Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 maio, 2013

nada pode ser mais complexo que um poema


O homem ajoelha perante a bravura do rio. Ajoelha em silêncio. Com o olhar, o homem percorre as águas, espia os pássaros, espreita a bela cidade. Nada diz.

Estou em frente dele, longe mas de frente. Espreito-o pela lente, espreito-o de frente, sem lente. Não me vê, para ele sou invisível. A maré está muito cheia, a água varre o estreito caminho, agiganta-se, quase grita quando bate na muralha. Mas o homem não a ouve, não se mexe.

Está sozinho, imóvel, silencioso. Talvez o seu olhar se desfaça na água, talvez o seu corpo voe para muito longe. Ou talvez junto dele voem palavras invisíveis. Ou talvez as palavras ajoelhem a seu lado ou brinquem como os pombos que ali pousaram. Talvez as próprias vogais e consoantes se tenham evadido das palavras, aquietadas, brincando aos pés do homem. Ou talvez estejam também em silêncio, solitárias, esperando que o homem as junte, lhes dê uma razão de ser. Talvez esperem que o homem, que é um poeta, as tome nas mãos com a graciosidade de uma menina, como se as palavras fossem pombas, e depois faça a magia que costuma fazer quando a lua se afoga no rio: com um suave movimento de mão, deixa que as pombas voem e, com elas, as palavras e, dentro delas, ele, poeta invisível.



[No dia em que aqui trago pela primeira vez um poema do mais recente livro de Herberto Helder, o Poeta Invisível, continuo a escolher para música os sons quentes de Cesária Évora.]


O Tejo embravecido ao fim do dia no Ginjal com fotógrafo ao fundo




                                       nada pode ser mais complexo que um poema,
                                       organismo superlativo absoluto vivo,
                                       apenas com palavras,
                                       apenas com palavras despropositadas,
                                       movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
                                       nada mais que isso,
                                       música,
                                       e o silêncio por ela fora


['Nada pode ser mais complexo que um poema' de Herberto Helder in Servidões]

28 maio, 2013

Cesaria Evora interpreta Lua Nha Testemunha



Bô ka ta pensâ
nha kretxeu
Nen bô ka t'imajiâ,
o k'lonj di bó m ten sofridu.
.
Perguntâ
lua na séu
lua nha kompanhêra
di solidão.
Lua vagabunda di ispasu
ki ta konxê tud d'nha vida,
nha disventura,
El ê k' ta konta-bu
nha kretxeu
tud k'um ten sofridu
na ausênsia
y na distânsia.
.
Mundu, bô ten roladu ku mi
num jogu di kabra-séga,
sempri ta persigi-m,
Pa kada volta ki mundu da
el ta traze-m un dor
pa m txiga más pa Déuz

Bô ka ta pensâ
nha kretxeu
Nen bô ka t'imajiâ,
o k'lonj di bó m ten sofridu.
.

27 maio, 2013

Descendo, sim, dos que hão-de vir - diz, na sua biografia, Mia Couto, o Prémio Camões 2013


Andas como se voasses, mansinho, suave passarinho, olhos doces, respirando o calor morno que vem do ventre da terra. Andas por entre as árvores, os teus pés entrançados nas raízes, os teus braços cobertos de flores, as tuas ideias entrançadas na folhagem, as tuas ideias voando como pássaros aninhados nos recantos das ramagens. 

E depois sorris, um animal macio, bom para afagar, leal, a quem as palavras vão comer à mão. Menino, menino, não escondas as palavras nos bolsos. Tão carregados eles ficam que ainda se descosem. Sorris, tiras as palavras dos bolsos como quem solta borboletas, sentas-te com elas em volta, e o sol põe-se, rosado, e é festa de dançar e cantar e bater palmas, batuque, batuque, e os corpos soltos, o calor, o suor, o perfume. Sorris.

Depois deitas-te na terra, tapas-te com flores, com o luar. Olhas as estrelas, inventas histórias, saltas de uma para outra, soltas balões coloridos, embalas palavras.

Mas, logo depois, mil mulheres nuas saem das águas e vêm refrescar o teu corpo, deitam-se sobre ti, despem-te, lavam-te e tu, sedutor, sorris, sabes dos mil encantos do amor. Mas elas pedem-te: salva-nos, salva-nos com as tuas palavras, com a tua poesia. Sorris, doces são as ternas tentações. Fechas os olhos e pensas, é um sonho, é um sonho. Abençoado sonho. 

Mas depois elas puxam por ti, levantam-te, levam-te pela mão, e, enquanto entras nas águas, ouves-te a dizer: 

                                           No início,
                                           eu queria um instante.
                                           A flor.

                                           Depois,
                                           nem a eternidade me bastava.
                                           E desejava a vertigem
                                           do incêndio partilhado.
                                           O fruto.

                                          Agora,
                                          quero apenas
                                          o que havia antes de haver vida.
                                          A semente.



[O poema acima chama-se 'Idades'. No dia em que foi atribuído o Prémio Camões a Mia Couto, trago-o para o Ginjal, para o pé de mim e dos meus Leitores e faço a festa, assim lhe enviando os meus parabéns. Para ajudar à festa escolhi uma música moçambicana. É no post abaixo: vamos dançar]


Homem andando num cais do Ginjal como se estivesse prestes a entrar no Tejo para se dirigir a Lisboa



                                                 Todo o meu nascer
                                                 foi prematuro.

