Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 maio, 2013

A distância entre o sol e a penumbra


A distância entre o sol e a penumbra pode ser uma janela. 

Mas e se a janela tiver o vidro partido? E se, por detrás do vidro, não estiver alguém que olha? Se lá estiver uma parede de madeira com um olho vazio?

E como chamaremos a um olho vazio numa parede de madeira por detrás de uma janela com um vidro partido?

Como chamaremos à destruição lenta, à decomposição progressiva? A ausência de pele, a ausência de voz, de emoções, que nome tem? Como chamaremos à aceitação de tudo o que nos impõem mesmo quando o que nos impõem é ácido que dilui a nossa pele?

Como chamaremos a um medo silencioso, viscoso, que se cola à carne e a come como uma gangrena que avança, maligna e impiedosa?

Como se chama à ausência de palavras, à ausência de tudo? Ao vazio que corrói as janelas, as paredes, a madeira, os olhos, a vontade? 

Não sei. 

Só sei que não aceito isto.



[A seguir ao olho vazio que espreita atrás do vidro partido, temos um pequeno poema (pequeno no número de palavras!) de André Tomé. E, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Ali Farka Touré. A música do Mali é luminosa]


Janela partida numa casa abandonada no Ginjal



                                            o raio de uma circunferência no espaço de uma cidade
                                            não passa da distância entre o sol e a penumbra


                                            [Poema Insulae, IX de André Tomé in Insula]

***

Janela que o foi
agora destroço
onde ninguém mais
se assoma.
Casa,
outrora berço,
lar
refúgio,
esventrada já.
O vazio
dia e noite
manchando as paredes tristes.
Ruínas, ausência
sombra das sombras
de quem lá morou
memória
há muito tempo abandonada.



[Poema de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]


***


Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão


[Vítor Santos. Cancioneiro Alentejano. Poesia popular. - enviado por Ana de Sá]


5 comentários:

  1. JOAQUIM CASTILHO (QUIM)09 maio, 2013

    Olá UJM!

    Será também isto???

    Janela que o foi
    agora destroço
    onde ninguém mais
    se assoma.
    Casa,
    outrora berço,
    lar
    refúgio,
    esventrada já.
    O vazio
    dia e noite
    manchando as paredes tristes.
    Ruínas, ausência
    sombra das sombras
    de quem lá morou
    memória
    há muito tempo abandonada.


    um abraço

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    Respostas
    1. Olá Joaquim,

      é isso, sim. Em tempos alguém ali viveu, alguém dali olhou o mar. Agora não há sequer memória, apenas uma casa vazia, sem vestígios de vida.

      Gosto muito do seu poema. Já lá está em cima.

      Muito obrigada!

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  2. Pelo que de (atávica) herança me significa,aqui lhe deixaria, assim soubesse como fazê-lo,um ramo de Espigas.

    Com um abraço, o registo da intenção, contando com a prodigiosa imaginação de UJM para o visualizar.

    Tudo vai colher ao campo
    Quinta-feira d'Ascensão,
    trigo, papoila, oliveira.
    p'ra que Deus dê paz e pão

    Vítor Santos. Cancioneiro Alentejano. Poesia popular.

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  3. ops! o meu raminho e o meu abraço estavam com pressa de lhe chegarem, UJM

    desculpe,

    AdeSá

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    1. Olá Ana de Sá,

      Não sabia, imagine. Quando escreveu até fui confirmar que hoje é dia da Espiga e é mesmo. Quando eu era pequena ia com os meninos da escola apanhar a espiga e levava para oferecer à minha mãe. Era um dia de alegria.

      Muito obrigada pela sua lembrança. Cá recebi o seu ramo, cheiroso, colorido.

      Um abraço agradecido!

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