Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

16 maio, 2012

Talvez então me chames dentro de ti, talvez até me olhes. Mas não me vês.


Caminhas rente ao rio, avanças tanto que quase pareces querer ir andar sobre as águas e, de longe, és um traço azul sobre uma paisagem azul. Fazes tempo até que eu avance mas, nesse fazer tempo, eu observo-te, és o meu amor quase andando sobre o azul.

Caminhas e olhas a cidade que aos poucos se vai esbatendo em azul, o céu, o rio, as casas, os silenciosos veleiros, azuis, brancos e tu, ali, recortado contra a paisagem. Depois viras-te, procuras-me, impacientas-te, vens na minha direcção tanto tempo, tanto tempo, vem.

E eu, deliciada, aspirando o azul, respirando o ar que se levanta fresco das margens, pergunto-te se sentes como eu, se sentes que não há mal que resista a uma coisa assim e tu, lacónico que sim mas vá lá, anda, despacha-te.

Caminhas à minha frente, desvias-te para os cais para que eu me perca uma e outra vez olhando as ondas nos degraus, olhando os limos verdes de veludo, olhando o azul que desaparece, ah se eu pudesse agarrar este azul, e, enquanto isso tu vais e vens, não me queres deixar sozinha, anda que já é tarde, e eu olho uma última gaivota, um último veleiro, o sol que se põe, um navio que entra a barra, um casal de namorados que aprende o amor, e tu já nem me chamas ou, se o fazes, é talvez apenas dentro de ti e olhas-me apenas e eu olho-te e há tanto tempo nos olhamos que nos conhecemos pela sombra, pelo silêncio, pelo olhar. 

Meu amor azul, mesmo que eu me esqueça do tempo mergulhada na beleza deste espaço imenso, espera sempre por mim.


[Abaixo encontrarão mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira e, logo a seguir, prossegue a semana dedicada a Donizetti.]


Deliberadamente desfocado, caminhas num dos cais do Ginjal, mesmo sobre o Tejo
enquanto eu, de longe, te vejo e registo a tua imagem


                        Olho-te e não me vês. A primavera vigia
                        a floração das malvas e o girassol retribui
                        os favores da luz. Eu sento-me onde acho

                        que vai estar a tua sombra. E, como a dor
                        que persegue a ferida, vejo-te quando passas,
                        mas vejo-te melhor quando não passas. Tu

                        não me vês; caminhas na geometria vã de
                        uma linha sem pontos; às vezes parece que
                        alguma coisa te detém e viras-te - talvez
                        então me chames dentro de ti, talvez até
                        me olhes. Mas não me vês.


                        [Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'Nenhum nome depois']

8 comentários:

  1. uma questão de geometria, de diferentes posições relativas, de luz, iluminação, projecções e sombras. Gostava de saber a opinião dum geometra sobre este poema, de saber se a possibilidade de caminhar numa linha sem pontos tem consequencias. mas será a sombra que olha e não vê, não o causador da sombra.

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    1. Ora aqui está uma questão pertinente. Um geómetra talvez lhe diga que um alinha é definida a partir de pontos. Linha sem pontos é coisa que não existe no mundo dos geómetras. Mas os geómetras têm o dom da abstração e conseguirão facilmente visualizar uma linha imaginária em que, quem caminha sobre ela, flutua subvertendo as leis básicas da geometria, da trignometria e da lógica. Por exemplo, transportando a sua sombra sem relação com a posição relativa da luz - e, não sendo visto e outras ilusões de óptica.

      Mas isto sou eu que digo, eu que não sou bem uma geómetra...

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  2. Cara UJM:
    Quando as palavras são escusadas e se convertem neste acerto sentimental, nesta energia emotiva, nesta ternura permutada, nesta vigilância descuidada, nesta comunhão propagada… Que afortunada a que caminha ao lado de um “Amor Azul” !

    E que o dia seja radioso
    abraço amigo da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Olá Luísa subindo a calçada,

      É bem verdade, bem afortunada eu sou. E não apenas me acompanha, me vigia (porque eu, quando ando nisto, sou bem distraída...) pela beira do Tejo e arredores como pela beira do Douro (... já viu o UJM de hoje...?).

      Ou seja, quem tem mesmo razão para estar agradecida e, neste caso, a si, que o roteiro está a ser seguidinho à risca e estamos encantados.

      Obrigada, Luísa!

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  3. sim, a poesia tem as suas proprias noções de geometria que definem uma outra geometria não coincidente com a dos geometras. Mas um bom geometra tambem compreenderá essa essa arte da geometria poetica.

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    1. Tenho ideia de que os matemáticos e os físicos gostam especialmente de poesia: são artes que se tocam.

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  4. Cara UJM:
    Hesitei em escrever este post, que é mais uma dica, mas opiniosa como sou não resisti e, a UJM, fará uso dela, ou não, como bem entender.
    Já que está no Reino Maravilhoso, deve aproveitar o seu néctar mais precioso se for apreciadora. Sem querer fazer publicidade, nos super da cadeia Intermarché encontram-se a bom preço, por vezes mais baixo do que no produtor, bons vinhos da região e de produtores locais, que já vi em lojas gourmet ou “ditas gourmet” a custo bem mais elevado.

    Boas férias e dias muito felizes
    Abraço amigo da Luísa
    p.s. será melhor não editar este post …

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    1. Olá Luísa subindo a calçada,

      Ora não publico porquê? Conselhos bons são sempre bem vindos.

      Claro que somos apreciadores de vinho e não deixaremos de nos abastecer. Opine sempre que as suas opiniões têm estado a ser preciosas!

      Obrigada.

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