                                                 Agora,
                                                 em meus filhos
                                                 me vou dando às luzes.

                                                 Descendo, sim,
                                                 dos que hão-de vir.



                                                [Biografia de Mia Couto in 'idades, cidades, divindades']

*


cego
de ser raiz

imóvel
de me ascender caule

múltiplo
de ser folha

aprendo 
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo



[Árvore de Mia Couto in 'Raiz de Orvalho e Outros Poemas']

*

A semente
que havia, antes de haver vida,
apenas a quero…
agora.

O fruto,
incêndio partilhado
na vertigem do desejo,
traz a eternidade…
depois.

A flor,
quero-a, num instante…
no início.



[Poema de dbo em comentário abaixo]

Mabermuda interpreta Marabenta Vuthu




23 maio, 2013

Tenho a impressão de que apenas me amas de memória


Há um silêncio diferente quando se avança pelo rio rumo ao mar. O som da água torna-se constante, uma música que se instala no nosso peito, deixamos de a ouvir, tal como não ouvimos as batidas do nosso coração. 

E há uma liberdade imensa que nos faz sentir poderosos. 

Hoje, quando saí de casa, sentia-me insignificante, uma presença irrelevante que facilmente dispensarias. Lias um livro e a semântica era, certamente, mais importante que os meus sentimentos. Há muito que deixei de disputar um lugar especial junto a ti. Sei que primeiro estás tu, depois o que escreves, talvez depois o que lês (embora, por falsa modéstia, digas que é ao contrário), a seguir a tua pequena liberdade, depois os teus recantos de sombra e, talvez a seguir, estarei eu; mas, se calhar, estou a ser optimista. Dizes que me amas mas só o dizes se te pergunto. E sei que me amas apenas para evitares a maçada de assumires que não me amas. Talvez até te seja útil como personagem das tuas fantasias literárias mas sei bem que pouco mais valho para ti do que isso.

Queixas-te que desvalorizo o que escreves, os teus gostos literários. Não é verdade. Gosto dos teus poemas, sou capaz de os dizer todos de cor. 

Também conheço de cor a tua respiração, a forma como te deitas de lado enquanto dormes, a forma como o teu cabelo adormece na almofada. Também conheço de cor o teu olhar, as sombras que o atravessam.

Mas não és mais do que isso. Um corpo frio, habitado por sombras, onde a respiração só se sente enquanto dormes.

Fujo, pois, de ti. 

Entro no veleiro e, de pé, vejo como a luz dourada banha a cidade, ilumina o rio. Enrolo as velas. Deixo que a maré me leve. Entro no rasto de luz, deixo que o sol me leve com ele. Entrarei em silêncio na noite, esperarei a madrugada, sorrindo, livre. Momentos assim de liberdade e silêncio, seguindo no rasto da luz sobre o rio, são para mim os meus momentos de felicidade, de doçura. E até poderia depois contar-te isto. Mas não valerá a pena. Só percebes o que vem escrito nos livros. Aí analisas, com ternura, as construções gramaticais, vejo até como deixas tombar a cabeça, sorrindo, enlevada. Mas se sou eu a falar-te no que penso ou sinto, aí, já estou a dizer banalidades. Aliás, falar-te em felicidade é coisa que te deixa doente.

Por isso, nada te direi. Guardarei no meu peito esta felicidade tão doce que infelizmente não queres conhecer. Eu persigo a luz, quero viver. Tu procuras as sombras e as palavras dos mortos.



[Abaixo do veleiro que se dirige para a barra ao pôr do sol, temos um belo poema de Ricardo Gil Soeiro e, abaixo, para encher de luz o Ginjal e o coração de quem aqui me veio visitar, temos mais um belíssimo momento com a maravilhosa música do Mali. Só de pensar que tenho que variar já estou a ficar com saudades...]


Hoje ao fim do dia veleiro desliza na direcção do pôr do sol
(e felicidade é estar ali, sobre o rio, e ver imagens tão belas como esta)



                                                    Para que conste:
                                                    dentro de ti ouve-se
                                                    um súbito estremecimento,
                                                    mas não sou capaz de dizer
                                                    de cor a tua poesia reunida,
                                                    e tenho a impressão de que
                                                    apenas me amas de memória.
                                                    Tendo amado mansamente
                                                    a morte, e no escuro esquecido
                                                    a arte e a madrugada, sorrio
                                                    agora perante as marés.


                                                     [Poema XXde Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante]


Bassekou Kouyaté & Toumani Diabaté & Rokia Traoré interpretam Kanimba





22 maio, 2013

O vulgo intimamente desconfia de quem da natural prisão se evade


Caminho pela beira do rio quase todos os dias. Onde haja um rio e eu possa andar, lá estarei. Mesmo nos dias de frio, vento e chuva, eu caminharei ao longo de um qualquer rio. Mesmo naquelas noites inclementes em que as amarras dos barcos nos cais rangem como mulheres gemendo aflitas, mesmo assim, eu ando por lá.

