Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 maio, 2013

Descendo, sim, dos que hão-de vir - diz, na sua biografia, Mia Couto, o Prémio Camões 2013


Andas como se voasses, mansinho, suave passarinho, olhos doces, respirando o calor morno que vem do ventre da terra. Andas por entre as árvores, os teus pés entrançados nas raízes, os teus braços cobertos de flores, as tuas ideias entrançadas na folhagem, as tuas ideias voando como pássaros aninhados nos recantos das ramagens. 

E depois sorris, um animal macio, bom para afagar, leal, a quem as palavras vão comer à mão. Menino, menino, não escondas as palavras nos bolsos. Tão carregados eles ficam que ainda se descosem. Sorris, tiras as palavras dos bolsos como quem solta borboletas, sentas-te com elas em volta, e o sol põe-se, rosado, e é festa de dançar e cantar e bater palmas, batuque, batuque, e os corpos soltos, o calor, o suor, o perfume. Sorris.

Depois deitas-te na terra, tapas-te com flores, com o luar. Olhas as estrelas, inventas histórias, saltas de uma para outra, soltas balões coloridos, embalas palavras.

Mas, logo depois, mil mulheres nuas saem das águas e vêm refrescar o teu corpo, deitam-se sobre ti, despem-te, lavam-te e tu, sedutor, sorris, sabes dos mil encantos do amor. Mas elas pedem-te: salva-nos, salva-nos com as tuas palavras, com a tua poesia. Sorris, doces são as ternas tentações. Fechas os olhos e pensas, é um sonho, é um sonho. Abençoado sonho. 

Mas depois elas puxam por ti, levantam-te, levam-te pela mão, e, enquanto entras nas águas, ouves-te a dizer: 

                                           No início,
                                           eu queria um instante.
                                           A flor.

                                           Depois,
                                           nem a eternidade me bastava.
                                           E desejava a vertigem
                                           do incêndio partilhado.
                                           O fruto.

                                          Agora,
                                          quero apenas
                                          o que havia antes de haver vida.
                                          A semente.



[O poema acima chama-se 'Idades'. No dia em que foi atribuído o Prémio Camões a Mia Couto, trago-o para o Ginjal, para o pé de mim e dos meus Leitores e faço a festa, assim lhe enviando os meus parabéns. Para ajudar à festa escolhi uma música moçambicana. É no post abaixo: vamos dançar]


Homem andando num cais do Ginjal como se estivesse prestes a entrar no Tejo para se dirigir a Lisboa



                                                 Todo o meu nascer
                                                 foi prematuro.

                                                 Agora,
                                                 em meus filhos
                                                 me vou dando às luzes.

                                                 Descendo, sim,
                                                 dos que hão-de vir.



                                                [Biografia de Mia Couto in 'idades, cidades, divindades']

*


cego
de ser raiz

imóvel
de me ascender caule

múltiplo
de ser folha

aprendo 
a ser árvore
enquanto
iludo a morte
na folha tombada do tempo



[Árvore de Mia Couto in 'Raiz de Orvalho e Outros Poemas']

*

A semente
que havia, antes de haver vida,
apenas a quero…
agora.

O fruto,
incêndio partilhado
na vertigem do desejo,
traz a eternidade…
depois.

A flor,
quero-a, num instante…
no início.



[Poema de dbo em comentário abaixo]

4 comentários:

  1. Para a minha amiga virtual que gosta de árvores e de Mia Couto, aqui fica a minha singela homenagem:

    ÁRVORE

    cego
    de ser raiz

    imóvel
    de me ascender caule

    múltiplo
    de ser folha

    aprendo
    a ser árvore
    enquanto
    iludo a morte
    na folha tombada do tempo

    Março 1985

    Mia Couto in 'Raiz de Orvalho e Outros Poemas'

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Muito obrigada. Já coloquei lá em cima para que fique mais visível.

      Beijinhos!

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  2. Super-merecido, no meu jeito de ver e sentir, este Prémio Camões 2013. Mia Couto é inconfundivelmente um desbravador da nossa língua portuguesa um autêntico filigraneiro da lusa palavra. Adorável este seu poema “Idades”que do início ao agora e da flor à semente nos mostra a evolução dum tempo de nascer a um tempo de morrer.
    Não pretendo ser perverso nem adulterar tal poema, mas arriscarei, em jeitos de homenagem ao poeta, de modo simples e algo primário, “repoetar”, reverter e “repalavrar”, em sentido inverso, este mesmo poema “Idades”:


    A semente
    que havia, antes de haver vida,
    apenas a quero…
    agora.

    O fruto,
    incêndio partilhado
    na vertigem do desejo,
    traz a eternidade…
    depois.

    A flor,
    quero-a, num instante…
    no início.


    Muitas felicidades e muita saúde.

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    1. Olá dbo,

      Muito obrigada. Gostei imenso do seu repoetamento, do seu belo repalavramento. O seu poema já está lá em cima, ao pé das palavras do Prémio Camões, e fica muito bem.

      Obrigada outra vez.

      Também para si as maiores felicidades e muita saúde. (E haja paciência para aturar a mediocridade que quase nos afoga...)

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