Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 maio, 2012

Do amor, da sua página em branco, sempre vivi


O rio às vezes é azul e dele emana luz, outras vezes é cobalto, chumbo, quase cinza, quase sombra. Por vezes resplandece de vida e, nele, os peixes dançam e espreitam o sol e, outras, transporta vestígios desolados, árvores mortas, restos de vida.

E os barcos por vezes trazem velas brancas e deles vêm vozes que chegam a terra e deslizam e rodopiam na água e, outras, estão silenciosos, vazios, amarrados.

Tantas vezes, estes pequenos barcos que aqui se acolhem, têm inscritos nomes de mulher. 

Soraya num fundo verde esmeralda flutuando numa superfície carregada de sombras e de luz. 

Quem assim o escreveu, quis talvez mostrar o seu amor a uma mulher. 

Talvez. 

Talvez, enquanto pintava as amorosas letras, o homem tenha pensado que tal como o rio, assim é o amor. Luz e vida tantas vezes, sombra e desolação outras. 

Mas sempre o pescador desce da sua casa para entrar na sua Soraya e se fazer ao rio. Sós os dois, o homem e Soraya, enfrentarão as oscilações, o temperamento meridional deste rio quase mar. E irão e regressarão vezes e vezes sem conta, amantes inseparáveis, nas águas incertas e, apesar disso, tão amadas, procurar o amor. Aí se perderão por amor. Aí se salvarão por amor. 



[Abaixo do barco chamado Soraya poderão ver o belo poema de Casimiro de Brito e, logo a seguir, mais um momento especial: Simone Kermes numa vibrante interpretação de Piangerò la sorte mia de Händel]


No Tejo, junto ao Ginjal, pequeno barco de nome Soraya. Lisboa do outro lado quase se  esbate.



                            Do amor, da sua página em branco,
                            sempre vivi, umas vezes da luz
                            que dele emana, e tanto me cegou,
                            outras vezes das penas escuras
                            que depois amanhecem,
                            e até cantei.
                            Caindo e cantando vou morrendo,
                            em arco me vou dobrando tão devagar
                            quanto posso: há um lume que me consome
                             e só em ti me perco e só ela,
                             a página branca do amor,
                             me salva.



[Poema 38, inspirado (?) em Sophia de Mello Andresen Andresen, de Casimiro de Brito in 'Amar a Vida Inteira']

Händel - Simone Kermes interpreta 'Piangerò la sorte mia' (de 'Giulio Cesare')


30 maio, 2012

Voltar as costas não é nunca abandonar


Sim, é verdade. Não te conseguia ver mais à minha frente, não suportava mais os teus ciúmes, as tuas embirrações. Que farta que eu estava!

Já o disse no outro dia, quando saíste de casa deixando-me furiosa. Tudo te serve para me ofenderes e para me arreliares - que a saia é curta, que as meias são coloridas de mais (e nem vale a pena explicar-te, mais uma vez, que não são meias: são leggings!), que os saltos são altos demais, que o verniz das unhas é muito chamativo, que o penteado é espampanante, que dá demasiado nas vistas. Já não consigo ouvir essa lenga-lenga, ora! Se não gostas, não comas. Deixa-me em paz, ó santinho de pau carunchoso!. 

Mas tu voltas sempre, és um chato, vais-te encavalitar na beira do cais, armado em menina amuadiça e depois, passado um bocado, já aí vens, rabo entre as pernas, pé ante pé. Mas não é para me vires dizer um carinho... não: é sempre para me vires chatear ainda mais. Pois fica sabendo que não mudo. O que é bom é para se ver, ora essa! E depois gosto de me ver assim, fica-me bem, tenho uma boa perna, não vou escondê-la, ora! Se não gostas de ver, olha para o lado. 

E, portanto, desta vez, quem bateu com a porta fui eu. 

Ficaste pregado ao chão a olhar para a minha saia nova de lycra toda às cores e para as minhas leggings fúcsia que fazem pendant com a saia... e nem te dei tempo a respirar. Pus uma écharpe toda fina pelos ombros, agarrei na malinha de mão e... ala que se faz tarde! Aí vai ela...!

Pus estes caramelos aqui da rua todos a olhar para mim. Até o velho da barbearia veio à porta para me ver, a baba até lhe escorria pelo canto da boca. Fiz-lhe um adeusinho com a mão, armada em rainha de Inglaterra. Adeusinho e até ao meu regresso...!

E agora aqui estou, a ver para onde é que hei-de comprar o bilhete. 

Mas não sei. Há tanto tempo que não vou a lado nenhum sem ti. Sei lá onde é que hei-de ir... Que chatice. Se calhar vou só ali até ao outro lado do rio, a ver se arranjo um sítio onde ir comer uns caracóis. Mas não me apetece nada ir sozinha. E tu que também gostas tanto de caracóis... Até parece que já estou com saudades de ti, ó meu estupor. Até que és querido, até que gosto que me espreites para debaixo da saia quando te desculpo de seres tão parvo.

Pensando bem vou mas é mesmo ligar-te a ver se queres ir ali comigo beber uma imperial e comer uns caracóis.



[Bem, depois desta nova cena, só mesmo a ponderação de um poema atilado pela mão de Rita Taborda Duarte e, logo a seguir, Cecilia Bartoli também 'pinta a manta' ao som de Händel.]


