(poema sugerido no UJM por uma Leitora a quem muito agradeço)
Ginjal e Lisboa
28 fevereiro, 2013
27 fevereiro, 2013
A mão desta mulher de joelhos entre as pernas do touro
Eram outros tempos, meu senhor. Havia forme, medo, repressão, miséria, senhor, tanta miséria. Outros tempos. E vieram as bombas, os aviões, a tropa, que medo havia então, senhor. O mal era absoluto e vinha dos homens e vinha dos céus. Ah, não podeis saber.
As mulheres escondiam as crianças nos recantos escuros das casas, no colo, debaixo dos casacos, e tanto medo, tanto, tanto, meu querido filho, como posso eu proteger-te? choravam em silêncio, afagando contra si as indefesas crianças. E a falta de comida, e os seios sem leite tanto o medo. Que tempos eram aqueles...! Que ninguém os queira de volta, meu senhor.
As mulheres gemiam sem voz, a garganta apertada tanto, tanto o medo.
A besta andava à solta. Ventas fumegantes, patas imundas, pele negra, inclemente, sexo exuberante. Entre as pernas, os grandes órgãos sexuais eram um insulto aos pobres que jaziam apavorados por terra. Assim eram essas tempos, senhor. A assustadora besta soltava gritos de vergonhoso prazer, animal sem coração, besta selvagem, pisando quem passava, pisando gente indefesa. Um dia uma mulher que já tudo tinha perdido deitou-se por terra e tentou cortar os ofensivos órgãos da besta. Acabou espezinhada.
Por terra iam ficando os corpos rasgados, as crianças esfomeadas, órfãs, mulheres de seios rasgados, ventres abertos, homens enfraquecidos, aprisionados, roupa rasgada, velhos que se tinham suicidado, resto de gente, cães famintos. Sobre eles, correndo, arfando, babando-se, nojenta passava a besta enorme e imunda. Não tinha peso na consciência porque a não tinha, nem tinha coração. Não podeis imaginar, senhor, não podeis imaginar. Morríamos de medo, sem forças, sabendo que o futuro nos tinha abandonado, sabendo que as trevas tinham descido sobre nós. Ah que tempos esses, que tempos esses...
Por terra iam ficando os corpos rasgados, as crianças esfomeadas, órfãs, mulheres de seios rasgados, ventres abertos, homens enfraquecidos, aprisionados, roupa rasgada, velhos que se tinham suicidado, resto de gente, cães famintos. Sobre eles, correndo, arfando, babando-se, nojenta passava a besta enorme e imunda. Não tinha peso na consciência porque a não tinha, nem tinha coração. Não podeis imaginar, senhor, não podeis imaginar. Morríamos de medo, sem forças, sabendo que o futuro nos tinha abandonado, sabendo que as trevas tinham descido sobre nós. Ah que tempos esses, que tempos esses...
Que não voltem, senhor, que não voltem esses tempos de fome e medo, que a paz nunca nos abandone, que o medo fique longe de nós, que a piedade não abandone o coração dos homens, que a sabedoria não nos abandone. E que os filhos não se afastem dos pais, que os velhos não partam cedo demais, que a fome não volte, que o medo não volte, senhor. Protegei-nos. Livrai-nos do horror, senhor.
E não me leveis a mal, senhor, se não sou capaz de me dirigir a vós com a maiúscula que vos é devida. Mas é que sou tão orgulhosa, tenho tanto medo de não ser capaz de vos respeitar, tenho tanto medo de não estar à vossa altura, tenho tanto medo de não vos compreender, senhor.
[Abaixo do poema poderão ouvir um momento muito especial: dois grandes intérpretes, Rostropovich no violoncelo e Martha Argerich no piano. Hoje intrepretam uma obra de um compositor japonês, Oue Hikari]
Escultura de touro nos jardins da Casa da Cerca em Almada, mesmo sobre o Ginjal, e de onde se avista o Tejo e Lisboa, a bela |
Ao alto; à esquerda;
onde aparece
a linha da garganta,
a curva distendida como
o gráfico dum grito;
o som é impossível; impede-o pelo menos
o animal fumegante;
com o peso das patas, com os longos
músculos negros; sem esquecer
o sal silencioso
no outro coração:
por cima dele; inútil; a mão desta
mulher de joelhos
entre as pernas do touro.
['Descrição da guerra em Guernica, III', 'Ao alto, à esquerda' de Carlos de Oliveira in Trabalho Poético']
*
Árbol de Guernica (Gabriela Mistral)
Volverá a ser verde y ancho
el roble, el roble nuestro.
Mordido de la metralla,
no del rayo de los cielos,
volverá a brotar contadas
una hoja por cada Euskaro
y será a la semejanza
nuestra y tierno.
Mientras, andamos errantes
sin criar roble en otros suelos,
con un gajo sollamado
que se aprieta contra el pecho.
Volverá a ser en Euskadia
el abra, el árbol y el ruedo
del corro de manos dadas,
y el himno al Dios verdadero,
confesado y silencioso
como la encina sin viento.
Los heridos y aventados
y los que a mitad de ruta
dizque se quedaron muertos,
todos volveremos, todos,
el árbol, al ruedo.
Mientras tanto parecemos
casa en noche de saqueo.
Y desvariados que dicen
en refrán “Guernica” y “fuego”.
Sigue entero y da, mascado
en un brote verde
un sabor de salmuera que resbala
si lo muerden niño o viejo.
Y con él, caído el sol,
comulgan y esperan ellos.
Mientras tanto caminamos
tocando a puertas de acero
de los que han la libertad
y siguen sordos y ciegos.
Crece con nuestras fés
y voluntades y tuétanos.
Crece al día y a la noche
aunque le den pez y fuego
y aunque zumben su despojo
alguaciles y patán ebrio.
Mientras tanto le rezamos
sobre el jergón a dos leños:
el de Cristo y el de Ignacio
entrecruzados y ardiendo.
Por islas, por archipiélagos,
al asar pez y catar
vino bárbaro tenemos
sobre nosotros la sombra
del buen roble que da silbo y oreo.