Digo que respirar a maresia me retempera porque gosto de sentir a humidade do rio a entrar dentro do meu corpo. Lava-me.

E gosto de andar tendo a largueza ampla, limpa, luminosa do rio e da grande cidade de um lado e, do outro, o amparo de ruínas que carregam na sua pele a história de mil vidas, de mil amores, de mil desgostos.

E gosto de andar de manhã, quando a frescura é inocente, ou de tarde quando o langor sobe do rio para os corpos que se abandonam, e gosto muito, ah mas muito mesmo, de andar de noite, quando a escuridão carrega mistério, cumplicidade, doces abandonos.

Caminho e, enquanto aspiro a frescura do rio e olho a largueza dos espaços, na minha cabeça voam palavras. Às vezes digo-as em voz alta e não me espanto se ouço, cada vez mais doida. Há ternura e espanto nessa observação. Não me inibo por isso, por vezes levanto os braços, faço que voo, e solto as palavras para que voem livres à minha frente. Ouço, não tens juízo nenhum. Outras vezes, quando passo junto às escadas de pedra que, desprotegidas, descem até dentro do rio, digo como se confessasse um segredo, um dia desço as escadas e continuo a descer até ver onde vão dar, desço até ao fundo do mar. E a voz ao meu lado diz, deixa-te de maluquices, anda.

E eu vou.

Ainda tenho muito tempo pela frente. 

Depois, mais à noite, agora, aqui, na minha casa perto do céu, quando a noite já vai alta, sento-me, começo a escrever. A esta hora as palavras já se recolheram, estão agora dentro da minha cabeça, brincam, espreitam, querem ver o que vou escrever e, sem que eu as chame, aparecem aqui, escorrem-me pelos dedos como meninos descendo por um escorrega.

E eu deixo-as. Sempre gostei de crianças. E de palavras.



[Abaixo da imagem do homem que, ao cair da noite, olha o rio e Lisboa, a Magnífica, tenho um poema de Hélia Correia , uma mulher que enfeitiça as palavras, dedicado a Vasco Graça Moura, outro amante da língua portuguesa. E, a seguir, uma vez mais, a música orgânica e luminosa do Mali, com Bassekou Kouyate e amigos.]


Num cais do Ginjal, sobre o Tejo, o Padrão dos Descobrimentos em fundo



                                             O vulgo intimamente desconfia
                                             de quem da natural prisão se evade:
                                             quem de dormir não tem necessidade
                                             e faz da escuridão um novo dia.

                                             nem estranho é que tenhamos por verdade
                                             que andou ali manobra de alquimia,
                                             que o desumano dom da poesia,
                                             como a um Fausto o dom da mocidade,

                                             oferecido lhe foi. Mas, por penhor,
                                             dele exigiu dedicação maior
                                             do que a de pai, de príncipe ou soldado.

                                             Como um torreão, entre obras raras,
                                             este homem passa as suas noites claras
                                             a escrever, sem descanso, enfeitiçado.



[Soneto de Hélia Correia in 'a vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura]


Bassekou Kouyate & Ngoni Ba com Amy Sacko & Kasse Mady Diabaté - Jamana Be Diya





21 maio, 2013

Que peso tem agora a dor nessa balança cujo fiel nem tu consegues acertar?


Podia parafrasear, que gaivotas são estas que não fazem sombra no mar?

Elas voam tão livres, tão rápidas, atravessando os longos e límpidos espaços e, num momento, estão junto a nós e, no instante seguinte, já estão longe, numa distância que nos é estranha, imaterial, quase um sonho.

Pudesse eu ser assim, ágil, agora aqui e, no instante seguinte, na lonjura mais inatingível. E não haver nenhuma sombra, nenhum rasto. Desaparecer. Desfazer-me no horizonte, entrar nas nuvens, soltar as lembranças como quem desmancha uma trança, como quem deixa cair um vestido, e, nua, esquece a identidade. Ou então entrar no mar.

Mas não posso. Sou apenas uma mulher. Por isso, enquanto olho as gaivotas que pairam sobre mim como grandes anjos brancos, percorro os caminhos de areia, deixo que os meus pés se enterrem, dust to dust, e a descrença tira-me a vontade de andar, deixo-me cair, sem forças, quebrada. 

E, quando sinto que a grande onda que me levará se aproxima, enfio a mão no peito e arranco o coração, seguro-o na mão, e, em silêncio, o sangue mergulhando na areia, já afastado de mim, espero que um anjo ou uma gaivota o venham buscar para o enterrarem bem longe, nas profundezas do mar ou no esvaimento do horizonte.




[Reparo agora que acabei de suspirar longamente. Escrevi de seguida, respiração suspensa. Fui atrás do poema de Armando Silva Carvalho e deu nisto. É agora tempo de espantar tristezas e, para isso, nada melhor do que Bassekou Kouyate. Uma festa para os sentidos.]


Gaivota cruza o Tejo e aproxima-se da Ponte Vasco da Gama



                                                 Aqui no céu a prumo escrevem-lhe as gaivotas
                                                 um destino que já não deixa sombra
                                                 entre o desfraldar das nuvens
                                                 e o texto da lembrança.