Junto à bilheteira



                       Voltar as costas não é nunca abandonar:
                       é apagar o mundo
                       atrás de nós
                       e
                       trocá-lo
                       trocá-lo inge  nua    mente
                       por uma memória
                       imaginada



['Do olhar - Final III' de Rita Taborda Duarte in 'Experiências descritivas - dos sentidos das coisas'

28 maio, 2012

E um poema, mesmo de pedra, também passa

     
São as palavras necessárias ao amor? Pode o amor manter-se vivo sem que as palavras o materializem?

Houve tempos, meu amigo, meu amor, em que fingia não te ver. Passavas e eu fazia de conta que não tinhas passado. E falavas e eu fingia só ouvir as outras vozes, nunca a tua.

Via-te num canto e queria ir ter contigo, falar contigo, provocar-te, tentar-te, mas as minhas pernas ficavam presas ao chão, a minha voz não se fazia ouvir. Depois ias-te embora e eu via que, por vezes, olhavas furtivamente para mim mas eu fingia não reparar.

Outras vezes calhava ficar perto de ti. Ignorava-te, só tinha olhos para os outros. Mas, enquanto ria e falava, era em ti que o meu coração pensava, descompassado. Queria, então, chegar-me, encostar o meu braço ao teu, a minha perna à tua, desafiar-te, tirar-te do teu sossego, dizer-te palavras indecentes. Mas mantinha-me imóvel, e, sei lá porquê, as minhas palavras tinham sempre outros destinatários.

Até que um dia os deuses me empurraram para ti e a ti para mim e, desde então, esses intangíveis deuses têm-nos mantido amarrados (com amarras invisíveis, ninguém as vê, apenas nós as sentimos mas com que doçura, com que doçura as sentimos, meu amor...).

Desde esse dia as palavras são um fogo que arde permanentemente entre nós. Não passo sem as tuas palavras, anseio por elas. E as minhas palavras são um afago para ti, um afago que prolongas na tua cabeça quando não estamos perto um do outro.

São as palavras necessárias ao amor? São. São indispensáveis. 

Mas serão suficientes?

Talvez não. As palavras são o sangue morno que circula por dois corpos, são o oxigénio que purifica o coração dos dois, são a seiva da vida - mas há também os beijos, os sorrisos, o desejo, há a ternura do silêncio. Tudo, nas doses certas, forma o chão e o céu de dois corpos que se amam.



[Depois de tanto amor, queiram por favor ver as belas palavras do poema de uma outra Inês, já a terceira que habita este espaço azul e, logo mais abaixo, uma voz vinda dos céus entoa uma outra música divina e, claro, estamos com Händel]



Hoje ao fim do dia, naquela hora abençoada em que o sol doura o Tejo antes de se  pôr



                            Quero-te assim.
                            Com as pernas que nunca tive
                            para te seguir
                            e todos os dedos que fui
                            amputando, do lado do coração,
                            em castigo por não te saber tocar.

                            Assim, de cabeça finalmente perdida
                            para te explicar apenas
                            o essencial -

                            não há palavras
                            suficientes a este amor.
                            E um poema, mesmo de pedra,
                            também passa, a menos que
                            te ganhe para sempre os olhos.



                             ['Tritão - Jardim da Sereia, séc. XVIII' de Inês Dias in 'In Situ']

Händel - Renée Fleming interpreta 'Lascia ch'io pianga


27 maio, 2012

Espero que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do teu corpo


Vou falar-vos da sabedoria do amor. 

... Não, afinal não consigo. Estive aqui a pensar e sobre a sabedoria do amor não sei falar-vos. A palavra 'sabedoria' intimida-me.

Vou antes dizer-vos algumas palavras simples - se for capaz, porque dizer coisas simples também não é fácil. 

O que é o amor? 

É um querer estar perto do outro, não passar sem isso, é querer que o outro goste de nós e que queira que façamos parte da sua vida. É defender o outro contra tudo e esperar que ele  faça o mesmo por nós. É querer construir a felicidade em conjunto, momento a momento.

                       Talvez seja muito mais que isto mas agora não me ocorre nada de muito fundamental.

O que não é o amor? 

É querer ser dono do outro, é aceitar que o outro seja nosso dono, é achar que é um jogo de cedências, é querer conhecer todos os segredos do outro, nem que tenha que se violentar a sua consciência ou paciência, é achar que não se podem ter segredos, é querer 'amestrar' o outro, é forçar a sua própria natureza para agradar ao outro, é dar cabo da vida do outro (e dos dois) com ciúmes, com inseguranças, com exigências.

               Claro que há muito mais aspectos que poderia incluir nesta lista mas talvez sejam menos relevantes do que os que referi.


Para concluir, direi ainda que o amor deve 'consumido' em doses inteligentes - não é coisa que se use de forma compacta, excessiva, que se desbarate. 

Deve ter-se sempre presente que o amor é coisa frágil, rara, que se desgastará se for usada de forma inadequada. Mas que viverá sempre, de forma reinventada, se for consumida com delicadeza, respeito, generosidade. Assim, percebendo que o amor requer inteligência, quem ame, entregar-se-á com transparência e inteireza ao outro, recriando o furor inicial, o sopro de alma, o bater de coração, o sorriso a dois, o desejo imaculado.



[Bem, não sei se disse coisas acertadas mas, pelo sim, pelo não, recomendo-vos que sigam até ao poema baixo no qual Nuno Júdice fala com palavras sábias do que é o amor. Logo a seguir, abrindo a semana dedicada Händel, uma grande música, uma grande voz.]