Cortados como la sarta
y la madeja,
escupidos en la noche tártara
partida del bombardeo,
cada uno caminó
cargando flor y madero
cortado de él y llevándolo.
Mientras que cortamos el aire,
en la lengua sin orígenes
decimos el Padrenuestro
y el roble allá lo corea,
fiel, hirviendo y recto.
(Enviado pelo Leitor jrd num comentário abaixo)
*
Guernica de Federico García Lorca dito por Germaine Montero
(Enviado pela Leitora Ana de Sá num comentário abaixo)
26 fevereiro, 2013
Dai-me só mais este passo, meu amigo
Depois de passares uma porta aberta encontrarás, meu amigo, um longo corredor. Nesse corredor encontrarás muitas portas. Não entres em nenhuma dessas salas porque estão escuras, sujas, habitadas por seres sem olhos, sem alma.
Continua por esse corredor, meu amigo. Em frente encontrarás uma escada. Sobe por ela. Parecer-te-á que não vai dar a lugar nenhum, mas vai por elas.
Depois, quando o céu se abrir sobre ti e uma luz imprevista descer pelo teu corpo, vira para um dos lados.
Anda até que o céu volte a desaparecer. Acharás que está escuro, sentirás medo pelo desconhecido. Mas entra pela escuridão. Não te importes, meu amigo, se te sentires tocado, puxado, acariciado. São mão abandonadas que não pertencem a nenhum corpo, fiapos de vestidos que em tempos vestiram belas mulheres ou sedas que taparam virtuosos regaços. Não te deixes prender, não deixes que se teçam teias invisíveis em tua volta. São perigosos os laços que se tecem na escuridão, meu amigo. Continua.
Anda até que o céu volte a desaparecer. Acharás que está escuro, sentirás medo pelo desconhecido. Mas entra pela escuridão. Não te importes, meu amigo, se te sentires tocado, puxado, acariciado. São mão abandonadas que não pertencem a nenhum corpo, fiapos de vestidos que em tempos vestiram belas mulheres ou sedas que taparam virtuosos regaços. Não te deixes prender, não deixes que se teçam teias invisíveis em tua volta. São perigosos os laços que se tecem na escuridão, meu amigo. Continua.
Vais sentir frio. Entra nesse vazio, nesse poço sem paredes, sem fundo, sem céu. Ouvirás, meu amigo, o bater de asas, gritos de aves perdidas, alguém que soluça. Mas nada verás. O teu sangue quererá soltar-se do teu corpo, inquieto o teu sangue, inquieta a tua respiração e sentirás um frio e um medo e um grito que se prende no teu peito gelado. Mas continua, meu amigo, continua.
Sentirás que as tuas pernas ficam geladas e não saberás se entraste no mar, se mergulhaste no interior mais desolado da terra, só ouves uivos, lamentos, tenebrosos gritos.
Então, aos poucos, meu amigo, começarás a ver no escuro mas só verás sombras que se movem e não saberás se são pessoas, se são bichos, se são anjos abandonados. Continua.
Então, aos poucos, meu amigo, começarás a ver no escuro mas só verás sombras que se movem e não saberás se são pessoas, se são bichos, se são anjos abandonados. Continua.
Depois, se conseguires passar por tudo isso, estica os braços, deixa que deles se soltem asas, e vem até mim, voa, voa sem medo, meu amigo. Estou logo ali. Abre essa última porta, essa que está já tão perto do céu. Não estranhes se ela ranger. Há muitos, muitos anos que por ali não passa ninguém. Ninguém, meu amigo. Assim tenho eu vivido.
Ver-me-ás, então, envolta em luz. Estou à tua espera e terei todo o tempo do mundo para ti. Aí, nesse ninho iluminado onde me encontro, não existe nem dia nem noite, nem passado nem presente, não há nada, nada, só eu que te espero desde que um astro lento e primitivo por aqui passou, eu desde sempre tua, para sempre tua. Vem. Vem até mim. Dai-me só mais estes últimos passos, meu amigo. Peço-vos. Meu amor.
[Abaixo de mais um belo poema de Catarina Nunes de Almeida, poderão ouvir mais uma grande interpretação de Rostropopovich, desta vez tocando Saint-Saëns]
Porta que dá para muitas portas no Ginjal |
Dai-me só mais este passo, meu amigo,
às escuras às curvas
pelas ervas abaixo.
Dai-me desse certeiro espinho desse derradeiro laço
às escuras às escuras:
só mais esse poço primitivo
quase dia:
esse pescoço implorando longas cordas.
Alguém que atire a primeira perna.
Alguém que diga
desta espádua beberei.
Que as mãos trazem astros lentos
e não conhecem os desígnios dos relógios.
[Poema de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]
25 fevereiro, 2013
Dêem-me uma deusa passageira mais nuvem que mulher
Aponto a objectiva, escolho o ângulo, a luz, o centro nítido. Apuro o olhar e espero que a imagem perfeita me apareça. Ou foco o rio, as águas que se movem, ou as gaivotas que gritam em plena loucura, ou espio o velho pescador, curvado, à espera do peixe para a refeição, ou acompanho o largo barco carregado de pessoas, ou espreito a bela cidade do outro lado, ou as nuvens efémeras, imaterias.
Caçador, furtivo, aqui estou eu. Na manhã carregada de fria maresia, sou o intruso, o estrangeiro. As gaivotas não me reconhecem e os gatos não se aproximam.
Venho caçar e espero o momento perfeito. Arma apontada, dedo ágil, os nervos eriçados, pronto.
E passa uma mulher que me espia, que me espreita, que me rodeia. Mas estou tão absorto que não a vejo. A mulher percorre a paisagem e coloca-me no meio da paisagem. Eu, a presa perfeita, indefeso, desatento.