                                                 Que peso tem agora a dor nessa balança
                                                 cujo fiel nem tu consegues
                                                 acertar?

                                                 Na areia que escorre da cabeça,
                                                 só mesmo os anjos, solícitos, parecem rolar tubos,
                                                 soprar as clássicas doenças da eternidade,
                                                 e esvaírem-se em sangue tenro e terno,
                                                 sob o sol banal, na pele incipiente e sem memória justa
                                                 da sepultura líquida.



['42 canções entre 2 portas', 2, de Armando Silva Carvalho in De Amore]

Bassekou Kouyate & Ngoni ba - Afrikafestival Hertme




20 maio, 2013

Todo o amor do mundo não foi suficiente, vou para a cama estou doente, nunca ninguém apagou este lume


A Naifa é um grupo composto por: João Aguardela (entretanto desaparecido, tão precocemente), Vasco Vaz, Luís Varatojo e Maria Antónia Mendes. Leio na Wikipedia que conjuga as linguagens clássicas do fado com a pop-Rock mas eu conheço-os por cantarem alguns poetas. 

E poesia é poesia, seja lida, dita ou cantada - e aqui, no Ginjal & Lisboa, é sempre muito bem vinda.




"Todo o amor do mundo", letra de José Luís Peixoto, música de João Aguardela e Luis Peixoto, voz de Maria Antónia Mendes - do disco "3 minutos antes de a maré encher" (2006)


todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. 
ficaram só os papéis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençóis de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.




"Porque me traíste tanto", letra de Adília Lopes, música de João Aguardela e Luís Varatojo e voz de Maria Antónia Mendes - do disco "3 minutos antes de a maré encher" (2006)


porque tenho eu 
frieiras se nunca tiro as luvas? 
porque tenho eu arranhões 
se os meus gatos são meigos? 
como dizia uma pobre rapariga 
que era criada e mal sabia ler 
também eu vou dizer 
coração partido 
pé dormente 
vou para a cama 
que estou doente 
porque me traíste tanto 
se os meus gatos são meigos? 
porque me traíste tanto 
se eu nunca tiro as luvas?





"Rapaz a arder" letra de Eduardo Pitta do disco "Canções Subterrâneas" (2004)



Está um rapaz a arder
em cima do muro,
as mãos apaziguadas.
arde indiferentemente à neve que o encharca

Outros foram capazes
de lhe sabotar o corpo,
archote glaciar
nunca ninguém apagou esse lume


&

Bassekou Kouyate & Ngoni Ba interpretam Ladon (no Royal Albert Hall)




19 maio, 2013

E se dissesses o meu nome eu morreria de amor


Muito vento. Frio. Chuva. Percorro os caminhos rente ao rio com um tremor no corpo. Não tenho onde me abrigar. As ondas batem com força contra a muralha do cais. As gaivotas rasgam os céus soltando gritos desesperados. Ao longe, um pequeno veleiro dobra-se, quase se deita sobre as águas revoltas.

Vou sozinha. 

A noite tomba sobre o rio, as paredes escurecem. As janelas há muito não existem. O frio, o vento, a escuridão entra nas casas abandonadas. Pudesse eu ter onde me abrigar...

E, então, ao passar pela rua desabrigada e infeliz, vejo uma parede derrubada. Espreito. Um templo. 

Disse que ia sozinha mas não é verdade. Tu vais ao meu lado, em silêncio, distante. O teu braço sobre os meus ombros poderia abrigar-me. Mas não o fazes. Podia pedir-te amparo mas não o faço.

Olho o rio. Já não vejo o veleiro. O vento levou-o para longe. Ou foi engolido pelas águas. Ou foi ceifado pelo vento, talvez o vento o tenha levado pelos ares, talvez ande por aí a voar, perdido.

Então, cheia de frio, molhada, entro no templo, um templo muito belo, habitado apenas pelos deuses.

Ao fundo, vejo uma luz. Não sei de onde vem, talvez do lado mais luminoso do céu. O vento deixa de se ouvir, a chuva deixa de cair. Apenas silêncio e luz. E eu e a minha solidão assustada.

Mas tu vens atrás de mim, em silêncio também. E, então, aproximas-te, abraças-me, dizes o meu nome. E eu quase morro de amor por ti.



[Abaixo do templo do Ginjal, mais um poema de Maria do Rosário Pedreira. E, a seguir, volto à música do Mali. Há descobertas felizes. Hoje tenho Bassekou Kouyate com uma música muito recente - e muito boa.]


Ruínas no Ginjal, hoje, num dia em que o vento frio e a chuva tornavam este local particularmente desabrigado



                                                   Esta noite o vento ceifa os bosques e
                                                   uma raiva sacode a terra. Se a voz
                                                   do mar chamasse pelas velas, os estreitos
                                                   aguardariam um naufrágio. E se dissesses
                                                   o meu nome eu morreria de amor.

                                                   Devo, por isso, afastar-me de ti ― não
                                                   por ter medo de morrer (que é de já não
                                                   o ter que tenho medo), mas porque a chuva
                                                   que devora as esquinas é a única canção
                                                   que se ouve esta noite sobre o teu silêncio.