Casal passeia rente ao Tejo, junto a um cacilheiro que atraca junto ao Cais de Cacilhas,
no início do Ginjal (e Lisboa logo ali)



                                Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
                                que se despeja no copo da vida, até meio, como se
                                o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
                                como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na
                                boca. Pergunto onde está a transparência do
                                vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
                                de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
                                são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
                                da alma suja de restos, palavras espalhadas
                                num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
                                hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
                                esperando que o tempo encha o copo até cima,
                                para que o possa erguer à luz do teu corpo
                                e veja, através dele, o teu rosto inteiro.


                                ['Plano' de Nuno Júdice in Poesia Reunida]

Händel - Kathleen Battle interpreta 'Ombra mai fu'




PS: Penso que o grafismo mais corrente do nome do compositor é Haendel mas o nome original é Händel

24 maio, 2012

Podes até esconder-te amuar de nariz


Atiras o prato ao chão, dás um pontapé na parede, viras-me as costas, bates com a porta, sais de casa,  não respondes quando te chamo, sentas-te a olhar o rio como se fosses uma prima donna, e justificas-te perante ti próprio dizendo-te amuado, zangado, ofendido.

Antes desta cena, quando te perguntei o porquê de tamanha tragédia, a resposta foi o silêncio, fazias-te de magoado, uma vítima, (coitado, quem não te conhecer que te compre).

Sempre ciúmes, mal entendidos, sempre. Davas a entender que havia coisa, (olha o santinho, como se eu não soubesse dos olhinhos sempre postos no decote da vizinha), mas não, que eu é que mostrava as pernas e mais não sei o quê, (és mas é parvo, mas então eu não te vejo a olhares as pernas da vizinha? e, olha lá!, por quem me tomas?)

E que um dia te ias embora, que te metes no primeiro navio que aqui passe, farto de chegares a casa e o jantar ainda não estar posto, (mas vem mais cedo e põe tu a mesa, olha-me este), e que pinto os lábios quando saio de casa, (e que mal tem isso?, e quem és tu para o dizer, que todo te derretes a olhar as boquinhas da vizinha?)

Saíste, zangado e agora estás aí sentado, amuado. Fiteiro, fiteiro, que raiva.

Olha, sabes que mais? Deixa-te estar que estás aí muito bem, enquanto aí estás não me arrelias.

E fica aí muito tempo que, assim sendo, vou vestir o saia e casaco e vou dar uma volta. Pode ser que apareça alguém que me saiba dizer palavras doces ao ouvido, alguém que me compreenda, sílaba a sílaba, letra a letra, alguém que me soletre devagarinho.

Por isso, deixa-te aí estar sossegadinho a olhar o rio, estás aí muito bem.



[Bem... a seguir mais um curioso poema de João Paulo Cotrim e, logo abaixo, uma bela interpretação de Falstaff, e, claro, é ainda Verdi]


Entardecer junto ao Tejo



                             Olhai como bem tombam os instrumentos
                             ilustrando uma sentada tragédia tua
                             podes até esconder-te
                             amuar de nariz
                             mas não te deixo   ajudem   não o deixes
                             exilar-se
                             Veneza lubrifica como velha puta
                             enrouquece e disfarça
                             antes que a cortina dispa os bastidores
                             mas soletra-me
                             tocando língua no ouvido
                             o soneto dos palcos de bolso
                             saia e casaco
                             saiam


                             [Poema, pag.34, de João Paulo Cotrim in 'Má raça - 22 canções']
                           
****


Aqui de SINGAPURA

Este pode ser o lugar imaginário
para o amuo de nariz
de razão
ou de raiz

Esta pode ser a cidade
que cura o desencanto
abafa o pranto
o limite para além do limite
a tristeza
o cansaço
a rotina encardida
as parvoeiras da vida

E quando a zanga apaga a frágil luz 
por pouca ainda acesa
e quando o nevoeiro se adensa
e a coisa dura...

esqueço-te
.................
e depois lembro-me
que te queria aqui
vagueando comigo em Singapura...


[Poema da autoria de 'Era uma Vez' in Comentário aqui abaixo]

Verdi - Patricia Wise interpreta Nannetta na ópera Falstaffaviata


23 maio, 2012

Eu posso beber um rio afogar-me nele inundar-me inundá-lo

         
Este rio azul que aqui corre vai para onde? Vai para dentro de ti? Este é o rio que te percorre? 

De que intangível água é feito este rio? De desejo?

A vida que vibra nas cordas azuis deste rio que entra em ti e que te banha o coração, é uma vida cheia das nossas histórias, das nossas lágrimas e sorrisos, do nosso muito bem querer. 

Não sei porquê, mas também não quero saber, por vezes entras nesta água azul e dissolves-te como um peixe azul, como uma alga verde, e eu perco-te. Onde andas, minha amada, onde andas?, pergunto eu às sombras que se desenham na superfície espelhada do rio.

Fico, então, sentado na margem, olhando a maresia branca, tentando descobrir numa qualquer gota perdida uma pequena imagem de ti, olhando os grandes navios que talvez te tenham recolhido, aspirando o vento que talvez te traga, minha amada.

Mas, depois, quando a luz do farol começa a girar ou quando uma gaivota atravessa o espaço gritando, soltas-te das águas, deslizas húmida até mim, abres-te sôfrega e bela, e eu afogo-me, então, no rio que és tu. Minha mulher, minha amada mulher que sais das águas para vir incendiar o meu desejo, deixa que beba, que te beije, que te inunde.



[Abaixo da fotografia, poderão encontrar um poema do novíssimo livro de Casimiro de Brito e logo a seguir, um maravilhoso dueto com vozes vindas do céu e, claro, continuamos com Verdi.]



