mas hoje não: hoje apenas aqui tenho palavras brancas para tentar não ver o que se avizinha.



[Peço desculpa por estas palavras mas hoje, aqui, são as que me apetecem dizer. Fernando Guimarães disse as palavras que dedicou a um outro poeta com uma outra intenção e eu agarrei nelas e com elas tento consolar-me. A seguir Waldemar Bastos faz o que pode para me animar.]


Caminhando na ponte de acesso ao miradouro panorâmico da Boca do Vento
(sobre o Jardim do Ginjal)



                                                      Pode sê-lo de si mesma e tornar-se
                                                      vazia. O que dela é nosso
                                                      veio a ser a sua perda? Ninguém
                                                      a pronuncia. Sabemos que só existe
                                                      numa página agora branca,
                                                      quase transparente. Recebe o sentido
                                                      do que se não exprime sequer, e fica
                                                      assim: para lhe pertencerem
                                                      todas as palavras.


['Metáfora' de Fernando Guimarães in 'a vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura]


06 novembro, 2013

Tirando na pressa o que ainda é vestido na entrega da posse


Por estas escadas subo às vezes. Confessar outra vez para quê? A buganvília pende em cachos rosa vivo e é como um chamamento. Se me obrigarem a confessar, dir-vos-ei que é em busca da companhia da flor que eu vou. Cachos floridos e perfumados, tanto que eu gosto de tê-los nas minhas mãos. Fecho-as em concha e deixo que o cacho me encha a mão. Pego-o com delicadeza, não vá magoar-se.

Onde é que eu ia?

Ah, já sei. As escadas.

Subo-as e, enquanto as subo, já vou mentalmente retirando o vestido, revendo a cama no chão, as estrelas no céu. 

Ali chegando, procuro a sombra mais espessa, recolho-me num recanto, nua, disponível, expectante.

Depois começo a ouvir respirar, uma respiração apressada. Tanta impaciência, penso. Sinto que ele me espreita, o descarado, sinto que ele avança sobre mim. 

Deixo-o vir (e sei que a partícula reflexa chegará não tarda). É por isso que subo aquelas escadas. Depois junto as mãos em concha. Um calor macio pousa como um suave pássaro e ali se aninha. O Unicónio nada diz. Pousa a cabeça no meu ombro e respira mais devagar.

Na sombra, há muito deixei de resistir.

Depois, quando desço de novo as escadas penso que deveria optar entre a buganvília e o Unicórnio. Afinal a concha das minhas mãos é só uma.



[Abaixo da escada com buganvílias, Maria Teresa Horta regressa em toda a sua pujança e, a seguir, Mayra Andrade aí está para nos embalar.]


Escada para fora de casa numa casa em ruínas no Ginjal


                                                 O Unicórnio espreita-a
                                                 a vê-la desvendar-se
                                                 tão depressa uma só

                                                 como sendo inúmeras

                                                 Tirando na pressa
                                                  o que ainda é vestido
                                                  na entrega da posse

                                                  coração corrompido

                                                  Sendo a floresta
                                                  o lugar do passado
                                                  refúgio do Unicórnio

                                                  que na sombra resiste


['Perdição, IV' de Maria Teresa Horta in 'A Dama e o Unicórnio']

04 novembro, 2013

Recolho os ramos secos, a luz da oliveira no seu azeite


Era lugar de guerras, rainhas, cortes. Depois foi palco de revoluções, cultura, luz. E foi, depois, lugar de progresso, de fraternidade, de ilusão, de libertação.

E, depois de trevas, de um terror feito de negrume e abjecção, de novo a grande ave renasceu, longas asas, um insaciável gosto por largos horizontes.

E a seguir quis-se mais mas, nessa altura, já os homens grandes estavam de saída e os pequenos e ignorantes empregados tomavam conta de tudo como uma praga de pequenos animais que não param de se reproduzir.

Os palácios antigos e os novos palácios passaram a estar ocupados por uniformes civis, todos iguais, e, dentro dos uniformes, gente sem rosto, gente sem pátria, sem moral. Pequenos mercenários, cães sem a grandeza humana dos cães, insignificantes porcos sem a utilidade dos porcos, baços papagaios sem a graça dos papagaios. Comandam  o destino de milhões de pessoas com a incompetência trôpega e ridícula de uma tropa fandanga.

A Europa está de luto. De toda a ilustra gente sobrou num rebanho de cegos, de vesgos, de criaturas que a vista não consegue abarcar num espaço trágico, um côro de vítimas, um choro surdo de quem se perdeu na vida e por ela continua a arrastar-se, sem esperança, sem futuro.

Os europeus estão de luto.




[A seguir ao tugúrio que, de dia para dia, mais parece desmoronar-se, recebemos, de novo, a visita de Armando Silva Carvalho, alguém que fala palavras desassombradas. Mais a baixo, continuamos com a menina que tem o calor a embalar-lhe a voz]


A caminho do Ginjal



                                       Sou um europeu de luto,
                                       recolho os ramos secos, a luz da oliveira no seu azeite
                                       magro
                                       e que me ilumina.
                                       Choro a irmã, acolho este coro de vítimas,
                                       e sigo tropeçando num rebanho
                                       de cegos, de vesgos,
                                       de criaturas que a vista não consegue abarcar
                                       num espaço trágico.


                                       [Poema 42 de Armando Silva Carvalho in 'De amore']

Mayra Andrade interpreta 'Mana'





Tens a paz entre os mamilos e esperas que seja uma flor silvestre


Não fujas, deixa-te ficar aqui ao pé de mim. O mundo é verde e puro, e a terra cobre-se de um manto sedoso, limpo, uma cama macia e perfumada. Folhas, flores, lagos, reflexos dourados, espelhos molhados, saudades. Desdobro a dobra do lençol, espero enquanto te vejo a afastares-te. As nuvens correm no céu, cortinas que querem cerrar-se em volta das minhas pernas - e tu não vens.

Espero por ti na beira desta cama verde, chamo-te, chamo-te, vem, e, ao ouvir o meu chamamento, os pássaros elevam-se, voam brancos, cavalos livres, alados, e correm sobre mim, dançam à minha volta. 

E a paz que me trazem não a sei dizer por palavras. Destapo-me então, dispo-me, deixo que vejam os meus seios, que percebam como os meus mamilos são doces, e descubro as pernas para que vejam a flor silvestre que lá se esconde, e espero que vão contar o que viram, que voem até ti e te contem, te desafiem, te deixem doido de ciúme ou de desejo.

Depois adormeço. E depois não sei se o que sinto na minha pele é a suavidade das nuvens ou a penugem branca dos pássaros ou a macieza suada dos cavalos brancos ou se és tu que voltaste para colher a flor.



[Abaixo dos pássaros brancos como cavalos alados, poderão encontrar mais um poema de Abel Neves, o Poeta que eu conheci há pouco e que tanto estou a gostar de descobrir. Logo a seguir, a menina bonita da voz de mel e ouro, Mayra Andrade. Traz-nos a música de Zeca Afonso e chama amigos - e que mais poderemos nós querer?]


No Parque da Paz


                                                      entre o verde verde das folhas
                                                      a nuvem é um alvo branco
                                                      o cavalo no ribeiro é um dardo branco
                                                      tu não         não tens brancura
                                                      tens a paz entre os mamilos
                                                      e esperas que seja uma flor silvestre
                                                      as horas enchem-se de melancolia
                                                      adormeces com a boca na dobra do lençol
                                                      e é tudo
                                                      um lençol branco
                                                      igualzinho a cavalos e a nuvens



                                                      [Poema da pag.48 de Abel Neves in 'Quasi Stellar']