Sabeis, senhora, que vida é a minha?
Sabeis, senhora, das noites mudas e frias, sem outro corpo que me acalente?
Não, não sabeis. Só eu sei dos dias que amanhecem sem outros dedos que se cruzem com os meus, sem outro som que não o meu quando chamo por quem nunca vem.
Amanhece e a relva nasce verde, fresca e eu, silente, invisível, desloco-me por entre as sombras, sinto a erva húmida, olorosa, e não sei o que procuro porque quem eu procuro nunca vem. Passam os gatos pelos caminhos vazios e não me vêem. Chego a duvidar da minha existência, senhora.
Deito-me no chão molhado, cheiro a terra, encosto a boca às raízes das árvores e murmuro o nome que vive dentro de mim. Ninguém me ouve, nem os gatos. Passam indiferentes, como se eu não estivesse aqui. E, se calhar, não estou, senhora. Há muito que sou apenas uma sombra, um vulto cego, inútil.
Sabeis, senhora, a solidão que é viver assim, vazio, quebrado, porcelana velha, imprestável?
Logo ali passa o rio que tão bem conheceis, senhora, e tantas vezes eu me deito a ele, lavai-me, lavai-me, digo eu, lavai-me de pensamentos agres e ímpios. Mas as águas passam e não levam a minha amargura nem os meus pecados, senhora.
Pequei? Achais que pequei, é isso, senhora? É isto, pois, uma é punição? Se é, perdoai-me, perdoai-me, senhora, que já vai longo o meu sofrimento.
Encostai o vosso ouvido à terra, senhora. Se ouvirdes um soluço contido, se ouvirdes o vosso nome como se fosse a terra em sentido choro, sabei, senhora, que sou eu, senhora, que não consigo conter o meu sofrido lamento.
Voltai, voltai, senhora, voltai. Não deixeis que o vosso sexo fulgente continue a atormentar-me com o seu longo uivo que atravessa as noites aqui, junto ao rio. Vinde, senhora, vinde, deixai-me que cheire, beije, acaricie a papoila encarnada e negra que escondeis sob as vossas vestes e que, em tempos, disseste que era minha, senhora, deixai, deixai. Ou, então, deixai que ela repouse, para sempre dormente, na noite grave que para sempre me envolverá.
Mas, senhora, amor meu, não me abandoneis ainda.
[Abaixo do poema de Catarina Nunes de Almeida, podereis encontrar a música de Mozart pelas mãos de Richter. Talvez até que as palavras ganhem uma textura diferente se acompanhadas por essa música]
O jardim do Ginjal, verdemente coberto, o tejo logo ali |
Nessa noite grave dia nasceu, senhor.
os dedos atrevendo-se aos dedos
artesanais como a erva.
Que repouse para sempre no tímpano dos seixos
o uivo desse sexo fulgente
porcelana do prado quebrando-se na boca
hábil e agre
como a carne magra
das papoilas.
[Poema incluido em 'Mágoas ou Cantos de Alvoroço' de Catarina Nunes de Almeida in 'Bailias']
Belíssimo apelo poético em forma de prosa.
ResponderEliminar:)
Muito obrigada, jrd.
EliminarEscrever coisas assim é a minha forma de fazer ioga ou de rezar ou de fazer essas coisas que as outras pessoas fazem para ficar mais descansadas e felizes.
Olá UJM,
ResponderEliminarUm texto cheio de poesia e beleza como já nos habituou. Se, escrevendo assim, é a sua forma de ser feliz, nós também nos sentimos felizes de a ler
e de saber que é feliz.
Um beijinho.
Olá Maria Eduardo,
ResponderEliminarÉ para mim uma espécie de abrir a janela, respirar, ver o que se passa na rua. Ou seja, uma coisas sem preocupações, só leveza.
Um beijinho!