Há pouco, mesmo rente ao Tejo azul, mesmo em frente de Lisboa - um belíssimo sol dourado.
(Visível um grande paquete atracado e, por trás, o belo edifício azul da Gare de Sta Apolónia] 


                              Eu posso beber um rio
                              afogar-me nele inundar-me inundá-lo
                              mas não posso queimá-lo não posso queimar o rio amado
                              e deixar-me dormir a seu lado -
                              eu posso beber um rio o teu rio
                              ou uma lágrima e cantá-la
                              o que não posso não sei não seria capaz
                              é afogar-me no rio amado e continuar
                              em paz.


                              ['Ilhas adriáticas. VII' de Casimiro de Brito in 'Amar a vida inteira']

Verdi - Placido Domingo e Mirella Freni interpretam Otello


Fazes-te de santa de alças e pecado e atrevimento


Como escrever eu este texto? Como? Como, se me sinto tão injustiçada, tão mal compreendida? Como se estás sempre com novas exigências...? 

Eu que me tapo e cubro e que, se me destapo não é para que os outros me vejam, apenas tu, que só de ti quero olhos em mim, que eu não sou dessas e tu sabes, eu que te falo de mundos verdes, e de flores em grinaldas suavemente coloridas e de pombos enamorados, piu-piu, e de corações enlaçados e dos preceitos da mamã, eu que tudo faço para te agradar, meu amor, que te abano e te embalo, que te aqueço e alimento, que te visto e te lavo, que completo as tuas palavras para que te não canses, que te penteio e sacudo os ombros, te engomo as camisas e endireito os colarinhos... como podes dizer-me isso?

Eu que te falo de amores eternos, actos de bondade, caridade todos os dias, que dou beijinhos na tua titi, que faço as comprinhas da tua mamã, que te aqueço o jantarinho quando chegas tarde, que te sopro no pescoço quando tens calor, que te descalço os sapatos para não teres que te dobrar, eu que vivo para ti, que vou à missa todos os dias, confessar-me todos os dias... como podes pedir-me isso?

Estou aqui devota, devotada, santificada e vens tu pedir-me que me ajoelhe?! Mais?! Outra vez? Agora ainda sou eu que tenho que te fazer rezar...? Na volta ainda me pedes que te faça ver as estrelas...ora!

Não estarás a pedir demais...?



[Sem mais, passo já a informar que abaixo encontrarão um sugestivo poema de João Paulo Cotrim e depois, what else?, La bella figlia dell'Amore e estamos com o Rigoletto de Verdi]


Tarde nos frescos Jardim do Ginjal


                          Fazes-te de santa
                          de alças e pecado e atrevimento
                          atiras-me rosas cantando
                          modas e lavores
                          ruralidades de esguelha
                          auras e espinhos
                          falo não respondes
                          não te faças de estela e pagela
                          ajoelha e faz-me rezar



[Poema da pág 32 de João Paulo Cotrim in 'Má raça', interessante livro com design e ilustrações de Alex Gozblau e posfácio de Adolfo Luxúria Canibal]

21 maio, 2012

A perfeita, quase económica, concisão de um gesto que nos dispensasse da fala


Num fim de uma tarde silenciosa e imóvel, um homem e uma mulher sentam-se rente ao rio, de frente para o suave cenário de Lisboa. Passo perto deles e parecem conversar mas eu não os ouço. Mas vejo que olham coordenadamente no mesmo sentido. Olham em frente e olham os dois, depois passa um navio e ambos os seguem com o olhar, depois há qualquer ponto a meio e o olhar de ambos converge para esse ponto. Há ali uma coreografia harmoniosa dos olhares. Talvez já nem precisem de falar para que os olhares interpretem essa coreografia.

Neste entardecer de absoluta quietude nem os navios gemem na atracação, nem se ouvem gritos de gaivotas, nem passam carros que perturbem o silêncio. Parece que uma súbita paz desceu sobre este homem e esta mulher que parece dispensarem as palavras. 

Pairo por aqui, pela beira do rio, gaivota em terra esperando o momento certo para voar, mas dou por mim movendo-me também em silêncio. Lisboa, do outro lado, é uma pintura silenciosa, pequenas casas brancas e douradas, telhados rosados, e daqui parece ser apenas um desenho sem pessoas, sem ruído, sem mágoas, apenas um desenho minucioso de casinhas sossegadas.

E, então, do céu prateado nasceu uma luz dourada, que trouxe movimento e alegria a este espaço silencioso em que as palavras já não eram necessárias.

Nessa altura, o homem e a mulher levantaram-se ao mesmo tempo, olharam para trás ao mesmo tempo, uma última vez olharam o rio e Lisboa, e abraçados, levados por longas asas douradas, seguiram noutra direcção. Passaram por mim em silêncio. 

Claro que não me viram porque nessa altura também já eu voava, banhando-me na inesperada luz dourada que nascia do rio silencioso.



