Foi por ti que sempre esperei. Queria alguém que vivesse movido pelo sonho, guiado por aves do mar, queria alguém que me compreendesse e que compreendesse as marés, os ventos, as luas. Queria alguém cujo olhar mostrasse o afecto pelas correntes do rio, pelas rosas que despontam ainda mal a primavera se anuncia, queria alguém que sentisse os sons da terra e os sopros que arrepiam as águas.
Tanto que esperei por ti. Tantos corpos que tive que percorrer, já cansado, já sem esperança, sentindo a noite a descer sobre o meu corpo gasto.
Enganei o ardente desejo do meu corpo em corpos comprados, em corpos oferecidos, em corpos roubados. Mas em nenhum corpo te encontrei. Espreitava o fundo do olhar e em nenhum encontrava aquela inteligência branca que procurava, aquela respiração suave que em vão perseguia.
Andei por labirintos sombrios, vielas esconsas, sem ânimo enfrentei monstros, medos, aspirei cheiros que me causavam repulsa, senti a humidade de corpos que me eram estranhos, atravessei túneis infinitos, enredei-me em círculos infernais - e em lado nenhum te encontrava. Perdia-me, então, entre sustos, pesados desalentos, frágeis equilíbrios.
Até que um dia o meu corpo sentiu que o sangue se agitava, que havia festa no meu corpo. Percebi depois que eras tu que atravessavas a névoa, rasgavas os muros e, trazida por muitas gaivotas brancas e livres, vinhas na minha direcção. Eras tu, corpo breve e ágil como um animal, olhos doces, lábios húmidos como as flores pela manhã, eras tu que vinhas até mim. Eras tu que desdobravas sonhos limpos como lençóis nupciais, que descobrias a música das árvores, que desenhavas velas brancas sobre os rios. Eras tu por quem eu tanto tinha esperado.
Ainda caminhamos assim, rente ao rio, trazidos pelas aves que se soltam do teu coração, abraçados, sem pressa. E todos os dias começamos um novo caminho porque são nossos todos os dias, todos os sonhos, todo o amor e desejo que os nossos corpos reinventam ao som da tua doce e suave respiração.
[Abaixo poderão ver um muito belo poema de amor e, logo abaixo, mais um momento de quase magia: David Fray interpreta Mozart. Les beaux esprits se rencontrent.]
Andando com gaivotas junto ao Tejo |
Sonhei tanto com um ardente corpo
entre o fragor dos monstros e a mudez dos muros
que o meu suor modelou os espectros do mundo
e as sonâmbulas figuras do meu desejo errante
Perdi-me tantas vezes no desespero dos labirintos
na solidão da sede ou no fundo de um túnel
que me senti incapaz de esperar o nupcial encontro
que me libertaria dos círculos infernais
Mas encontrei-te para além da névoa
com o fulgor oval de um começo puro
e com a fragrância dos teus olhos matinais
No animal ardor o meu sangue subia
e no teu rosto via uma rosácea azul
e nos teus lábios um sonho de inteligência branca
em que voavam duas aves na penumbra das fronteiras
[Poema de António Ramos Rosa in «Antologia Poética», O teu Rosto]
ResponderEliminarBom dia, Cara UJM
Um belo texto que nos deixa quase sem fôlego, com palavras que ombreiam de pleno direito com as de António Ramos Rosa.
Já disse uma vez, talvez lá no Xaile de seda num comentário, que a UJM é uma força da natureza, com tantas facetas e qual delas a melhor.
Gosto do turbilhão que é quando analisa a vida nos seus vários aspectos e, deste jeito, em que os sentimentos tomam assento e nos convidam a ficar por aqui.
Minha querida, se mo permitir, virei buscar um dos seus textos para postar no Xaile de Seda que, por estes dias, toma jeitos de um 'Xaile de Afectos'.
Bjs
Olinda
Olinda,
EliminarFico agradecida e sensibilizada com as suas palavras e se não tomei a iniciativa de lhe oferecer eu palavras minhas para o seu xaile de afectos é porque não quero parecer convencida. Mas fico muito contente que tenha vontade de pegar nelas e lavá-las. Escolha à vontade que a mim só me honrará tê-las por lá em tão boa companhia.
Beijinhos e desejo-lhe um belo dia, Olinda.