O homem ajoelha perante a bravura do rio. Ajoelha em silêncio. Com o olhar, o homem percorre as águas, espia os pássaros, espreita a bela cidade. Nada diz.
Estou em frente dele, longe mas de frente. Espreito-o pela lente, espreito-o de frente, sem lente. Não me vê, para ele sou invisível. A maré está muito cheia, a água varre o estreito caminho, agiganta-se, quase grita quando bate na muralha. Mas o homem não a ouve, não se mexe.
Está sozinho, imóvel, silencioso. Talvez o seu olhar se desfaça na água, talvez o seu corpo voe para muito longe. Ou talvez junto dele voem palavras invisíveis. Ou talvez as palavras ajoelhem a seu lado ou brinquem como os pombos que ali pousaram. Talvez as próprias vogais e consoantes se tenham evadido das palavras, aquietadas, brincando aos pés do homem. Ou talvez estejam também em silêncio, solitárias, esperando que o homem as junte, lhes dê uma razão de ser. Talvez esperem que o homem, que é um poeta, as tome nas mãos com a graciosidade de uma menina, como se as palavras fossem pombas, e depois faça a magia que costuma fazer quando a lua se afoga no rio: com um suave movimento de mão, deixa que as pombas voem e, com elas, as palavras e, dentro delas, ele, poeta invisível.
[No dia em que aqui trago pela primeira vez um poema do mais recente livro de Herberto Helder, o Poeta Invisível, continuo a escolher para música os sons quentes de Cesária Évora.]
O Tejo embravecido ao fim do dia no Ginjal com fotógrafo ao fundo |
nada pode ser mais complexo que um poema,
organismo superlativo absoluto vivo,
apenas com palavras,
apenas com palavras despropositadas,
movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
nada mais que isso,
música,
e o silêncio por ela fora
['Nada pode ser mais complexo que um poema' de Herberto Helder in Servidões]