[Logo abaixo deste homem e desta mulher silenciosos que banhavam o olhar na luz que dourava Lisboa, poderão ler um belo poema de Tatiana Faia. A seguir um coro que jamais me cansarei de ouvir, Va, pensiero, sull' ali dorate]



Na beira do Tejo, num fim de tarde cinzento que, de repente, se pôs dourado, iluminando Lisboa



                           na superfície dos dias o vidro do inverno
                           sobre a praia é de repente demasiado
                           longo demasiado pesado esta indecisa
                           melancolia que habita o espaço de cada
                           pequena vitória ou de cada pequena alegria
                           precipita-se numa palavra anterior
                           à pele eu escuto-te e é apenas uma sílaba
                           o corte de um fruto à superfície
                           a perfeita quase económica concisão
                           de um gesto que nos dispensasse da fala


                           ['Outros Pássaros - V' de Tatiana Faia in Lugano]

Verdi - 'Coro dos escravos hebreus' da Ópera Nabucco


Va, pensiero, sull' ali dorate


Nota: Não consegui descobrir identificação sobre a identidade do coro

No fundo da ternura há um som de lágrimas


Tu que olhas indiferente os valorosos navios que parecem navios de sonhar

e que olhas, solitário, em silêncio, esta água onde o sol se afoga para, todos os dias, depois, renascer, 

tu que te deixas levar magoado pelas lembranças de barquinhos de papel e infantis fantasias, 

tu que te ergues sombrio para que a tua vida desfile, desalentada, ante os teus olhos banhados desta luz mansa que vem das nuvens,

tu que não sentes a chuva, o frio, o vento, os sorrisos, as palavras que afagam,

tu que, só por vezes, deixas que a ternura que atravessa os tempos se chegue até aos teus olhos, 

                  esquece as mágoas, esquece os desencantos, esquece os tristes entardeceres, esquece as lágrimas, as quedas, as perdas. 

                       E deixa que a vida clara, luminosa, promissora, envolta em ternura, para sempre preencha os teus dias.



[Abaixo poderão o terno poema de Soledade Santos e, logo a seguir, abro a semana com La Traviata - é Verdi e a música que vibra plena de fulgor]



Em Cacilhas, no domingo, Dia da Marinha, a Sagres engalanada e um submarino em primeiro plano
O Tejo azul, tingido de verde



                         No fundo da ternura há um som de lágrimas -
                         água clara onde o sol do entardecer
                         odoroso se deteve;
                         vem das lembranças, cristais de sal,
                         chispas na pele esfolada pelos jogos
                         infantis e as perdas
                         de que a vida nos preencheu os dias.
                         Companheira amável do desencanto,
                         outra forma afinal de dizer mágoa.


                          ['Da ternura' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra'

16 maio, 2012

Talvez então me chames dentro de ti, talvez até me olhes. Mas não me vês.


Caminhas rente ao rio, avanças tanto que quase pareces querer ir andar sobre as águas e, de longe, és um traço azul sobre uma paisagem azul. Fazes tempo até que eu avance mas, nesse fazer tempo, eu observo-te, és o meu amor quase andando sobre o azul.

Caminhas e olhas a cidade que aos poucos se vai esbatendo em azul, o céu, o rio, as casas, os silenciosos veleiros, azuis, brancos e tu, ali, recortado contra a paisagem. Depois viras-te, procuras-me, impacientas-te, vens na minha direcção tanto tempo, tanto tempo, vem.

E eu, deliciada, aspirando o azul, respirando o ar que se levanta fresco das margens, pergunto-te se sentes como eu, se sentes que não há mal que resista a uma coisa assim e tu, lacónico que sim mas vá lá, anda, despacha-te.

Caminhas à minha frente, desvias-te para os cais para que eu me perca uma e outra vez olhando as ondas nos degraus, olhando os limos verdes de veludo, olhando o azul que desaparece, ah se eu pudesse agarrar este azul, e, enquanto isso tu vais e vens, não me queres deixar sozinha, anda que já é tarde, e eu olho uma última gaivota, um último veleiro, o sol que se põe, um navio que entra a barra, um casal de namorados que aprende o amor, e tu já nem me chamas ou, se o fazes, é talvez apenas dentro de ti e olhas-me apenas e eu olho-te e há tanto tempo nos olhamos que nos conhecemos pela sombra, pelo silêncio, pelo olhar. 

Meu amor azul, mesmo que eu me esqueça do tempo mergulhada na beleza deste espaço imenso, espera sempre por mim.


[Abaixo encontrarão mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira e, logo a seguir, prossegue a semana dedicada a Donizetti.]


Deliberadamente desfocado, caminhas num dos cais do Ginjal, mesmo sobre o Tejo
enquanto eu, de longe, te vejo e registo a tua imagem


                        Olho-te e não me vês. A primavera vigia
                        a floração das malvas e o girassol retribui
                        os favores da luz. Eu sento-me onde acho

                        que vai estar a tua sombra. E, como a dor
                        que persegue a ferida, vejo-te quando passas,
                        mas vejo-te melhor quando não passas. Tu

                        não me vês; caminhas na geometria vã de
                        uma linha sem pontos; às vezes parece que
                        alguma coisa te detém e viras-te - talvez
                        então me chames dentro de ti, talvez até
                        me olhes. Mas não me vês.


                        [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']

Donizetti - Gladyz Mayo interpreta La Figlia del Reggimento


A sós a praia. A sós, que não estou lá.


A água limpa, vibrante, a água cheia de vida, a água azul e, ali perto, o rio e, do outro lado, Lisboa que se prolonga até se ir misturar com a Serra - e, segundo dizem, é junto à água que as pessoas são mais felizes. Talvez por isso, é a água que eu busco incessantemente.

O som do mar que vem e vai, que se espraia, que vem para nos conquistar, que nos afaga, sem submissão, o som que é um silêncio imenso e o som é água, é céu, é frescura e o azul não é bem azul, é também cinzento, prateado, a tender para o verde e traz muito branco e estas cores agitam-se, rebolam, brincam e inventam-se e, por vezes, é apenas o reflexo do céu, às vezes o mar é o céu em estado líquido e, nessas alturas, o som não é silêncio, é só um rumor.

