Passo devagar, em silêncio, rente às casas abandonadas. Do outro lado, o rio belo e indiferente, aquela indiferença de quem se sabe livre, independente, belo demais.
Passa uma ou outra gaivota, passa ao longe, vagaroso, um grande navio, talvez passe um frágil veleiro branco, asas deslizando sobre o rio. E vou eu, sem mais ninguém, eu e os meus pensamentos, as minhas memórias, os meus sonhos.
E, então, inesperadamente, ouço chamar o teu nome. Detenho-me.
Ouço de novo. Chamam por ti e é a minha voz.
Estremeço. Não é possível. A medo, a tremer, encosto o ouvido à porta de onde vem o chamamento. Ao encostar-me a porta abre-se, rangendo, um lamento.
Uma parede de onde a tinta branca se descola, restos de um outro tempo. Uma escada íngreme. Ninguém.
Do fundo, lá de cima, de novo ouço a minha voz chamando por ti. Não percebo. Parece um eco longínquo.
Começo a subir, o coração aflito, se calhar é uma cilada. Mas continuo. Todos os abismos são atraentes.
Não sei para onde vou. Talvez para o esconderijo a céu aberto que há depois da porta que, ao fundo da escada, se abre para uma muralha, talvez para o céu.
Subo seguindo o eco da minha voz, sem saber o que vou encontrar quando chegar ao cimo das escadas. Tremo, transpiro, mas vou. Não sei se estarei à minha espera. Eu ou a minha sombra. Ou o meu corpo imaterial feito de palavras. Ou aquele que um dia, há muito tempo, tu amaste e que pelo teu corpo se perdeu.
[Abaixo da escada que vai da rua até a uma porta que abre para o céu, temos mais um poema de Emerenciano, e eu gosto dos poemas dele, são poemas que me levam para imprevistos esconderijos. Logo a seguir, temos um momento de tranquilidade, de paz, de sombra e frescura, um bom som para nos acompanhar quando buscamos o nosso eco: um coro interpretando Allegri]
No velho casario do Ginjal, casa abandonada |
Meu eco trocado
onde o vagar permite
esquecer as ciladas
volta sempre
e o corpo revelado
sem querer, tantas vezes
quantas as oportunidades
desperta para o esconderijo
que começa a ser.
['Esconderijo' de Emerenciano in 'Ir e Vir]
*
Vagarosa
e
e
silenciosamente
saímos do nosso interior
e
como pássaro acordado
rumámos de encontro
ao sol
que deixámos
para lá
dos nossos sonhos.
Desconhecemos
o que o medo
nos trará,
no encontro
ou desencontro
com o vazio possível.
Felizes seremos,
se esse vazio
guardar
a razão dos nossos anseios.
Assim,
valerá subir,
voar…
procurar
o mundo ignoto,
quase imaterial,
que nos espera.
[Texto/Poema do Leitor dbo em comentário aqui abaixo]
Se as vozes do alto nos perturbam, nada como vozes ao alto!
ResponderEliminarVagarosa e silenciosamente saímos do nosso interior e como pássaro acordado rumámos de encontro ao sol que deixámos para lá dos nossos sonhos. Desconhecemos o que o medo nos trará, no encontro ou desencontro com o vazio possível.
EliminarFelizes seremos, se esse vazio guardar a razão dos nossos anseios. Assim, valerá subir, voar… procurar o mundo ignoto, quase imaterial, que nos espera.
Muita saúde e altos voos, sem quedas de Ícaro...
jrd,
EliminarVozes ao alto que longos são os grandes espaços!
Muito obrigada!
dbo,
EliminarEspero que não me leve a mal. Li as suas palavras como quem lê um poema. Achei que devia pegar nelas como quem pega em flores e dispô-las com cuidado, como a música das palavras o pedia.
Coloquei-as lá em cima, no sítio que destino à poesia.
Muito obrigada (e espero que goste de as ver ali). E saúde e altos voos também para si, dbo!
Cara UJM, obviamente gostei, pelo inesperado (nem sequer imaginaria essa textura).
ResponderEliminarAgradeço a gentileza, mas devo referir que, nos seus frequentes leitores, existem autênticos poetas e malabaristas das palavras que também muito admiro, para além da própria UJM.
Mais uma vez grato e muita saúde