['Esta noite o vento' de Maria do Rosário Pedreira in 'Poesia reunida']


Bassekou Kouyate & Ngoni ba interpretam "Jama ko"


Estou fã da música do Mali, fã, fã. 





17 maio, 2013

Emily Dickinson foi ao cinema


Para a MAP depois de ler o seu comentário 


Num espaço dedicado à língua portuguesa, excepcionalmente trago aqui ao Ginjal um vídeo dedicado à Poetisa Emily Dickinson e às suas 'incursões' no cinema. Agradáveis surpresas. Muito bom.





16 maio, 2013

Seguindo o sulco negro das consoantes dos teus cabelos, desenho lentamente os traços do teu rosto [no dia em que Nuno Júdice ganhou o Prémio Rainha Sofia]


Passas como uma sombra, uma nuvem. Percorro a rua e tu do lado de lá do vidro. Não me vês. Segues o teu caminho. Para ti não existo, pois não?

És um rosto recortado contra a mais bela cidade do mundo e, ao ver-te, é como se a cidade existisse apenas para emoldurar o teu rosto. Pelo meio corre um rio mas é como se te envolvesse como um manto azul. Segues, pois, como uma rainha, corpo inteiro, olhar frontal, orgulhosa, uma mulher em toda a sua majestade.

Deslizas como um enigma. Olho-te. Não vejo de que cor são os teus olhos, os teus lábios, o teu cabelo. Não sei como é a tua voz. Quando falas é como se as pétalas das palavras voassem em tua volta como pássaros brancos, como uma coroa alada? Gostava de saber.

Estou agora a escrever tentando descrever-te enquanto segues o teu caminho. Mas não consigo, sobram-me adjectivos, falta-me pele, perfume, o teu olhar.

Retiro algumas vogais, tento chegar à tua carne que é com certeza macia, tento chegar à tua alma, se necessário for retirarei também algumas consoantes. Tudo farei para te ter aqui, límpida, na superfície branca do écran que me olha.

Mas não te consigo adivinhar. Apenas adivinho o teu rasto.

Não faz mal. Talvez seja mesmo melhor que continues assim, misteriosa, uma mulher que a seguir se vai evaporar e entrar na paisagem azul, rodeada de pétalas silenciosas, de palavras luminosas, de pássaros brancos.




[Hoje é um dia grande para Nuno Júdice, um Poeta que transporta a luz, a música e o amor para dentro da sua poesia. Para o assinalar trago-o para o Ginjal, é a sua 14ª visita, e é sempre dia de festa quando isso acontece. Para o acompanhar com a dignidade que o momento requer, uma música também muito especial - e, uma vez mais e sempre, os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente me dá a conhecer momentos musicais tão belos -, a música coral de Arvo Pärt]


No Cais de Cacilhas, de frente para Lisboa, o Tejo de permeio




                                            Seguindo o sulco negro das consoantes
                                            dos teus cabelos, desenho lentamente os traços do
                                            teu rosto. O meu objectivo é recortá-lo do papel
                                            e ver-te à transparência da página, limpando
                                            de vogais as tuas faces. Ponho-te neste retrato
                                            de olhos fechados, e colho dos teus lábios
                                            as pétalas que caíram com as sílabas
                                            do amor, para as voltar a pousar nas mãos
                                            que me estendes. Depois, vou buscar a luz
                                            que me falta ao fundo da tarde, e derramo-a
                                            pelo teu corpo, vendo soltarem-se da tua pele
                                            as gotas primaveris de um céu límpido
                                            como a imagem que aqui vejo florescer.


                                            ['Modelo ao ar livre' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']


Antiphonus Ensemble (Zagreb) interpreta Arvo Pärt - Da Pacem





15 maio, 2013

Roubam-me Deus, outros o Diabo - quem cantarei?


Passam em silêncio os velhos. Receiam que os outros percebam a fome e a vergonha. 

Correm as velhas para o balcão da fruta. Receiam que outras velhas se lhes antecipem na escolha da fruta mais pequena, mais murcha e mais barata.

Saem do barco as mulheres de cabeça baixa, cansadas, cheias de sono, carregadas de sacos. Trabalham desde o raiar da aurora e, quase sem forças, têm que ir tratar da sua própria casa. 

Atiram a linha ao rio os homens cheios de frio e desalento esperando que um peixe se acomode ao anzol para terem o que comer ao jantar.

Senta-se no banco da beira do rio o homem sozinho, olhando os pés, sem saber como sobreviver sem trabalho.

Encosta-se ao farol, chorando, a mulher que espera que a noite caia para ir para uma casa sozinha, agora que o filho partiu para tão longe.

E passo eu, máquina fotográfica em baixo, incapaz de fotografar a tristeza e sofrimento alheios. Solidária. Revoltada.

Tanto pesar, tanta falta de esperança. Tanto medo. Tanto, tanto medo. Por todo o lado. As portas fecham, as casas ficam vazias, as ruas silenciosas.