E eu gosto de andar aqui na praia, respirando o ar fresco e limpo, imersa neste azul silencioso em que apenas o marejar ilumina este grande espaço.

Vou em silêncio porque locais assim são locais de prece, locais de bênção e as gotas que se desprendem do grande mar vêm ungir-me, baptizar-me e eu sinto-me a flutuar e não sei se é nas nuvens, se nas ondas, se no silêncio, se na paz mais perfeita e limpa, se nas palavras feitas água azul.



[Por baixo das ondas, poderão encontrar as palavras azuis de Pedro Tamen e, logo abaixo, uma alma lusitana entoa Donizetti]

No domingo, na praia. O oceano e, do outro lado, 'a linha' e a Serra da Lua


                                    Azul. Era azul? Era a cor
                                    que era, não a que pretendo
                                    - ou seja, a que relembro.
                                    O mar. Água, em todo o caso.
                                    Vento por cima; ou era a voz
                                    de alguém fazendo o ar bulir?
                                    É na pele o que sinto
                                    ou nos ouvidos soa? A sós
                                    a praia. A sós, que não estou lá.


                                     [Poema de Pedro Tamen in Memória Indescritível]
                     
                                   

14 maio, 2012

Como quem, vindo de países distantes fora de si, chega finalmente onde sempre esteve


Tu que me lês, Leitor ou Leitora, permite que te pergunte: que balanço fazes da tua vida? 

Andaste sempre dentro de ti, percorrendo os ajustados caminhos do destino que escolheste? Ou andaste por fora, quero dizer: por fora de ti, percorrendo caminhos que te são estranhos? 

Por onde passaste deixaste um rasto, deixaste ao menos que a tua sombra ficasse presa num qualquer recanto onde, quem a veja, ainda se lembre de ti? Ou já nem te lembras dos caminhos remotos por onde a tua sombra se arrastou indiferente?

Recordas cada ano da tua vida, relembras o que fizeste, o que viste, o que amaste? Ou a tua vida tem manchas negras, vazias, que desaparecem da tua memória, sem saudades, sem história?

Saboreaste cada momento: esta é a minha casa, esta é a casa que tem o meu cheiro, as minhas cores, os meus objectos, os meus afectos? esta é a cama em que me deito, tão minha, os meus lençóis, a almofada onde deito a minha cabeça? esta é a porta que transponho quando entro dentro da minha casa, dentro de mim? Apreciaste e agradeceste a sorte de teres uma porta que se abre para dentro de uma casa que tem o teu cheiro e onde a tua sombra se acolhe em paz? Ou transpuseste com apatia e tédio a tua porta como se fosse a porta de uma qualquer casa estrangeira?

Olhaste, com agradecimento e amor, os olhos de quem te ama e que fala contigo uma língua que é feita de silêncios, cumplicidades, beijos? Ou ignoraste o carinho de quem te olhava com os olhos felizes de quem regressa de longe, de outra estação do ano, de outro mundo, apenas para se deitar nos teus braços?

Responde para ti, apenas para ti. Ou, então, diz-me em segredo.



[Abaixo mais um belo poema de Manuel António Pina, um Poeta que é muito cá do Ginjal e, logo depois, um momento sublime, regnava nel silenzio - e, é, claro, ainda Donizetti]


Hoje antes de anoitecer, em Cacilhas, olhando o Tejo e Lisboa e um navio que tinha entrado no rio


                                Como quem, vindo de países distantes fora de
                                si, chega finalmente aonde sempre esteve
                                e encontra tudo no seu lugar,
                                o passado no passado, o presente no presente,
                                assim chega o viajante à tardia idade
                                em que se confundem ele e o caminho.

                                Entra então pela primeira vez na sua casa
                                e deita-se pela primeira vez na sua cama.
                                Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
                                cidades, estações do ano.
                                E come agora por fim um pão primeiro
                                sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


                                 ['O regresso' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']
                   
                 

Donizetti - Anna Netrebko interpreta 'Regnava nel silenzio' de Lucia de Lammermoor


13 maio, 2012

Tenho as coisas escritas no peito, o teu nome


Onde estás? Onde estás?

Chamo-te, grito por ti, a todos pergunto se sabem por onde andas, procuro-te, corro todos os caminhos, espreito, e não estás em lado nenhum. Deixo sinais, avisos, súplicas. Nada. Não habitas já dentro das fronteiras do meu mundo. Saíste. E eu não sei nada de ti.

Onde estás?

Procuro-te nas sombras de outros homens, procuro-te nas vozes que se perdem no ar, procuro-te nos olhares que vagueiam pelo horizonte, procuro-te por todo o lado, no meio de todas as multidões, mas não te encontro.

Procuro-te num cheiro quente que atravessa o ar, procuro-te numa certa forma de andar, procuro-te num certo descair da cabeça, procuro-te e já nem sei onde te procurar mais porque nunca vejo de ti nem sequer ténues sinais.

Onde estás? Onde estás, meu amor, onde estás?

Tu eras a minha casa, o meu sonho, o meu destino. Sem ti percorro sozinha, desamparada, os caminhos da vida. Falta-me tanto o teu sorriso macio, e o teu braço em torno de mim, e a tua voz secreta no meu ouvido, e a tua mão atrevida a subir a minha perna, e os teus lábios ávidos percorrendo o meu corpo. Fazes-me tanta falta. 

Onde estás?

