Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 fevereiro, 2013

Dêem-me uma deusa passageira mais nuvem que mulher


Aponto a objectiva, escolho o ângulo, a luz, o centro nítido. Apuro o olhar e espero que a imagem perfeita me apareça. Ou foco o rio, as águas que se movem, ou as gaivotas que gritam em plena loucura, ou espio o velho pescador, curvado, à espera do peixe para a refeição, ou acompanho o largo barco carregado de pessoas, ou espreito a bela cidade do outro lado, ou as nuvens efémeras, imaterias.

Caçador, furtivo, aqui estou eu. Na manhã carregada de fria maresia, sou o intruso, o estrangeiro. As gaivotas não me reconhecem e os gatos não se aproximam.

Venho caçar e espero o momento perfeito. Arma apontada, dedo ágil, os nervos eriçados, pronto. 

E passa uma mulher que me espia, que me espreita, que me rodeia. Mas estou tão absorto que não a vejo. A mulher percorre a paisagem e coloca-me no meio da paisagem. Eu, a presa perfeita, indefeso, desatento.

Sem a ver, sem sequer pressentir que ela ali está, silenciosa, caçadora também, olho o horizonte e penso, Dai-me uma mulher, que ela venha a voar, que ela solte os cabelos como quem solta as asas, que ela venha apenas vestida com flores, que venha balouçar-se numa nuvem aqui à minha frente. Que ela venha a sorrir, inocente no seu imenso descaramento, que depois se desnude, que dos seios se soltem lírios, que ela sorria por me ver parado, rodeado de lírios, que ela me seduza, me chame, me deite feitiços. Dai-me uma deusa com corpo de mulher, dai-me uma deusa com um sexo dourado, dai-me uma deusa com olhos de água, dai-me, dai-me essa imagem única, dai-me, nem que seja apenas por um breve instante.

E não vejo a mulher de cabelos de algas douradas, olhos de mar, sorriso doce, seios suaves, asas feitas de lírios que, em silêncio, espera que eu me volte e a veja.

Depois vai-se embora e apenas a vejo quando já vai muito longe, a voar, envolta numa nuvem feita de lágrimas. 



[Abaixo do caçador que foi caçado, mais um belo poema de José Gomes Ferreira e, logo a seguir, mais uma grande interpretação de Rostropovich, desta vez sobre Beethoven]


À procura de uma nuvem ou de uma mulher ou de uma gaivota
(ou de qualquer outra efémera coisa)


                                                                                                        (Fase cínica)

                                        E agora?
                       
                                        Agora, dêem-me uma deusa passageira
                                        mais nuvem do que mulher
                                        com sandálias de oiro,
                                        lírios nos olhos
                                        e a boca a rir por fora
                                        todas as lágrimas que quiser...

                                        (Uma nuvem de sonho à hora.)




                                        [Poema XXXI de José Gomes Ferreira in Poesia III]


8 comentários:

  1. As Deusas efémeras passam, mas voltam sempre que as convocamos. Se soubermos...

    :)

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    1. jrd,

      Voltarão? Não sei. Cada vez mais penso que a vida é uma sucessão de perfeitos acasos. Pode acontecer que as deusas efémeras voltem, sim, mas a outros locais, onde não está quem as chama. Não sei. A menos que a 'coisa' tenha 'muita força'... :)

      Um abraço!

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  2. Cheguei aqui a conselho da Olinda, mas voltarei de certeza. Não sei se gostei mais do texto ou da imagem, ou do conjunto, ou da ideia. Quantas vezes buscamos, sem ver, o que está ao nosso lado.

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    1. Olá Teresa,

      Se veio pela mão da Olinda veio por muito boa mão e eu só posso ficar agradecida (aliás acabei de lhe agradecer lá, no Xaile de Seda).

      Este é o meu espaço zen. Geralmente, à noite, quando me sento ao computador, é por aqui que começo. Solta-me a mão. A seguir vou para o meu outro blogue, o Um Jeito Manso (que é mais generalista).

      Espero que venha mais vezes de visita e que, de todas as vezes, se sinta muito bem.

      Um abraço, Teresa.

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  3. Cara UJM,
    Ah, se realmente as mulheres voassem, nuvens de espanto, flores aladas libertando aromas femininos! Na avidez do cio, os homens, ficariam inebriados, deixando-se arrebatar pelos invisíveis rastos de luz.

    Sempre adorei a poesia desse “poeta militante” vagabundo de luas e ruas de silêncios. Quase todos os dias leio e releio poemas de José Gomes Ferreira. Não cansam e transformam os cardos da vida, em frutos de prazer.
    Gostei do seu caçador furtivo na mira de breves instantes.
    Mais uma vez, muita saúde.

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    1. Olá dbo,

      As noites das terças feiras têm isto de bom, trazem-no até aqui, ao pé do rio onde é sempre muito bem vindo.

      Sabe uma coisa, dbo? As mulheres voam, sim, voam e lançam perfumes e deixam sorrisos. Assim os homens estejam atentos.

      Quanto a José Gomes Ferreira: foi a minha grande companhia poética durante a adolescência, início da idade adulta. Depois os seus livros ficaram arrumados na estante e, inexplicavelmente, fui-me esquecendo dele. No outro dia percebi a injustiça e agora estou a tentar reparar o erro. Gosto muito dele, um poeta militante como muito bem diz, um homem que sonhava que, quando andava de eléctrico, entrava uma mulher azul e se sentava nos seus joelhos. E eu, ao lembrar-me disso, gostava de ser uma mulher azul e entrar ao acaso num eléctrico a ver se o conseguia trazer de volta.

      Muito obrigada pelos votos de saúde, cada vez mais acho que é um bem precioso, muito, muito precioso. Desejo-lhe também muita saúde para si e para os seus. E felicidade!

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  4. Ólá Boa Noite!
    Só me restam palavras para agradecer à Olinda pela maravilhosa partilha do seu blog; não quero dar parabéns, quero admirar o que é belo.
    Fantástico!
    Abraço

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    1. Olá Manuela,

      Eu é que estou sensibilizada com as palavras da Olinda e com o carinho com que ela acolheu as minhas palavras lá na casa dela. E fico muito contente que aqui tenha chegado, trazida pela amabilidade dela.

      Obrigada pela sua visita e pelas suas palavras. Espero que se sinta sempre muito bem por aqui.

      Um abraço!

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