Roubam-nos tudo. O presente e o futuro. A família e o amparo. O trabalho. O país. As certezas e, pior, muito pior, as esperanças. A uns roubam também a casa. A outros roubam a vontade de viver. Roubam-nos tudo. Tudo. Até ao último cêntimo, ao último suspiro, à última lágrima.

Quando todos tiverem desistido, quando todos tiverem perdido as forças, a alma, o coração, quem cantarei?

Quem sorrirá comigo?

Que mãos se juntarão às minhas para abrir novos caminhos?

A quem me queixarei se já me roubaram Deus, o Diabo, se há muito tempo o último Rei se foi? A quem?

A quem chorarei?




[Abaixo das ruínas do Ginjal, agora que os velhos armazéns estão a ser destruídos, temos, uma vez mais, o Poeta do desencanto, Jorge de Sena. Depois José Afonso interpreta a bela canção que resulta deste poema. E, depois, abaixo, um momento de recolhimento. O Antiphonus Ensemble interpreta Carlos Gesualdo. Recolhamo-nos dentro de nós.  Talvez nos surja uma boa ideia para sairmos do negrume onde nos fecharam]


Destruição das ruínas do velho casario do Ginjal




                                                     Roubam-me Deus,
                                                     outros o Diabo
                                                     - quem cantarei?

                                                     roubam-me a Pátria;
                                                     e a Humanidade
                                                     outros ma roubam
                                                     - quem cantarei?

                                                     sempre há quem roube
                                                     quem eu deseje;
                                                     e de mim mesmo
                                                     - todos me roubam

                                                     roubam-me a voz
                                                     quando me calo,
                                                     ou o silêncio
                                                     mesmo se falo
                                                     - aqui d'El Rei!



['Epígrafe para a arte de furtar' de Jorge de Sena in Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço]




Antiphonus ensemble (Zagreb) interpreta Carlo Gesualdo, também conhecido por Gesualdo da Venosa - Plange quasi Viego, Sicut ovis





14 maio, 2013

Um rasgo de Ave a soprar contra Ar muito denso




A jovem mulher retira o chapéu que pousa com cuidado, estende as fitas, alisa-as, e ali fica. 

Depois, por nada, pega numa pequena boneca de trapo, afaga-a com jeito maternal. Dura pouco esse gesto de ave: pouco depois pousa-a com desvelos de mãe. 

Mas fica de pé, solitária, sem objectivo. Despe, então, o longo e rodado vestido, estende-o sobre a cama vazia. Tira os sapatos, tão pesados, e logo ela que gosta tanto de leveza, arruma-os, um ao lado do outro, dois sapatos tristes. Depois puxa para baixo as meias, retira-as, dobra-as. 

Vê-se ao espelho alto no quarto. Agora apenas camisas interiores, roupa de algodão, simples, lisa, branca. Os pequenos seios afloram quando ela abre os atilhos da frente. Deixa descair uma alça. Solta o cabelo. Deixa que o longo cabelo roce ao de leve os mamilos e logo eles se enrijam. Olha-os, rosados, erectos. 

Caminha até à janela. Tanta a solidão, tão rasgados e longínquos os voos com que tanto sonha. Abre os vidros, deixa que a maresia entre, aspira-a, os seios resfriados, desafiadores. Deixa cair as camisas que são feitas de nervuras, rendas, pregas, fitas. Despe depois os pequenos calçõezinhos, tufados, com rendinhas. Fica nua, branca, virgem, em frente do espelho, os longos cabelos pudicamente cobrindo o corpo macio, ainda não profanado. 

Senta-se, então, na pequena mesa junto à janela aberta, deixa que o som do rio se instale junto a ela, deixa que a luz a acaricie. Começa, então, a escrever palavras que lhe saem sem pensar,

Alguns Dias dos outros se separaram
Para com distinção adormecer -
O Dia em que um Companheiro chegou
Ou foi forçado a morrer.


Não escolheu as palavras. Saíram das suas mãos como as folhas nascem das árvores. Lê e reconhece-se nelas, fêmea intranquila, mulher tremendo sobre o arame, fugindo do equilíbrio, atraída pelo abismo, pelo doce tumulto das palavas.

Depois fecha o caderno, pousa a caneta, fecha o tinteiro. Olha-se ao espelho. Depois, sem pensar, sobe para o parapeito da janela, aspira o ar fresco que sobe do rio. E voa.

Ainda hesita, pensa que talvez deva pousar na margem, retroceder. Mas não. De novo levanta voo, livre, branca. E pensa que talvez esta suave sensação seja afinal l'esthétique de la solitude e, sorrindo, vitoriosa, acrescenta para si própria: solitaire mais jamais seul. E voa rasgando o ar, breve traço de liberdade cruzando o horizonte.