Sem a ver, sem sequer pressentir que ela ali está, silenciosa, caçadora também, olho o horizonte e penso, Dai-me uma mulher, que ela venha a voar, que ela solte os cabelos como quem solta as asas, que ela venha apenas vestida com flores, que venha balouçar-se numa nuvem aqui à minha frente. Que ela venha a sorrir, inocente no seu imenso descaramento, que depois se desnude, que dos seios se soltem lírios, que ela sorria por me ver parado, rodeado de lírios, que ela me seduza, me chame, me deite feitiços. Dai-me uma deusa com corpo de mulher, dai-me uma deusa com um sexo dourado, dai-me uma deusa com olhos de água, dai-me, dai-me essa imagem única, dai-me, nem que seja apenas por um breve instante.
E não vejo a mulher de cabelos de algas douradas, olhos de mar, sorriso doce, seios suaves, asas feitas de lírios que, em silêncio, espera que eu me volte e a veja.
Depois vai-se embora e apenas a vejo quando já vai muito longe, a voar, envolta numa nuvem feita de lágrimas.
[Abaixo do caçador que foi caçado, mais um belo poema de José Gomes Ferreira e, logo a seguir, mais uma grande interpretação de Rostropovich, desta vez sobre Beethoven]
À procura de uma nuvem ou de uma mulher ou de uma gaivota (ou de qualquer outra efémera coisa) |
(Fase cínica)
E agora?
Agora, dêem-me uma deusa passageira
mais nuvem do que mulher
com sandálias de oiro,
lírios nos olhos
e a boca a rir por fora
todas as lágrimas que quiser...
(Uma nuvem de sonho à hora.)
[Poema XXXI de José Gomes Ferreira in Poesia III]
24 fevereiro, 2013
Talvez a solidão
Não sei. Talvez seja solidão. Mas que sei eu de palavras?
Uma inquietação fria que desce pela garganta, que aperta o peito, que se fica por um lugar não sei onde, que nem é dentro nem fora de mim. Uma sombra, uma sombra cá dentro, talvez no lugar do coração. Ou talvez sobre mim, talvez uma ameaça, ou um desamparo. Não sei que nome lhe dar. Esqueci as palavras.
Olho o rio, a cidade, olho os que passam levados pelo vento. E eu aqui, em silêncio, sem ânimo, sem vontade de nada. Olho e vejo o azul mas o azul agora já não traz calor. Tenho tanto frio. O azul que os meus olhos vêem é frio, vazio, tão desolado.
Estou aqui mas podia estar fechada em casa, escondida atrás de uma cortina, encoberta pela sombra, na minha casa sem música, sem cheiros, sem cor, sem vida. Sim, estou aqui mas podia estar esquecida na minha casa que não é visitada por ninguém, onde os dias passam em silêncio, sem história. Mas é aqui que estou. Eu ou a minha sombra, não sei, não sei.
Olho em frente e nada vejo. Ninguém fala comigo. Podia ficar aqui até à noite que ninguém falaria comigo. Esqueço-me, até, do som da minha voz. Esqueço até o tacto. As minhas mãos esqueceram há muito a ternura e o calor de uma outra pele. Podia sair daqui para mergulhar nas águas geladas do rio que ninguém daria por nada, ninguém diria nada. Não existo. Sou uma sombra.
O meu corpo foi o que restou. Um corpo habitado pela inquietude. Um corpo varrido pela solidão.
[Abaixo de um outro poema de José Alexandre Caldas Ribeiro, dou início a uma semana dedicada a um novo grande intérprete: hoje é Rostropovich, no violoncelo, hoje interpretando Haydn]
Na estação de Cacilhas, de frente para o Tejo, de frente para Lisboa |
Talvez a solidão. Talvez ela passe pelo crivo da garganta
Entregue a ela possa haver um lugar em que aguarde os
dias com alguma inquietude
à medida de um sério despertar
Sombra de um resguardo abeira do corpo
Forço o tacto. Perto
só o inverno a faz esquecer por dias quentes
Estes são outros onde há azul para todos
Esquecida, talvez ela volte para aqui
Silvos a aguardam.
[Poema de José Alexandre Caldas Ribeiro in 'A água que nos move']
/\/\/\
Pedaço de chão
no imenso mar.
Quarto alugado
na cidade grande
angústia que chega
ao entardecer
O livro que se lê
para combater o tempo
Ilha, ilhas
lagos submersos de silêncio
e o dia que se abre,
ao longe,
e os amanhãs
sempre iguais.
['Isto também é solidão' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
23 fevereiro, 2013
Cavalgava na chuva, cavalgava distante dos amigos, de mãos nuas. Sim, falamos de sombras. [De 'A Terceira Miséria', do qual Hélia Correia fala aqui e com o qual ganhou o Prémio Correntes d'Escritas 2013]. Tudo ao som de Alma Mater
"Acorda - a Grécia não, que está desperta -
acorda tu, meu espírito", disse ele.
Cavalgava na chuva, cavalgava
distante dos amigos, de mãos nuas,
prevendo a glória e acordando o chão
do Missolonghi, um chão esfaimado há muito,
um chão onde ele esperava repousar.
Sim, falamos de sombras. Vendo bem,
incendiámos tudo: Alexandria
e os sábios, as mulheres. Incendiámos
o grande coração. Temos aos ombros
o apetrecho dos destruidores,
não a pólvora, não: essa arrogância
pela qual o ocidente se perdeu
21 fevereiro, 2013
Fomos a noite e os corpos e esses nós com que a noite se atava e desfazia
Chega o dia e limpamos a noite que se nos colou à pele. Tão boa a noite quando os nossos corpos se juntam contra o frio que nos chega da rua.
Abro as cortinas para que o luar banhe os nossos corpos e tu percorres com os teus dedos as geografias onde o luar se acolhe no meu corpo. Eu sou da lua e gosto que o luar entre nos meus poros, acaricie os meus seios, as minhas pernas. E tu gostas de sentir o luar no calor da minha pele.
E eu dispo-te também e, em ti, o luar esconde-se ou és tu que, sôfrego, devoras a luz branca e suave da lua. Percorro-te também com os dedos, depois com os lábios, com a língua. Beijo o luar que pousou no teu corpo insubmisso.
