Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 maio, 2013

Tenho a impressão de que apenas me amas de memória


Há um silêncio diferente quando se avança pelo rio rumo ao mar. O som da água torna-se constante, uma música que se instala no nosso peito, deixamos de a ouvir, tal como não ouvimos as batidas do nosso coração. 

E há uma liberdade imensa que nos faz sentir poderosos. 

Hoje, quando saí de casa, sentia-me insignificante, uma presença irrelevante que facilmente dispensarias. Lias um livro e a semântica era, certamente, mais importante que os meus sentimentos. Há muito que deixei de disputar um lugar especial junto a ti. Sei que primeiro estás tu, depois o que escreves, talvez depois o que lês (embora, por falsa modéstia, digas que é ao contrário), a seguir a tua pequena liberdade, depois os teus recantos de sombra e, talvez a seguir, estarei eu; mas, se calhar, estou a ser optimista. Dizes que me amas mas só o dizes se te pergunto. E sei que me amas apenas para evitares a maçada de assumires que não me amas. Talvez até te seja útil como personagem das tuas fantasias literárias mas sei bem que pouco mais valho para ti do que isso.

Queixas-te que desvalorizo o que escreves, os teus gostos literários. Não é verdade. Gosto dos teus poemas, sou capaz de os dizer todos de cor. 

Também conheço de cor a tua respiração, a forma como te deitas de lado enquanto dormes, a forma como o teu cabelo adormece na almofada. Também conheço de cor o teu olhar, as sombras que o atravessam.

Mas não és mais do que isso. Um corpo frio, habitado por sombras, onde a respiração só se sente enquanto dormes.

Fujo, pois, de ti. 

Entro no veleiro e, de pé, vejo como a luz dourada banha a cidade, ilumina o rio. Enrolo as velas. Deixo que a maré me leve. Entro no rasto de luz, deixo que o sol me leve com ele. Entrarei em silêncio na noite, esperarei a madrugada, sorrindo, livre. Momentos assim de liberdade e silêncio, seguindo no rasto da luz sobre o rio, são para mim os meus momentos de felicidade, de doçura. E até poderia depois contar-te isto. Mas não valerá a pena. Só percebes o que vem escrito nos livros. Aí analisas, com ternura, as construções gramaticais, vejo até como deixas tombar a cabeça, sorrindo, enlevada. Mas se sou eu a falar-te no que penso ou sinto, aí, já estou a dizer banalidades. Aliás, falar-te em felicidade é coisa que te deixa doente.

Por isso, nada te direi. Guardarei no meu peito esta felicidade tão doce que infelizmente não queres conhecer. Eu persigo a luz, quero viver. Tu procuras as sombras e as palavras dos mortos.



[Abaixo do veleiro que se dirige para a barra ao pôr do sol, temos um belo poema de Ricardo Gil Soeiro e, abaixo, para encher de luz o Ginjal e o coração de quem aqui me veio visitar, temos mais um belíssimo momento com a maravilhosa música do Mali. Só de pensar que tenho que variar já estou a ficar com saudades...]


Hoje ao fim do dia veleiro desliza na direcção do pôr do sol
(e felicidade é estar ali, sobre o rio, e ver imagens tão belas como esta)



                                                    Para que conste:
                                                    dentro de ti ouve-se
                                                    um súbito estremecimento,
                                                    mas não sou capaz de dizer
                                                    de cor a tua poesia reunida,
                                                    e tenho a impressão de que
                                                    apenas me amas de memória.
                                                    Tendo amado mansamente
                                                    a morte, e no escuro esquecido
                                                    a arte e a madrugada, sorrio
                                                    agora perante as marés.


                                                     [Poema XXde Ricardo Gil Soeiro in Espera Vigilante]


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