[Abaixo da gaivota pensadora temos mais um poema de Margarida vale de Gato e, logo a seguir, mais um momento de recolhimento, a música de Palestrina elevando-se em toda a sua imensa beleza e transportando um abraço para os autores dos blogues onde fui beber algumas palavras e inspiração]



Une mouette au Ginjal



                                            Seria então o esforço para escrever
                                            Sobre o que nos suspende - um traço -
                                            Um rasgo de Ave a soprar
                                            Contra Ar muito denso - breve
                                            O Tumulto, gago o Eco de fêmea
                                            Ímpar, tremendo pelo Arame -

                                            Teu precário equilíbrio - que
                                            Valia? Qualquer Coisa menos
                                            Isto - embora sequer diferente
                                            E até pior - porquanto se
                                            Ressente a solitária Invenção
                                            Do que não se deu a escolher -



                                            ['Emily Dickinson, II' de Margarida Vale de Gato in 'Mulher ao Mar']


Rosario Musica Verbali interpreta Giovanni Pierluigi da Palestrina: Kyrie (Missa Papae Marcelli)




13 maio, 2013

Meu eco trocado onde o vagar permite esquecer as ciladas


Passo devagar, em silêncio, rente às casas abandonadas. Do outro lado, o rio belo e indiferente, aquela indiferença de quem se sabe livre, independente, belo demais.

Passa uma ou outra gaivota, passa ao longe, vagaroso, um grande navio, talvez passe um frágil veleiro branco, asas deslizando sobre o rio. E vou eu, sem mais ninguém, eu e os meus pensamentos, as minhas memórias, os meus sonhos.

E, então, inesperadamente, ouço chamar o teu nome. Detenho-me. 

Ouço de novo. Chamam por ti e é a minha voz. 

Estremeço. Não é possível. A medo, a tremer, encosto o ouvido à porta de onde vem o chamamento. Ao encostar-me a porta abre-se, rangendo, um lamento.

Uma parede de onde a tinta branca se descola, restos de um outro tempo. Uma escada íngreme. Ninguém. 

Do fundo, lá de cima, de novo ouço a minha voz chamando por ti. Não percebo. Parece um eco longínquo. 

Começo a subir, o coração aflito, se calhar é uma cilada. Mas continuo. Todos os abismos são atraentes. 

Não sei para onde vou. Talvez para o esconderijo a céu aberto que há depois da porta que, ao fundo da escada, se abre para uma muralha, talvez para o céu. 

Subo seguindo o eco da minha voz, sem saber o que vou encontrar quando chegar ao cimo das escadas. Tremo, transpiro, mas vou. Não sei se estarei à minha espera. Eu ou a minha sombra. Ou o meu corpo imaterial feito de palavras. Ou aquele que um dia, há muito tempo, tu amaste e que pelo teu corpo se perdeu.



[Abaixo da escada que vai da rua até a uma porta que abre para o céu, temos mais um poema de Emerenciano, e eu gosto dos poemas dele, são poemas que me levam para imprevistos esconderijos. Logo a seguir, temos um momento de tranquilidade, de paz, de sombra e frescura, um bom som para nos acompanhar quando buscamos o nosso eco: um coro interpretando Allegri]


No velho casario do Ginjal, casa abandonada



                                                    Meu eco trocado
                                                    onde o vagar permite
                                                    esquecer as ciladas
                                                    volta sempre
                                                    e o corpo revelado
                                                    sem querer, tantas vezes
                                                    quantas as oportunidades
                                                    desperta para o esconderijo
                                                    que começa a ser.



                                                    ['Esconderijo' de Emerenciano in 'Ir e Vir]

*


Vagarosa
silenciosamente
saímos do nosso interior
e
como pássaro acordado
rumámos de encontro 
ao sol 
que deixámos 
para lá
dos nossos sonhos. 

Desconhecemos
o que o medo
nos trará, 
no encontro 
ou desencontro 
com o vazio possível. 
Felizes seremos, 
se esse vazio
guardar
a razão dos nossos anseios. 

Assim, 
valerá subir, 
voar… 
procurar
o mundo ignoto, 
quase imaterial, 
que nos espera.



[Texto/Poema do Leitor dbo em comentário aqui abaixo]

Peter Phillips e Tallis Scholars interpretam Allegri: Miserere




Como uma romã sem bago, suspensa num galho ansioso


Do mar saíu voando. Vinha molhada, dourada. As gaivotas olhavam-na com estranheza. Uma mulher a sair do fundo do mar a voar, isso já elas tinham visto. Mas isto não.

Já tinham visto também uma sereia alada que por vezes se transforma em ninfa e então parece meio borboleta, meio medusa, como se tivesse saído de uma gruta algures no seio da floresta, outras vezes parece a musa de um poeta perdido entre as rochas, um certo poeta que, por vezes, sai de entre as paredes arruinadas da beira do rio.

Podia ser essa sereia, ninfa, musa. Mas não era. As gaivotas olharam com atenção. Nunca tinham visto nada assim. Dos cabelos pendiam cachos dourados e sumarentos, dos seios nasciam-lhe bagos de romã que apetecia chupar, dos lábios nasciam morangos que apetecia trincar, do sexo nasciam mãos suaves e apelativas, dos olhos saíam murmúrios, apelos. As gaivotas estavam mudas.

Mas, depois, o que quer que fosse voou. Foi enlear-se no tronco de uma árvore, foi misturar-se na folhagem macia, fez amor com os pássaros, deixou-se possuir pela aragem húmida, rendeu-se. As gaivotas baixaram os olhos, nunca tinham visto tanta indecência.

Depois, como uma suave bailarina, dourada, delicada, ágil, grácil, o que quer que fosse sentou-se na relva e ficou a olhar o céu, o rio, o imenso espaço.



