Passam em silêncio os velhos. Receiam que os outros percebam a fome e a vergonha.
Correm as velhas para o balcão da fruta. Receiam que outras velhas se lhes antecipem na escolha da fruta mais pequena, mais murcha e mais barata.
Saem do barco as mulheres de cabeça baixa, cansadas, cheias de sono, carregadas de sacos. Trabalham desde o raiar da aurora e, quase sem forças, têm que ir tratar da sua própria casa.
Atiram a linha ao rio os homens cheios de frio e desalento esperando que um peixe se acomode ao anzol para terem o que comer ao jantar.
Senta-se no banco da beira do rio o homem sozinho, olhando os pés, sem saber como sobreviver sem trabalho.
Encosta-se ao farol, chorando, a mulher que espera que a noite caia para ir para uma casa sozinha, agora que o filho partiu para tão longe.
E passo eu, máquina fotográfica em baixo, incapaz de fotografar a tristeza e sofrimento alheios. Solidária. Revoltada.
Tanto pesar, tanta falta de esperança. Tanto medo. Tanto, tanto medo. Por todo o lado. As portas fecham, as casas ficam vazias, as ruas silenciosas.
Roubam-nos tudo. O presente e o futuro. A família e o amparo. O trabalho. O país. As certezas e, pior, muito pior, as esperanças. A uns roubam também a casa. A outros roubam a vontade de viver. Roubam-nos tudo. Tudo. Até ao último cêntimo, ao último suspiro, à última lágrima.
Quando todos tiverem desistido, quando todos tiverem perdido as forças, a alma, o coração, quem cantarei?
Quem sorrirá comigo?
Que mãos se juntarão às minhas para abrir novos caminhos?
A quem me queixarei se já me roubaram Deus, o Diabo, se há muito tempo o último Rei se foi? A quem?
A quem chorarei?
[Abaixo das ruínas do Ginjal, agora que os velhos armazéns estão a ser destruídos, temos, uma vez mais, o Poeta do desencanto, Jorge de Sena. Depois José Afonso interpreta a bela canção que resulta deste poema. E, depois, abaixo, um momento de recolhimento. O Antiphonus Ensemble interpreta Carlos Gesualdo. Recolhamo-nos dentro de nós. Talvez nos surja uma boa ideia para sairmos do negrume onde nos fecharam]
Destruição das ruínas do velho casario do Ginjal |
Roubam-me Deus,
outros o Diabo
- quem cantarei?
roubam-me a Pátria;
e a Humanidade
outros ma roubam
- quem cantarei?
sempre há quem roube
quem eu deseje;
e de mim mesmo
- todos me roubam
roubam-me a voz
quando me calo,
ou o silêncio
mesmo se falo
- aqui d'El Rei!
['Epígrafe para a arte de furtar' de Jorge de Sena in Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço]
a tristeza também pode ser, e é, poesia...
ResponderEliminarMuito obrigada!
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