Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

15 fevereiro, 2013

Ao render da luz


A névoa começa a dissipar-se. Era um véu branco e leve e eu ocultava-me debaixo dele. Suave e frio sobre a minha pele, o véu cobria a minha hesitação.

Mas o sol começa a aparecer. É a primavera que começa a anunciar-se, inocente, tímida, um pequeno rebento aqui, uma pequena flor ali, um pássaro que canta menos arisco, uma criança que corre na areia.

Desapareceu o meu véu. O meu colo começa a desvendar-se, a linha entre os seios, os meus lábios, a minha memória. Tento proteger-me, busco a sombra. Mas o sol começa a percorrer os recantos e eu percebo que não vale a pena esconder-me mais.

Seja.

Abro, então, as janelas: que entre a luz. Olho as paredes brancas, caiadas. Que sobre ela incida o sol, que sobre mim desça o calor do sul.

Coloco as frutas numa cesta, será uma forma de dar as boas vindas, abro a porta, deixo que o gato sinuoso se esgueire, deixo que a maresia suave venha perfumar o quarto.

Entardece. É a hora da rendição da luz, a lenta rendição da luz. Esta é a hora em que Artemes deixa que as crianças saiam, brinquem no quintal, esta é a hora em que Artemes espera que o poeta espreite ao portão, pergunte se pode entrar.

Artemes escondia a memória sob um véu mas o véu dissipou-se, lentamente, lentamente. Artemes lembra agora o poeta que um dia, lá muito atrás, abandonou. Não sabe ainda o que lhe dirá mas sabe que lhe deve uma palavra. 



[Abaixo da cal, da fruta e da luz do poema de Luiza Neto Jorge, mais uma maravilhosa interpretação de David Fray, desta vez com Beethoven]


Num recanto do Ginjal



                                        Portas cerradas mesmo aos deuses.
                                        Postigos por estrear.
                                        O sol, de cal.

                                        Ao render da luz as mães
                                        soltam os filhos à lua
                                        nos quintais.


                                        [Poema de Silves 83 de Luiza Neto Jorge in poesia]

8 comentários:

  1. Olá UJM,
    Que bom ler as suas palavras mágicas.
    Este seu cantinho "zen", tranquiliza-nos o espírito, faz-nos esquecer as babozeiras que dizem os incompetentes que temos no governo.
    Quem me dera poder fugir para um sítio como aquele que descreve!!
    Que nos valha a Primavera e os dias bonitos!!
    Desejo que o seu dia seja tão feliz como a felicidade que aqui nos transmite.
    Bom fim de semana.
    Aquele abraço.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Que bom revê-la! Fico contente!

      Desde quinta feira passada, quando escrevi isto, o tempo mudou muito. Hoje esteve outra vez um tempo frio e de chuva. Tomara a primavera que este frio e esta humidade já me começam a aborrecer.

      Obrigada pelas suas palavras.

      Um beijinho e dias muito bons para si!

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  2. O poema que abre o CD 'Os Poetas' é o Magnólia da Luiza Neto Jorge.
    Depois são quatro minutos de música sublime ( que quase me faz chorar), em que se destaca o acordeão mágico do Gabriel Gomes, um dos fundadores dos Madredeus.

    Espero que encontre o CD, tentou a Assírio?
    É que ele foi feito para comemorar os 25 anos da editora.

    Beijinho

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Tomara que eu arranje esse CD. Sou fã de Rodrigo Leão e sou 'agarrada' a palavras de poetas.

      Encomendei-o na FNAC. A ver se tenho sorte. Se me disserem que não arranjam, tentarei então directamente a Assírio.

      Obrigada!

      beijinhos!

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  3. ESTA COISA DO AMOR

    Ontem fui ver o filme
    finalmente
    (faltava-me coragem)
    mas o apelo cresceu e lá fui eu
    Só se podia mesmo chamar AMOR
    .............................
    e ali estava a prova que passaram muitos anos
    quando aquele actor era o homem certo, inteligente, lindo, desejado
    e corria praia fora ao encontro da Annie
    quando o abraço deles nos arrepiava
    e a música entranhada em nós
    ficava
    enquanto o cão feliz rodopiava na areia

    De novo
    na grande intimidade
    "um homem e uma mulher" se amando
    já não o mar
    mas a dor por perto
    e um "Jean Louis" trôpego
    condenado
    ao gesto único
    sublime, adiado
    como se fosse um generoso e derradeiro abraço

    E nós que ainda nos temos...
    ali em silêncio
    de mão dada no escuro como antigamente
    sabendo que entre os dois grandes filmes decerto envelhecemos



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    1. Erinha,

      Que belas palavras as suas e que amor o vosso, sentindo no 'escurinho do cinema' que o amor é terno e eterno.

      Eu não tive coragem para ver esse filme nem a vou ter. Não consigo. Assisto agora de perto a 'esse filme'. Ainda hoje assisti. Tento sempre animar-me e animar mas custa-me tanto assistir ao avançar inclemente do tempo. E custa-me ver o que é a dedicação de quem cuida heroicamente de um outro a quem a sorte ou a vida pregou uma rasteira. Tudo isto é terrível para mim. Por isso, não consigo ir assistir ao Amor. Muito doloroso.

      A finitude da vida, especialmente a daqueles que me são muito próximos, é uma coisa que me inquieta.

      Mas gostei muito de ler as suas palavras. Tomara eu ser capaz de fazer uma observação tão realista desta situação.

      Um beijinho Erinha!



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  4. Olá UJM!

    Que lindíssimo texto o seu. Queria responder-lhe mas fiquei sem palavras. Fique-se com os meus agradecimentos e com uma vénia profunda e respeituosa.

    Da CR um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      Que contente e sensibilizada fiquei ao ver um comentário vindo de tão longe. Muito obrigada por tudo.

      Um abraço!

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