[Abaixo do jardim, temos mais um poema de Ana Marques Gastão. A seguir - e uma vez mais, indo de encontro ao desafio de um generoso Leitor, a quem mil vezes agradeço, que me enviou música adequada a espaços de recolhimento - temos canto gregoriano. Uma confidência: não me perguntem porquê mas canto gregoriano para mim é do mais sexy que há. Talvez por isso o texto que acabei de escrever]


No Jardim do Ginjal



                                                    Debruo as pestanas
                                                    na orla d'uma folha,
                                                    e logo se aquietam
                                                    em figuração de leque.
                                                    Medusas abusivas,
                                                    acolhem, em arrulhos
                                                    de frémito, a luz,
                                                    como a romã,
                                                    sem bago, suspensa
                                                    num galho ansioso.


                                                    ['Pestanas de folha' de Ana Marques Gastão in Adornos]

09 maio, 2013

Chego enfim à líquida presença do coração sonhado


Ando pela cidade, percorro as estreitas ruas, piso as pedras da calçada, sigo o teu rasto.

Becos, vielas, muralhas, pátios e eu procurando, aspirando o ar, para ver se encontro o teu perfume, o meu nome escrito numa parede, o meu coração sangrando por ti, vestígios do teu amor por mim. Não, nada.

Mais à frente, um banco de jardim, talvez lá estejas. Mas não. Olho em volta. Nada. 

Mas eis que, de repente, começo a ver que o céu se alarga. E vejo, à frente, flores do campo, inocentes como meninas numa roda. E as meninas louras dançam ao vento e delas vem um perfume que se mistura com a maresia que sobe do rio muito azul que corre lá em baixo.

Sorrio. É então aqui que estarás, menina alegre, noiva coroada de flores, no meio das espigas neste dia da ascenção, é aqui que estás, envolta em luz.

Apresso o passo, chamo por ti. Mas não me respondes.

Olho. Levanto o meu olhar na direcção da luz doce, perfumada, suave.

E, então, vejo-te, voando sobre o rio, branca, longas asas, aberta como uma bandeira de alegria. Vens, voas na minha direcção, deslizas, e sorris, rendida, feliz.

Sonho? É o meu coração que sonha?



[Abaixo das flores do campo voando sobre o rio, poderão ver mais um belo poema de um Poeta que aqui tem assento especial, Pedro Tamen. Logo abaixo, Ali Farka Touré chega com o seu encantamento luminoso. É Dia de Espiga.]


Na Boca do Vento sobre o Ginjal, de frente para Lisboa, o Tejo pelo meio



                                                 Entro na floresta, sigo por entre
                                                 os ramos, vou pelos caminhos
                                                 que tu própria me indicas,
                                                 e chego enfim à líquida presença
                                                 do coração sonhado:
                                                                                      rendo-me
                                                 na tua rendição, e a bandeira
                                                 é branca de alegria.



                                                 [Poema 12 de Pedro Tamen in Rua de Nenhures]

***



Escrever
O teu rosto
A sombra exacta dos teus seios
A dimensão líquida da tua pele
Na planície branca
Do meu poema.
Mar de palavras
Sempre desfeito 
Pelo ruído desajeitado
Da minha sede.



[Poema de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]


Ali Farka e Khaira Arby




A distância entre o sol e a penumbra


A distância entre o sol e a penumbra pode ser uma janela. 

Mas e se a janela tiver o vidro partido? E se, por detrás do vidro, não estiver alguém que olha? Se lá estiver uma parede de madeira com um olho vazio?

E como chamaremos a um olho vazio numa parede de madeira por detrás de uma janela com um vidro partido?

Como chamaremos à destruição lenta, à decomposição progressiva? A ausência de pele, a ausência de voz, de emoções, que nome tem? Como chamaremos à aceitação de tudo o que nos impõem mesmo quando o que nos impõem é ácido que dilui a nossa pele?

Como chamaremos a um medo silencioso, viscoso, que se cola à carne e a come como uma gangrena que avança, maligna e impiedosa?

Como se chama à ausência de palavras, à ausência de tudo? Ao vazio que corrói as janelas, as paredes, a madeira, os olhos, a vontade? 

Não sei. 

Só sei que não aceito isto.



[A seguir ao olho vazio que espreita atrás do vidro partido, temos um pequeno poema (pequeno no número de palavras!) de André Tomé. E, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Ali Farka Touré. A música do Mali é luminosa]


Janela partida numa casa abandonada no Ginjal



                                            o raio de uma circunferência no espaço de uma cidade
                                            não passa da distância entre o sol e a penumbra


                                            [Poema Insulae, IX de André Tomé in Insula]

***

Janela que o foi
agora destroço
onde ninguém mais
se assoma.
Casa,
outrora berço,
lar
refúgio,
esventrada já.
O vazio
dia e noite
manchando as paredes tristes.
Ruínas, ausência
sombra das sombras
de quem lá morou
memória
há muito tempo abandonada.



[Poema de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]


***


Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão


[Vítor Santos. Cancioneiro Alentejano. Poesia popular. - enviado por Ana de Sá]