Porque acreditaste quando te disse que nunca mais te queria ver, porque acreditaste quando te disse que te fecharia todas as portas?  Porque te foste embora quando te substituí por outro homem? 

Devias ter lutado, lutado, lutado, devias, devias. Vem, luta, luta por mim porque é a ti, só a ti que eu quero.

Onde estás agora? Onde?



[Abaixo o belo poema de Inês Fonseca Santos diz melhor que eu o que é ter inscrito na marca genética o amor por outra pessoa. E, logo a seguir, Pavarotti traz-nos o Elisir d'Amore para abrir a semana dedicada a Donizetti]


No topo da escada de onde se vê o esplendor do Tejo e de Lisboa e
que não leva a nenhum outro lugar que não, apenas, a estar mais próximo do céu


                                        Tenho as coisas escritas
                                        no peito, o teu nome. Nada tem que ver
                                        com o coração, muito menos com sentimentos.
                                        O teu nome está-me escrito nos sinais, sobre a pele.
                                        A tinta, desenhos de círculos castanhos
                                        assinalando lugares.

                                        O meu mapa genético tem uma única localidade.
                                        Dizer o nome dela é chamar-te.
                                        Chamar-te é encontrar a minha morada.



                                        ['As coisas escritas' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas']
                                 

Donizetti - Da ópera Elisir d'Amore, Una furtiva lágrima por Luciano Pavarotti

12 maio, 2012

Não sei ao certo como será nem como ou quem anunciará essa noite, essa luz, esse momento - Veio sem aviso o momento em que Bernardo Sassetti entrou na noite mais escura mas, agora, já é a infinita luz aquilo que o rodeia


Na quinta feira à tarde, alguém viu um homem voar de cima dos penhascos. É o que se sabe.

Diz a família que estaria a tirar fotografias para um livro que iria sair. Dos penhascos do Guincho, em tarde de mar bravo, voou um ser abençoado. Mas, nesse momento, os deuses estavam a dormir, no momento em que mais precisaria das asas, elas mantiveram-se fechadas.

Custa a acreditar mas dizem que a família já reconheceu o corpo do homem que voou, dizem que pertencia a Bernardo Sassetti. 

Dizem - ou digo eu - que a sua alma voa agora entre nós. E, para sempre, voará entre nós, como uma aragem suave, como uma toada que dança com o vento.


Num dia em que se soube que mais um ser abençoado nos abandona, Ginjal num momento de grande desolação, o Tejo parado, o céu suspenso - há ausências que custam muito



Muitas vezes me pergunto quando vem.
Não sei ao certo como será
nem como ou quem
anunciará
essa noite essa luz  esse momento
Chegará como chega o vento.



['Momento' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']


Bernardo Sassetti - Alice


Bernardo Sassetti - Contigo em la Distancia



. Descansa em paz .

09 maio, 2012

Trago em mim um exército perdido algures no meio de uma estrofe


Há a multidão, há 'toda a gente', seres todos parecidos, todos normais. O tempo avança e, com ele, vai andando a multidão que se vai renovando mas mantendo-se sempre igual. É um exército anónimo, imóvel apesar de parecer mover-se, é um exército de gente que fala palavras normais, que fala com voz normal.

No entanto, por vezes, no meio da multidão um homem ou uma mulher levanta-se e fala palavras diferentes ou fala com uma voz diferente. A multidão parece então agitar-se, quem é este?, que diz ele? o que quer? e tentam rejeitar o corpo estranho.

Esse homem ou essa mulher, no entanto, não escutam a voz inerte e baça da multidão, essa vasta mole de humanos que caminha de olhos fechados, de boca fechada, de braços caídos. Esse homem ou essa mulher que se levantam falam uma língua desconhecida, usam palavras que pertencem a cantos longínquos que vêm do princípio dos tempos, palavras misteriosas que anunciam o esplendor (e, por vezes, também, a desgraça). Caminham cercados de luz, essa luz primordial que une os intangíveis infinitos.

A multidão ulula, não te queremos, és velho, está doido, não sabes o que dizes, cala-te, ninguém te compreende, vai-te embora, não fazes cá falta - tirem-no daqui!

No entanto, o homem ou a mulher que se levantaram, de peito feito, de bandeira esfarrapada na mão, lágrimas nos olhos francos, continuam, mesmo que, por vezes em surdina, a dizer palavras puras que soltam no vento, palavras que procuram a paz, a música, a beleza, a inexpugnável harmonia, a poesia. 

Esse homem ou essa mulher são os mais lúcidos de toda a imensa multidão, vêem mais longe, vêem para além dos tempos - são os Poetas.



[A seguir à fotografia do velho pescador que regressa a casa, poderão encontrar um novo e belo poema de Manuel Alegre e, logo depois, o toreador da Carmen de Bizet]


Há pouco, perto do cair da noite, velho pescador abandona o Ginjal (o Tejo de um azul glorioso)


                      Trago em mim um exército perdido
                      algures no meio de uma estrofe
                      da saga escrita em língua desaparecida.
                      Eu próprio sou esse exército sem sentido
                      e esse país de bandeira esfarrapada
                      que tremula num campo onde perdura
                      a sílaba mais pura desse canto
                      que por qualquer mistério ecoa em mim
                      em horas de esplendor e de desastre.
                      Talvez porque eu seja o sem sentido
                      desse exército perdido numa estrofe
                      e essa bandeira e esse país e esse fim


                       ['Saga' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']
             

Bizet - Ruggero Raimondi interpreta Toreador da ópera Carmen


07 maio, 2012

Tempo de dança num vago compasso de bela toada


Houve uma tarde, meu amor, que guardo com doçura no mais fundo do meu coração. Era uma tarde dourada, ou então era dourado o sol da tarde que entrava pela janela da casa em que nos escondíamos. Conhecíamo-nos, então, nessa tarde distante, conhecíamo-nos sabendo, meu amor, que era para logo nos separarmos.