Afastas o cabelo do meu rosto, queres ver como te olho quando o luar une os nossos corpos. Olho-te e há paz no meu olhar e há paz também no teu. A noite envolve-nos, dá-nos casa, e nós abrigamo-nos um no outro, tu dentro de mim, abrigado, apaziguado, eu dentro do teu coração.
E depois a lua desfaz-se e mil estrelas descem sobre nós.
E tu perguntas-me, também viste as estrelas? e eu sorrio e digo, já sabes que gosto de ficar a ouvir o silêncio, não me faças perguntas. Sorris e eu gosto de te ver sorrir.
Mas eis que o dia chegou. Trouxeste-me para a beira do rio. Vem ver a grande cidade, vem ver o rio, vem respirar a largueza deste lugar. E eu sigo-te, quero que me mostres tudo mas, com malícia, peço-te cuidado, não deixes que as estrelas que guardaste nos bolsos voem para longe. Quero vê-las, de novo, logo à noite.
Sorris, finges que estás cansado. Quem é que falou em paz...?!, pareces queixar-te Mas eu sei que brincas, que mal vais poder esperar que o luar se estenda de novo sobre a nossa cama.
[Abaixo de um poema de Manuel Alegre, um Poeta com assento cativo aqui no Ginjal, mais uma grande interpretação de Yo-Yo Ma, desta vez uma interpretação bem imprevista: Piazzollla. Espero que gostem]
De frente para Lisboa |
Nós fomos noite e noite até ser dia
nós fomos noite e a noite fomos nós
fomos a noite e os corpos e esses nós
com que a noite se atava e desfazia
Fomos a noite e o que sobrava dela
e o que sobrava dela foram luas
que circulam à volta de uma estrela
ora nas minhas mãos ora nas tuas
['Nós' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']
*
E quantos vezes tu foste cometa
deixando rastos de luz breve passagem
meus olhos rasos de chuva nas estrelas
(sonhando) quis ir contigo na viagem
[Poema de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]
20 fevereiro, 2013
Um vento levantou-se das mãos do ocaso
Se eu invento névoas, ventos, penumbras, búzios que guardam a música dos mares porque haveria alguém de me calar?
Saio das ruínas, atravesso janelas inexistentes e desloco-me sem peso, leve, silenciosa como uma palavra caída de um poema.
Atravesso paredes maceradas, ignoro os apaixonados que se escondem nos desvãos de escadas que não levam a lado nenhum, e roço ao de leve os olhos molhados dos gatos que bebem o azul dos rios.
Cruzo as águas, abro as minhas asas, suplico luzes no olhar daquele me olha com o seu frio olhar de pedra, atravesso as nuvens, as névoas, sobrevoo as árvores nuas.
Ninguém.
Onde a memória dos que por aqui desfiavam poemas, onde a saudade dos que por aqui soltavam palavras no ar?
O céu rasga-se e descobre uma faixa de azul muito puro, uma gaivota olha a cidade e espera o vento e eu por aqui, em silêncio, tanto silêncio, tanto. O mundo caíu num pesado silêncio, tão pesado, tanto silêncio, tão silenciosa a queda.
O vento anuncia-se, as aves recolhem-se, sabem como o vento pode ser cruel, a mancha de azul estreita-se, e eu tenho vontade de me enrolar nas árvores, de me cobrir de palavras e, em silêncio, sempre em silêncio, espero que o vento me traga os deuses, as casas, os viajantes, a vontade de voar. O vento, o vento, esse voar lento.
[Abaixo do céu em que o azul quase se ocultou, um belo poema de Nuno Júdice e, logo abaixo, mais uma maravilhosa interpretação de Yo-Yo Ma, agora com Bach, talvez a voz de Deus.]
Num dia de névoa no Ginjal, Lisboa sob uma luminosidade coada |
Um vento levantou-se das mãos do ocaso,
atravessou as ruas com o seu passo lento,
fez descer os panos das cordas onde os deuses
os tinham pendurado, e entrou nas casas,
arrombando as janelas com o seu pulso
ferido. Segui a nuvem vermelha que
o anunciara; e colhi as aves exaustas
da árvore do crepúsculo, enchendo
com elas os sacos da memória. Mas
o viajante que encontrei à entrada
da cidade perguntou-me para que
os queria; e quando lhe dei esses sacos
sangrentos pô-los às costas, seguindo
o seu caminho, até desaparecer
do outro lado do horizonte. E
o vento foi atrás dele, perseguindo
o seu canto, e deixando nas ruas
o silêncio de um mundo imóvel.
['Vento' de Nuno Júdice in 'Fórmulas de uma luz inexplicável']
18 fevereiro, 2013
Um gato não serve realmente para nada
A mulher que não tem filhos, nem irmãos, nem pais, nem marido, nem amante, nem amigos não serve realmente para nada.
O homem que perdeu o emprego, a casa, a mulher e a guarda dos filhos não serve realmente para nada.
O velho que se senta na beira do rio olhando realmente para nada, sem ninguém em casa, sem ninguém em lado nenhum também não serve realmente para nada.
A velha que se senta no banco da paragem, olhar perdido, sem esperar nada nem ninguém não serve realmente para nada.
O jovem a quem os pais não conseguem pagar os estudos, que não arranja trabalho, que não consegue deixar de sobrecarregá-los, que não consegue ter uma casa sua nem mulher nem filhos também não serve realmente para nada.
O doente que está no hospital sem ninguém que o vá buscar porque ninguém pode fazer-lhe companhia ou pagar por uma ou pagar-lhe os medicamentos ou alimentá-lo não serve realmente para nada.
O homem e a mulher que têm família, casa e trabalho mas a quem os proventos foram de tal forma reduzidos que já não conseguem pagar o empréstimo do carro nem o da casa nem dar todas as refeições aos filhos também já não servem realmente para nada.
Pensando bem, nenhum de nós serve realmente para nada.
E, pensando ainda melhor, acho que está mas é na altura de eu organizar um exército com os gatos todos do Ginjal e avançar com eles pelo conselho de ministros adentro.
