Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

22 maio, 2013

O vulgo intimamente desconfia de quem da natural prisão se evade


Caminho pela beira do rio quase todos os dias. Onde haja um rio e eu possa andar, lá estarei. Mesmo nos dias de frio, vento e chuva, eu caminharei ao longo de um qualquer rio. Mesmo naquelas noites inclementes em que as amarras dos barcos nos cais rangem como mulheres gemendo aflitas, mesmo assim, eu ando por lá.

Digo que respirar a maresia me retempera porque gosto de sentir a humidade do rio a entrar dentro do meu corpo. Lava-me.

E gosto de andar tendo a largueza ampla, limpa, luminosa do rio e da grande cidade de um lado e, do outro, o amparo de ruínas que carregam na sua pele a história de mil vidas, de mil amores, de mil desgostos.

E gosto de andar de manhã, quando a frescura é inocente, ou de tarde quando o langor sobe do rio para os corpos que se abandonam, e gosto muito, ah mas muito mesmo, de andar de noite, quando a escuridão carrega mistério, cumplicidade, doces abandonos.

Caminho e, enquanto aspiro a frescura do rio e olho a largueza dos espaços, na minha cabeça voam palavras. Às vezes digo-as em voz alta e não me espanto se ouço, cada vez mais doida. Há ternura e espanto nessa observação. Não me inibo por isso, por vezes levanto os braços, faço que voo, e solto as palavras para que voem livres à minha frente. Ouço, não tens juízo nenhum. Outras vezes, quando passo junto às escadas de pedra que, desprotegidas, descem até dentro do rio, digo como se confessasse um segredo, um dia desço as escadas e continuo a descer até ver onde vão dar, desço até ao fundo do mar. E a voz ao meu lado diz, deixa-te de maluquices, anda.

E eu vou.

Ainda tenho muito tempo pela frente. 

Depois, mais à noite, agora, aqui, na minha casa perto do céu, quando a noite já vai alta, sento-me, começo a escrever. A esta hora as palavras já se recolheram, estão agora dentro da minha cabeça, brincam, espreitam, querem ver o que vou escrever e, sem que eu as chame, aparecem aqui, escorrem-me pelos dedos como meninos descendo por um escorrega.

E eu deixo-as. Sempre gostei de crianças. E de palavras.



[Abaixo da imagem do homem que, ao cair da noite, olha o rio e Lisboa, a Magnífica, tenho um poema de Hélia Correia , uma mulher que enfeitiça as palavras, dedicado a Vasco Graça Moura, outro amante da língua portuguesa. E, a seguir, uma vez mais, a música orgânica e luminosa do Mali, com Bassekou Kouyate e amigos.]


Num cais do Ginjal, sobre o Tejo, o Padrão dos Descobrimentos em fundo



                                             O vulgo intimamente desconfia
                                             de quem da natural prisão se evade:
                                             quem de dormir não tem necessidade
                                             e faz da escuridão um novo dia.

                                             nem estranho é que tenhamos por verdade
                                             que andou ali manobra de alquimia,
                                             que o desumano dom da poesia,
                                             como a um Fausto o dom da mocidade,

                                             oferecido lhe foi. Mas, por penhor,
                                             dele exigiu dedicação maior
                                             do que a de pai, de príncipe ou soldado.

                                             Como um torreão, entre obras raras,
                                             este homem passa as suas noites claras
                                             a escrever, sem descanso, enfeitiçado.



[Soneto de Hélia Correia in 'a vista desarmada, o tempo largo', Antologia, Poetas em homenagem a Vasco Graça Moura]


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