O rio às vezes é azul e dele emana luz, outras vezes é cobalto, chumbo, quase cinza, quase sombra. Por vezes resplandece de vida e, nele, os peixes dançam e espreitam o sol e, outras, transporta vestígios desolados, árvores mortas, restos de vida.
E os barcos por vezes trazem velas brancas e deles vêm vozes que chegam a terra e deslizam e rodopiam na água e, outras, estão silenciosos, vazios, amarrados.
Tantas vezes, estes pequenos barcos que aqui se acolhem, têm inscritos nomes de mulher.
Soraya num fundo verde esmeralda flutuando numa superfície carregada de sombras e de luz.
Quem assim o escreveu, quis talvez mostrar o seu amor a uma mulher.
Talvez.
Talvez, enquanto pintava as amorosas letras, o homem tenha pensado que tal como o rio, assim é o amor. Luz e vida tantas vezes, sombra e desolação outras.
Mas sempre o pescador desce da sua casa para entrar na sua Soraya e se fazer ao rio. Sós os dois, o homem e Soraya, enfrentarão as oscilações, o temperamento meridional deste rio quase mar. E irão e regressarão vezes e vezes sem conta, amantes inseparáveis, nas águas incertas e, apesar disso, tão amadas, procurar o amor. Aí se perderão por amor. Aí se salvarão por amor.
[Abaixo do barco chamado Soraya poderão ver o belo poema de Casimiro de Brito e, logo a seguir, mais um momento especial: Simone Kermes numa vibrante interpretação de Piangerò la sorte mia de Händel]
No Tejo, junto ao Ginjal, pequeno barco de nome Soraya. Lisboa do outro lado quase se esbate. |
Do amor, da sua página em branco,
sempre vivi, umas vezes da luz
que dele emana, e tanto me cegou,
outras vezes das penas escuras
que depois amanhecem,
e até cantei.
Caindo e cantando vou morrendo,
em arco me vou dobrando tão devagar
quanto posso: há um lume que me consome
e só em ti me perco e só ela,
a página branca do amor,
me salva.
[Poema 38, inspirado (?) em Sophia de Mello Andresen Andresen, de Casimiro de Brito in 'Amar a Vida Inteira']