A seguir trazia-os comigo e já os imagino de barriga cheia, a rebolarem-se na areia da praia, ao calor, contentes, ronronando de alegria pela desinfestação efectuada e eu, gata como eles, ronronaria também sonhando com um país melhor onde todos nós servíssemos muito para tudo.
[Abaixo de dois dos meus amigos gatos, mais um poema de Inês Lourenço e, logo a seguir, mais uma grande interpretação de Yo-Yo Ma, desta vez numa música de Dvořák - e eu acabei de constatar que, quando, tempos atrás, andei a trazer aqui compositores estupidamente me esqueci deste compositor, falta que, um dia destes, terei que reparar]
Numa das praias do Ginjal, dois dos meus amigos gatos, prontos para avançar |
ao Eugénio de Andrade
Um gato não serve realmente
para nada, vão quase seis séculos
desde o tempo das caravelas
onde embarcou com os marítimos para
extermínio dos roedores que
infestavam o porão das naus. Agora
só o dorso oferece às carícias
ou ao regaço o peso
do pequeno corpo, ronronando
a grata beleza de existir
['Préstimo' de Inês Lourenço in Câmara Escura]
nesta imperfeita madrugada em que as línguas dos homens e dos anjos se confundem
Sobe a noite sobre o meu corpo frio. Nada aquece o meu corpo. Deito-me sobre esta cama vazia, gelada e o meu corpo é uma sombra. No meu corpo não há carne, não há um rio de sangue que se move, quase não há respiração que se sinta. Uma sombra.
Não sei se a janela ficou aberta ou se está fechada desde que te foste embora. Não sei, não me interessa. Não sei se entra o sol ou o luar ou se apenas entram as nuvens carregadas de lágrimas. Não sei.
A casa está fria, silenciosa, aquele silêncio cheio de tristeza que habita as casas onde apenas a sombra de uma mulher se desloca. Não há música, nem cheiro a pão nem se ouve o cantar dos pássaros. Nem os gatos já aqui vêm porque sabem que aqui nada encontram. Esta é a casa onde a solidão se instalou sem remissão.
Mas, então, aqui deitada, exangue, inerte, nesta cama larga e fria, eis que ouço um som que não reconheço. Parecem passos no telhado. A sombra que sou agita-se, não sei se é o meu sangue, se é a minha fome, se são vestígios daquela que em tempos fui. Levanto-me, quase sem força, trémula, assustada, pequeno pássaro indefeso, tanto medo, tanta velada vontade.
Uma luz vem do telhado. Talvez sejas tu, talvez sejas tu que me vens incendiar os sentidos que eu julgava para sempre adormecidos. Uma luz na mão de quem dá passos no telhado da minha casa, uma luz na mão do anjo que pousou no meu telhado. Ou uma estrela, talvez apenas uma estrela, tento sossegar-me.
A madrugada avança, fresca, perfeita, e eu hesito, enredada nas minhas frágeis contradições. Depois encho-me de coragem, vou até à janela, abro-a, deixo que a neblina entre, deixo que as estrelas entrem, deixo que os primeiros raios de luz entrem, olho os anjos que me olham, e depois vejo que não é um anjo, que és tu, tu que trazes um incêndio no teu peito, e, ainda trémula, ainda a medo, deixo que entres, deixo que afastes de mim todas as sombras, deixo que me cubras com o calor do teu corpo, deixo que entres no meu corpo como um anjo carregado de estrelas.
[A seguir ao belo poema de Alice Vieira, temos hoje um novo grande intérprete. Desta vez é Yo-Yo Ma que faz o violoncelo soltar lamentos como se fosse a mulher que abre a janela para que entre um anjo com um incêndio no peito, na música de Elger]
Andando com uma chama na mão sobre os telhados do Ginjal |
como dizer aos meus olhos que se afastem
do incêndio que lavra a oriente do teu sangue
rasgando a minha fome
e me protejam nesta imperfeita madrugada
em que as línguas dos homens e dos anjos
se confundem
[Poema 2 de 'Pelas mãos e pelos olhos eu juro' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água']
Yo-Yo Ma (com condução de Barenboim) interpreta Edward Elgar - Concerto para violoncelo
Com um abraço agradecido para quem me ajuda tão generosamente na selecção dos grandes intérpretes não querendo que eu mencione o seu nome.
15 fevereiro, 2013
Ao render da luz
A névoa começa a dissipar-se. Era um véu branco e leve e eu ocultava-me debaixo dele. Suave e frio sobre a minha pele, o véu cobria a minha hesitação.
Mas o sol começa a aparecer. É a primavera que começa a anunciar-se, inocente, tímida, um pequeno rebento aqui, uma pequena flor ali, um pássaro que canta menos arisco, uma criança que corre na areia.
Desapareceu o meu véu. O meu colo começa a desvendar-se, a linha entre os seios, os meus lábios, a minha memória. Tento proteger-me, busco a sombra. Mas o sol começa a percorrer os recantos e eu percebo que não vale a pena esconder-me mais.
Seja.
Abro, então, as janelas: que entre a luz. Olho as paredes brancas, caiadas. Que sobre ela incida o sol, que sobre mim desça o calor do sul.
Coloco as frutas numa cesta, será uma forma de dar as boas vindas, abro a porta, deixo que o gato sinuoso se esgueire, deixo que a maresia suave venha perfumar o quarto.
Entardece. É a hora da rendição da luz, a lenta rendição da luz. Esta é a hora em que Artemes deixa que as crianças saiam, brinquem no quintal, esta é a hora em que Artemes espera que o poeta espreite ao portão, pergunte se pode entrar.
Artemes escondia a memória sob um véu mas o véu dissipou-se, lentamente, lentamente. Artemes lembra agora o poeta que um dia, lá muito atrás, abandonou. Não sabe ainda o que lhe dirá mas sabe que lhe deve uma palavra.
Artemes escondia a memória sob um véu mas o véu dissipou-se, lentamente, lentamente. Artemes lembra agora o poeta que um dia, lá muito atrás, abandonou. Não sabe ainda o que lhe dirá mas sabe que lhe deve uma palavra.