Dançávamos mesmo sem música ou então não era dança, era apenas um estreito abraço, o abraço dos que se amam, sabendo que a seguir terão que se separar. Dançávamos e não sabíamos, meu distante amor, que seria a última dança, senão talvez o abraço fosse ainda mais longo.

E os teus olhos riam, felizes e eu ria, feliz, e então reparámos que o espelho mostrava a nosso abraço tão feliz. E ali ficámos, iluminados pela luz dourada da tarde, olhando a nossa felicidade que brilhava no espelho dourado. Abraçados, cheios de amor, felizes, sem saber que o espelho não mais devolveria aquela imagem de um casal unido pela certeza da separação.

Hoje, tanto tempo depois - tanto que já nem sei se aconteceu ou se foi um sonho - chove nesta noite fria, húmida, densa, chove tanto, as árvores escorrem cansadas, ouço a chuva incessante. E é só o que ouço,  não ouço nenhuma música, nem há luz dourada, e o espelho não reflecte a imagem de um abraço feliz, e os teus olhos tão brilhantes estão tão longe, tão longe que eu já nem recordo o rosto a que pertencem. 

Tanto silêncio, tão escuro, tanta chuva. Tanta saudade.



[Abaixo poderão ler um belo poema de Frederico Lourenço e, por falar em dança e para nos animarmos, logo a seguir, uma grande interpretação: é Carmen de Bizet]


No Jardim do Ginjal casal de namorados dança a primeira de muitas danças e sussurra:
Tarde de chuva/Mas que alegria! Parece ser ela a nossa companhia./
Quem não gosta de uma tarde de chuva/Não conhece/Os suaves desejos/Os doces prazeres 
Que uma tarde de chuva pode conter! 

(da autoria de Luísa sobe a Calçada, comentário abaixo)



                              Tempo de dança num vago compasso de bela toada
                              fecha solene a última festa do longo inverno.
                              Chove de novo na húmida noite gelada de maio;
                              nada faria prever o perfume da música nova.

                               Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
                               luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
                               quando de novo a orquestra entoa a música nova,
                               sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

                               Música minha alheia não soa às árvores altas:
                               ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
                               cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
                               hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

                               Pena seria portanto perdermos a última dança;
                               ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
                               logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
                               ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.


[Poema 3 de IV de Frederico Lourenço in 'Clara Suspeita de Luz']


NB: No poema original, onde se aqui se lê maio, lê-se março. A troca fica a dever-se ao facto de hoje estarmos em maio, numa noite de chuva

Bizet - Julia Migenes interpreta Habanera da Ópera Carmen


06 maio, 2012

Ninguém ignora que não é grande, nem inteligente, nem elegante o meu país - mas tem esta voz doce


Nesta terra que é também a minha, que tem um rio largo como um imenso mar, há um céu tão azul, mas tão azul, que corre a banhar-se nas águas que deslizam com doçura.

E, nessa água azul como um grande céu há, às vezes, pequenas plumas brancas, leves, imateriais. Quem as veja de longe mal saberá dizer se são as velas dos pequenos barcos que dançam no rio, ou puríssimos pássaros ou anjos que desceram do céu para aí flutuar.

Quando, bicho da água, desço até ao rio, passo por grandes muros detrás dos quais saem rosas bravas encarnadas ou rosas albardeiras cor de pérola, ou pequenos cardos macios e lilases ou hastes flexíveis de silvas. Na terra por detrás destes muros há grandes eucaliptos que se erguem altíssimos ou que deixam cair os seus ramos pesados e cheirosos ou pedaços da casca de que se vão desfazendo.

O meu país tem gente de vistas curtas, tem gente pequenina, vingativa, aborrecida, tem gente deselegante, pouco inteligente, tem tudo isso. Mas tem também muita gente de vistas largas, gente generosa, que olha os outros com carinho, gente abnegada, gente que se faz ao caminho de peito feito, que se faz ao mar com coração de leão, gente que ama as rosas, as silvas e as suas doces amoras escuras, gente que ama as palavras e as pontes que elas desdobram.

O meu país é pequenino mas é imenso na sua beleza luminosa e nas límpidas palavras dos seus grandes poetas. 



[A seguir à fotografia, Eugénio de Andrade fala-nos de um país com amoras que trazem o sabor do verão aos muros brancos e, logo a seguir, temos os pescadores de pérolas a abrir a semana dedicada a Bizet.]


Descendo para o Ginjal, rosas bravas e esguias silvas emoldurando a Ponte sobre o Tejo,
com pequenos veleiros brancos pontuando o rio junto à Torre de Belém 


                                     O meu país sabe às amoras bravas
                                     no verão.
                                     Ninguém ignora que não é grande,
                                     nem inteligente, nem elegante o meu país,
                                     mas tem esta voz doce
                                     de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
                                     Raramente falei do meu país, talvez
                                     nem goste dele, mas quando um amigo
                                     me traz amoras bravas
                                     os seus muros parecem-me brancos,
                                     reparo que também no meu país o céu é azul.


['As amoras' de Eugénio de Andrade in 'Os poemas da minha vida' de Miguel Veiga]