Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 maio, 2013

Como uma romã sem bago, suspensa num galho ansioso


Do mar saíu voando. Vinha molhada, dourada. As gaivotas olhavam-na com estranheza. Uma mulher a sair do fundo do mar a voar, isso já elas tinham visto. Mas isto não.

Já tinham visto também uma sereia alada que por vezes se transforma em ninfa e então parece meio borboleta, meio medusa, como se tivesse saído de uma gruta algures no seio da floresta, outras vezes parece a musa de um poeta perdido entre as rochas, um certo poeta que, por vezes, sai de entre as paredes arruinadas da beira do rio.

Podia ser essa sereia, ninfa, musa. Mas não era. As gaivotas olharam com atenção. Nunca tinham visto nada assim. Dos cabelos pendiam cachos dourados e sumarentos, dos seios nasciam-lhe bagos de romã que apetecia chupar, dos lábios nasciam morangos que apetecia trincar, do sexo nasciam mãos suaves e apelativas, dos olhos saíam murmúrios, apelos. As gaivotas estavam mudas.

Mas, depois, o que quer que fosse voou. Foi enlear-se no tronco de uma árvore, foi misturar-se na folhagem macia, fez amor com os pássaros, deixou-se possuir pela aragem húmida, rendeu-se. As gaivotas baixaram os olhos, nunca tinham visto tanta indecência.

Depois, como uma suave bailarina, dourada, delicada, ágil, grácil, o que quer que fosse sentou-se na relva e ficou a olhar o céu, o rio, o imenso espaço.



[Abaixo do jardim, temos mais um poema de Ana Marques Gastão. A seguir - e uma vez mais, indo de encontro ao desafio de um generoso Leitor, a quem mil vezes agradeço, que me enviou música adequada a espaços de recolhimento - temos canto gregoriano. Uma confidência: não me perguntem porquê mas canto gregoriano para mim é do mais sexy que há. Talvez por isso o texto que acabei de escrever]


No Jardim do Ginjal



                                                    Debruo as pestanas
                                                    na orla d'uma folha,
                                                    e logo se aquietam
                                                    em figuração de leque.
                                                    Medusas abusivas,
                                                    acolhem, em arrulhos
                                                    de frémito, a luz,
                                                    como a romã,
                                                    sem bago, suspensa
                                                    num galho ansioso.


                                                    ['Pestanas de folha' de Ana Marques Gastão in Adornos]

2 comentários:

  1. Quando a prosa não necessita de ser poema para voar e espantar as gaivotas.
    Gostei!

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    1. E quando as palavras trazem outras palavras de volta para alegrar as gaivotas. Gostei!

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