[Abaixo da cal, da fruta e da luz do poema de Luiza Neto Jorge, mais uma maravilhosa interpretação de David Fray, desta vez com Beethoven]
Num recanto do Ginjal |
Portas cerradas mesmo aos deuses.
Postigos por estrear.
O sol, de cal.
Ao render da luz as mães
soltam os filhos à lua
nos quintais.
[Poema de Silves 83 de Luiza Neto Jorge in poesia]
14 fevereiro, 2013
13 fevereiro, 2013
Sonhei tanto com um ardente corpo
Foi por ti que sempre esperei. Queria alguém que vivesse movido pelo sonho, guiado por aves do mar, queria alguém que me compreendesse e que compreendesse as marés, os ventos, as luas. Queria alguém cujo olhar mostrasse o afecto pelas correntes do rio, pelas rosas que despontam ainda mal a primavera se anuncia, queria alguém que sentisse os sons da terra e os sopros que arrepiam as águas.
Tanto que esperei por ti. Tantos corpos que tive que percorrer, já cansado, já sem esperança, sentindo a noite a descer sobre o meu corpo gasto.
Enganei o ardente desejo do meu corpo em corpos comprados, em corpos oferecidos, em corpos roubados. Mas em nenhum corpo te encontrei. Espreitava o fundo do olhar e em nenhum encontrava aquela inteligência branca que procurava, aquela respiração suave que em vão perseguia.
Andei por labirintos sombrios, vielas esconsas, sem ânimo enfrentei monstros, medos, aspirei cheiros que me causavam repulsa, senti a humidade de corpos que me eram estranhos, atravessei túneis infinitos, enredei-me em círculos infernais - e em lado nenhum te encontrava. Perdia-me, então, entre sustos, pesados desalentos, frágeis equilíbrios.
Até que um dia o meu corpo sentiu que o sangue se agitava, que havia festa no meu corpo. Percebi depois que eras tu que atravessavas a névoa, rasgavas os muros e, trazida por muitas gaivotas brancas e livres, vinhas na minha direcção. Eras tu, corpo breve e ágil como um animal, olhos doces, lábios húmidos como as flores pela manhã, eras tu que vinhas até mim. Eras tu que desdobravas sonhos limpos como lençóis nupciais, que descobrias a música das árvores, que desenhavas velas brancas sobre os rios. Eras tu por quem eu tanto tinha esperado.
Ainda caminhamos assim, rente ao rio, trazidos pelas aves que se soltam do teu coração, abraçados, sem pressa. E todos os dias começamos um novo caminho porque são nossos todos os dias, todos os sonhos, todo o amor e desejo que os nossos corpos reinventam ao som da tua doce e suave respiração.
[Abaixo poderão ver um muito belo poema de amor e, logo abaixo, mais um momento de quase magia: David Fray interpreta Mozart. Les beaux esprits se rencontrent.]
Andando com gaivotas junto ao Tejo |
Sonhei tanto com um ardente corpo
entre o fragor dos monstros e a mudez dos muros
que o meu suor modelou os espectros do mundo
e as sonâmbulas figuras do meu desejo errante
Perdi-me tantas vezes no desespero dos labirintos
na solidão da sede ou no fundo de um túnel
que me senti incapaz de esperar o nupcial encontro
que me libertaria dos círculos infernais
Mas encontrei-te para além da névoa
com o fulgor oval de um começo puro
e com a fragrância dos teus olhos matinais
No animal ardor o meu sangue subia
e no teu rosto via uma rosácea azul
e nos teus lábios um sonho de inteligência branca
em que voavam duas aves na penumbra das fronteiras
[Poema de António Ramos Rosa in «Antologia Poética», O teu Rosto]
12 fevereiro, 2013
É bom sondarmos os abismos que nunca vão cicatrizando
Atravesso as águas, os lagos, deslizo pelos rios, busco o oceano. Levas-me e eu vou. Por ti eu vou. À nossa frente voam as gaivotas, mulheres como tu, e mostram-nos o caminho. Aqui vamos levados por um cortejo de pássaros de longas asas, aqui vamos, eu e tu e mil asas brancas.
Para trás deixo os veleiros, os lugares habitados, a fantasia, por ti deixo tudo, não olho para trás.
Que sei eu de abismos, de labirintos, de caminhos secretos? Que sei eu das linhas que o teu coração percorreu antes de mim? Que sei eu? Nada. Mas nada quero agora saber. Antes de ti eu não era nada, era apenas um esboço. Por isso, para que quereria eu saber dos caminhos que, então, percorrias até chegares até mim? Chegaste e só isso me interessa.
Queres que te ouça, tens muitas vidas para me contar, tens cicatrizes para curar. Mas eu trato as tuas cicatrizes sem querer saber o que as provocou. Dizes-me, ouve, sangrei, houve tantos rasgos no meu coração, junto a mim havia um rio de sangue, quero que saibas. Mas eu não quero saber. Por ti, eu ignoro a tua vida antes de mim, esqueço a minha vida antes de ti, deixo tudo, tudo, porque só os caminhos que agora atravessarei contigo me interessam.
Mas tu insistes, escuta, eu quero que saibas que não escutei avisos, quero que saibas que eu não era eu. Mas eu digo-te, shiiiiu..., agora já chega, não digas nada, nada, agora quero apenas que me leves. Por ti percorrerei todas as águas, por ti e contigo serei lago, rio, por ti atravessarei todos os oceanos, por ti irei sem saber para onde. Por ti, meu amor de todas as águas.
