Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 fevereiro, 2013

Eu penso mudar estes campos deitados, criar um nome para as coisas.


Olho o mundo a ficar sem graça, as pessoas a ficarem cinzentas, as ideias a ficarem medrosas e iguais umas às outras, as árvores a quebrarem, tristemente frágeis, os gatos a fugirem do frio, o futuro a ficar sombrio, longínquo, e penso que assim não vale.

Quero que os jovens tenham vontade de fazer não apenas amor, muito amor, mas também novas vidas, mais vidas, que sintam muita vontade de embalar sorrisos. E que as mulheres tenham vontade que o seu corpo seja o leite que alimenta as crianças de amanhã e que os homens se sintam realizados sabendo que um pouco de si viverá para além da sua vida.

E quero gente a fazer o pino, a dançar e a cantar, mulheres de sorriso aberto e cabelos com vida e cor, crianças com moinhos de papel na mão em dias de vento, quero flores, muitas flores e barcos brancos, o rio cheio de velas brancas. E quero que marido e mulher não fiquem de costas viradas, corpos adormecidos, mãos estrangeiras. Quero que se beijem mas com beijos de língua e que se acariciem com paixão adolescente e quero que as mulheres e os homens que vivem sozinhos saiam para a rua a sorrir, de braços abertos, coração aberto e que os cães saltem e corram a rir e a abanar o rabo e os gatos fitem as pessoas com compreensão e que as gaivotas voem com grandes asas brancas sobre os velhos que se sentem sós e tristes.

Quero que as ruas se encham de gente a conversar e a rir, quero que a música invada o corpo de todos, quero que o sol se solte sobre os céus enchendo de luz o olhar dos apaixonados, quero que as estrelas soltem o seu pó dourado sobre as inocentes mãos das crianças e que, por magia, ele se transforme em ouro, flores, pão, pássaros às cores, imensos rios.

E quero que os deuses não nos esqueçam, que nos tragam sempre no seu pensamento, que nos protejam de nós próprios, que nos mostrem o caminho do futuro, o caminho onde nunca, nunca se anda para trás, um caminho de inebriante felicidade, o leito dos prazeres, o infinito labirinto do saber, um caminho onde a terra seja tão fértil que das árvores nasçam palavras e sorrisos. 

É isso que eu quero. 

(É querer muito...? Eu acho que não.)



[De novo aqui no Ginjal Herberto Helder, o homem cujo corpo é feito de terra e do qual nascem palavras como indómitos arbustos. Logo a seguir, no ciclo dos Grandes Intérpretes, David Fray, pianista, virtuoso. Chegou-me pela mão de um Leitor a quem muito agradeço]


O Cristo rei avistado do Jardim do Ginjal




                                     Eu penso mudar estes campos deitados, criar
                                     um nome para as coisas.
                                     Onde era estábulo, na doce morfologia,
                                     fazer
                                     com que as estrelas mugissem e as poeiras
                                     ressuscitassem.
                                     Dizer: rebentem os taludes, enlouqueçam as vacas,
                                     que minha inteligência se torne terrífica.
                                     Unir a ferocidade da noite ao inebriado
                                     movimento da terra.
                                     Posso mudar a arquitectura de uma palavra.
                                     Fazer explodir o descido coração das coisas.



[Excerto do poema IV do Poemacto de Herberto Helder in Textos e Pretextos, uma publicação de grande qualidade]

2 comentários:

  1. Nem lhe vou dizer, mais uma vez, que adorei o que escreveu.
    Que outra razão teria eu para vir aqui todos os dias se assim não fosse?
    Hoje quero partilhar consigo, que tanto gosta de livros, dois tesouros (para mim são):

    1- A Textos e Pretextos nr. 5, inverno de 2004, totalmente dedicada ao Eugénio de Andrade.
    A apresentação foi na Biblioteca do Fundão e estavam lá imensos escritores e amigos do poeta, vindos do Porto, Lisboa e também aqui das Beiras.
    Foi uma tarde inesquecível!

    2- O cd "Os Poetas", com música do Rodrigo Leão e poemas escritos e ditos pelos seus autores, Al Berto, Cesariny, e também Herberto Helder, sempre tão esquivo nestas coisas...
    Pois o grande, enorme Herberto Helder diz, de maneira magnífica, dois grandes poemas:
    'No sorriso louco das mães' e
    'Minha cabeça estremece'.
    Admirável!

    Ficaria muito feliz se também os tivesse, quase aposto que sim.

    Bj e continuação de boas mini-férias.

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Dois tesouros, certamente que, infelizmente não tenho. Mas tentarei descobri-los pois ambos são o género de preciosidades a que eu muito gostaria de deitar a mão.

      E se há coisa que eu anseio por poder usufruir é a lançamentos como os que descreve. Se há sessões à noite ainda vá que não vá, tento ir. Mas geralmente são às 6 ou 6 e picos e para se atravessar Lisboa a essa hora e arranjar maneira de estacionar é outra aventura. Ora isso é incompatível com a minha vida profissional.

      Mas lá chegará o tempo em que o poderei fazer e, da forma como as coisas andam, o que neste momento desejo é que essa disponibilidade só me apareça na altura certa...

      E também não estou de mini-férias... Quem me dera. Mas trabalhei hoje e só cheguei a casa quase às 9 da noite. Amanhã, sim, é que folgo. A ver se aproveito bem o dia.

      Muito obrigada pelos tesouros que me vai revelando e que me fazem ir procurá-los.

      Um beijinho, Antonieta!

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