[Abaixo do poema de David Mourão-Ferreira, poeta a quem eu tanto gosto de ouvir dizer poesia, senhor de uma voz quente, quente e bela como é quente e bela a sua poesia (e, se escrevo no presente, não é engano: é mesmo intencional), poderão ouvir mais um belíssimo momento de David Fray. Céus, ando encantada com este miúdo, que bem que ele interpreta. Nunca agradecerei suficientemente ao Leitor que mo deu a conhecer, tal como agradeço a todos os outros com quem tanto aprendo]
O Tejo hoje em Belém, junto ao espelho de água |
Quantos em ti lagos e rios
Quantos em ti os oceanos
Água vermelha que aos ouvidos
traz o aviso
de nenhuns campos
É bom sondarmos os abismos
que nunca vão cicatrizando
E ao som da água pressentirmos
de onde provimos
aonde vamos
['Poema XXV' de David Mourão-Ferreira in 'O corpo iluminado']
11 fevereiro, 2013
Mark Rothko elevava as cores à ignorância de Deus
Um dia olhaste o rio e disseste que querias ver o seu azul reflectido nesta parede. Fui buscar o azul mais igual que encontrei. Depois disseste que gostavas que a parte de baixo fosse da cor da luz do sol à hora do maior calor, aquela hora que traz as gaivotas até aqui, em busca de sombra. Fui, então, buscar o amarelo mais dourado que encontrei.
Chegaste-te para trás, olhaste de lado, de frente, de perto, de longe, semicerraste os olhos e disseste, a meio deverá haver uma linha branca, a linha do distante horizonte. Fui buscar o branco mais intangível, um rasgo de luz invisível.
Depois, de dia, enquanto dormias, pintei para ti esta parede.
Quando acordaste, antes do anoitecer, trouxe-te até aqui.
Nada disseste mas as lágrimas começaram a correr-te, depois ajoelhaste sobre as águas do rio, juntaste as mãos, agradeceste comovida, trouxeste até às minhas mãos o rio e o céu e o sol e a lonjura.
Tudo eu fazia por ti. Durante muito tempo, quando acordavas ao entardecer ou a meio da noite quando os gritos das gaivotas te traziam até ao rio, eu via-te junto a esta parede, rezando.
Mas isso foi há muito tempo.
Um dia saíste e não mais voltaste, não sei se voaste para longe ou se entraste nos labirintos do fundo do mar.
Por vezes, de madrugada ainda penso que vejo um vulto ajoelhado junto a este teu altar mas talvez seja apenas um sonho, ou um daqueles anjos que habita estas velhas casas.
Agora as tintas estão gastas, têm líquenes, vestígios de maresia, restos de tristeza, têm as minhas lágrimas, e têm as palavras que, em silêncio, lá deixo todos os dias para ti. E todos os dias, de manhã, junto a esta parede, eu procuro uma resposta, uma palavra, um sinal de ti, qualquer coisa que alimente o resto dos meus dias; mas apenas encontro o silêncio que habita entre os apelos que eu aqui te deixo.
[Abaixo do belo poema de Maria Andresen que fala de um poeta que me prende para além do que é racional, Mark Rothko, o piano maravilhoso de Bach nas mãos desse fantástico menino, David Fray, que tem apenas 31 anos]
Parede do velho casario do Ginjal |
Os papéis ardem como arde a casa
e ardem cidades que dentro de mim guardava
em nomes alheados que articulo como
prece levantada ao encontro dos acasos. Mark Rothko
elevava as cores à ignorância de Deus
[Poema de Maria Andresen in 'Livro das Passagens']
Eu penso mudar estes campos deitados, criar um nome para as coisas.
Olho o mundo a ficar sem graça, as pessoas a ficarem cinzentas, as ideias a ficarem medrosas e iguais umas às outras, as árvores a quebrarem, tristemente frágeis, os gatos a fugirem do frio, o futuro a ficar sombrio, longínquo, e penso que assim não vale.
Quero que os jovens tenham vontade de fazer não apenas amor, muito amor, mas também novas vidas, mais vidas, que sintam muita vontade de embalar sorrisos. E que as mulheres tenham vontade que o seu corpo seja o leite que alimenta as crianças de amanhã e que os homens se sintam realizados sabendo que um pouco de si viverá para além da sua vida.
E quero gente a fazer o pino, a dançar e a cantar, mulheres de sorriso aberto e cabelos com vida e cor, crianças com moinhos de papel na mão em dias de vento, quero flores, muitas flores e barcos brancos, o rio cheio de velas brancas. E quero que marido e mulher não fiquem de costas viradas, corpos adormecidos, mãos estrangeiras. Quero que se beijem mas com beijos de língua e que se acariciem com paixão adolescente e quero que as mulheres e os homens que vivem sozinhos saiam para a rua a sorrir, de braços abertos, coração aberto e que os cães saltem e corram a rir e a abanar o rabo e os gatos fitem as pessoas com compreensão e que as gaivotas voem com grandes asas brancas sobre os velhos que se sentem sós e tristes.
Quero que as ruas se encham de gente a conversar e a rir, quero que a música invada o corpo de todos, quero que o sol se solte sobre os céus enchendo de luz o olhar dos apaixonados, quero que as estrelas soltem o seu pó dourado sobre as inocentes mãos das crianças e que, por magia, ele se transforme em ouro, flores, pão, pássaros às cores, imensos rios.
E quero que os deuses não nos esqueçam, que nos tragam sempre no seu pensamento, que nos protejam de nós próprios, que nos mostrem o caminho do futuro, o caminho onde nunca, nunca se anda para trás, um caminho de inebriante felicidade, o leito dos prazeres, o infinito labirinto do saber, um caminho onde a terra seja tão fértil que das árvores nasçam palavras e sorrisos.
É isso que eu quero.
(É querer muito...? Eu acho que não.)
[De novo aqui no Ginjal Herberto Helder, o homem cujo corpo é feito de terra e do qual nascem palavras como indómitos arbustos. Logo a seguir, no ciclo dos Grandes Intérpretes, David Fray, pianista, virtuoso. Chegou-me pela mão de um Leitor a quem muito agradeço]
O Cristo rei avistado do Jardim do Ginjal |
Eu penso mudar estes campos deitados, criar
um nome para as coisas.
Onde era estábulo, na doce morfologia,
fazer
com que as estrelas mugissem e as poeiras
ressuscitassem.
Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
que minha inteligência se torne terrífica.
Unir a ferocidade da noite ao inebriado
movimento da terra.
Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
Fazer explodir o descido coração das coisas.
[Excerto do poema IV do Poemacto de Herberto Helder in Textos e Pretextos, uma publicação de grande qualidade]
10 fevereiro, 2013
David Fray (e Marin Alsop conduzindo a orquestra) interpreta Mozart - concerto Nº 22 para Piano
Com os meus agradecimentos ao Leitor que tão generosamente me deu este intérprete a conhecer
08 fevereiro, 2013
produzo o corpo por dentro e sou igual ao que vejo
Sou os meus olhos e o que vejo, sou a minha pele e o meu coração e o que sinto, sou a que respira e o ar que me alimenta.
Sou árvore e raízes e a terra em que elas se entranham, sou folhas e o vento que as ondula, sou madeira, vegetal, sou seiva e sou o sol que acaricia e aquece e sou a sombra que esconde e refresca e enlouquece.
Sou a maresia fria e pura e a aragem que a leva pelos ares, sou nuvem branca, molhada, e sou a pele que a recebe, sou o sonho e os jardins em que os sonhos se perdem.
Sou o rio e os peixes e os navios que repousam no mais fundo do leito e sou os veleiros que deslizam e as velas que se desenrolam, sou a sereia que não existe e o longo lamento que se ouve nas noites de luar.
Sou o pássaro que pousa na árvore e sou o seu límpido canto que atravessa o espaço. Sou o seu corpo frágil, as penas suaves que o cobrem, sou o horizonte que vejo ao longe, sou o sol que se esconde, sou a criança que nasce, sou a flor indecente.
E sou as palavras que me espelham, que me desvendam, que me levam pelo espaço até vós. Sou a lonjura e o sorriso que esboçais, a lágrima que pelo vosso rosto teima em descer. E sou a mão que limpa a vossa lágrima, sou a mão amiga que vos falta, sou o riso claro, a janela que se abre, o gato que salta para os vossos joelhos, o brinquedo que a criança tem nas mãos, sou o rosto que imaginais, sou a que se esconde, a que se mostra, a que se oferece.
Sou tudo e sou tão pouco.
[A seguir ao pássaro preto de bico amarelo, um curioso poema de um poeta que aqui aparece pela primeira vez, Valter Hugo Mãe. Abaixo, por ser fim de semana, no intervalo entre Grandes Intérpretes, um duo improvável que interpreta Bach em copos de vidro]
Pássaro negro de bico amarelo, um grande amigo que, por vezes, encontro no Jardim do Ginjal |
estou escondido na cor amarga do
fim da tarde. sou castanho e verde no
campo onde um pássaro
caiu. sinto a terra e orgulho
por ter enlouquecido. produzo o corpo
por dentro e sou igual ao que
vejo. suspiro e levanto vento nas
folhas e frio e eco. peço às nuvens
para crescer. passe o sol por cima
dos meus olhos no momento em que o
outono segue à roda do meu tronco e, assim
que me sinta queimado, leve-me o
sol as cores e reste apenas o odor
intenso e o suave jeito dos ninhos ao
relento
['estou escondido na cor amarga do fim da tarde' de Valter Hugo Mãe]
07 fevereiro, 2013
Que repouse para sempre o uivo desse sexo fulgente
Sabeis, senhora, que vida é a minha?
Sabeis, senhora, das noites mudas e frias, sem outro corpo que me acalente?
Não, não sabeis. Só eu sei dos dias que amanhecem sem outros dedos que se cruzem com os meus, sem outro som que não o meu quando chamo por quem nunca vem.
Amanhece e a relva nasce verde, fresca e eu, silente, invisível, desloco-me por entre as sombras, sinto a erva húmida, olorosa, e não sei o que procuro porque quem eu procuro nunca vem. Passam os gatos pelos caminhos vazios e não me vêem. Chego a duvidar da minha existência, senhora.
Deito-me no chão molhado, cheiro a terra, encosto a boca às raízes das árvores e murmuro o nome que vive dentro de mim. Ninguém me ouve, nem os gatos. Passam indiferentes, como se eu não estivesse aqui. E, se calhar, não estou, senhora. Há muito que sou apenas uma sombra, um vulto cego, inútil.
Sabeis, senhora, a solidão que é viver assim, vazio, quebrado, porcelana velha, imprestável?
Logo ali passa o rio que tão bem conheceis, senhora, e tantas vezes eu me deito a ele, lavai-me, lavai-me, digo eu, lavai-me de pensamentos agres e ímpios. Mas as águas passam e não levam a minha amargura nem os meus pecados, senhora.
Pequei? Achais que pequei, é isso, senhora? É isto, pois, uma é punição? Se é, perdoai-me, perdoai-me, senhora, que já vai longo o meu sofrimento.
Encostai o vosso ouvido à terra, senhora. Se ouvirdes um soluço contido, se ouvirdes o vosso nome como se fosse a terra em sentido choro, sabei, senhora, que sou eu, senhora, que não consigo conter o meu sofrido lamento.
Voltai, voltai, senhora, voltai. Não deixeis que o vosso sexo fulgente continue a atormentar-me com o seu longo uivo que atravessa as noites aqui, junto ao rio. Vinde, senhora, vinde, deixai-me que cheire, beije, acaricie a papoila encarnada e negra que escondeis sob as vossas vestes e que, em tempos, disseste que era minha, senhora, deixai, deixai. Ou, então, deixai que ela repouse, para sempre dormente, na noite grave que para sempre me envolverá.
Mas, senhora, amor meu, não me abandoneis ainda.
[Abaixo do poema de Catarina Nunes de Almeida, podereis encontrar a música de Mozart pelas mãos de Richter. Talvez até que as palavras ganhem uma textura diferente se acompanhadas por essa música]
O jardim do Ginjal, verdemente coberto, o tejo logo ali |
Nessa noite grave dia nasceu, senhor.
os dedos atrevendo-se aos dedos
artesanais como a erva.
Que repouse para sempre no tímpano dos seixos
o uivo desse sexo fulgente
porcelana do prado quebrando-se na boca
hábil e agre
como a carne magra
das papoilas.
[Poema incluido em 'Mágoas ou Cantos de Alvoroço' de Catarina Nunes de Almeida in 'Bailias']
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