Atiras o prato ao chão, dás um pontapé na parede, viras-me as costas, bates com a porta, sais de casa, não respondes quando te chamo, sentas-te a olhar o rio como se fosses uma prima donna, e justificas-te perante ti próprio dizendo-te amuado, zangado, ofendido.
Antes desta cena, quando te perguntei o porquê de tamanha tragédia, a resposta foi o silêncio, fazias-te de magoado, uma vítima, (coitado, quem não te conhecer que te compre).
Sempre ciúmes, mal entendidos, sempre. Davas a entender que havia coisa, (olha o santinho, como se eu não soubesse dos olhinhos sempre postos no decote da vizinha), mas não, que eu é que mostrava as pernas e mais não sei o quê, (és mas é parvo, mas então eu não te vejo a olhares as pernas da vizinha? e, olha lá!, por quem me tomas?)
E que um dia te ias embora, que te metes no primeiro navio que aqui passe, farto de chegares a casa e o jantar ainda não estar posto, (mas vem mais cedo e põe tu a mesa, olha-me este), e que pinto os lábios quando saio de casa, (e que mal tem isso?, e quem és tu para o dizer, que todo te derretes a olhar as boquinhas da vizinha?)
Saíste, zangado e agora estás aí sentado, amuado. Fiteiro, fiteiro, que raiva.
Olha, sabes que mais? Deixa-te estar que estás aí muito bem, enquanto aí estás não me arrelias.
Olha, sabes que mais? Deixa-te estar que estás aí muito bem, enquanto aí estás não me arrelias.
E fica aí muito tempo que, assim sendo, vou vestir o saia e casaco e vou dar uma volta. Pode ser que apareça alguém que me saiba dizer palavras doces ao ouvido, alguém que me compreenda, sílaba a sílaba, letra a letra, alguém que me soletre devagarinho.
Por isso, deixa-te aí estar sossegadinho a olhar o rio, estás aí muito bem.
[Bem... a seguir mais um curioso poema de João Paulo Cotrim e, logo abaixo, uma bela interpretação de Falstaff, e, claro, é ainda Verdi]
Entardecer junto ao Tejo |
Olhai como bem tombam os instrumentos
ilustrando uma sentada tragédia tua
podes até esconder-te
amuar de nariz
mas não te deixo ajudem não o deixes
exilar-se
Veneza lubrifica como velha puta
enrouquece e disfarça
antes que a cortina dispa os bastidores
mas soletra-me
tocando língua no ouvido
o soneto dos palcos de bolso
saia e casaco
saiam
[Poema, pag.34, de João Paulo Cotrim in 'Má raça - 22 canções']
****
Aqui de SINGAPURA
Este pode ser o lugar imaginário
para o amuo de nariz
de razão
ou de raiz
Esta pode ser a cidade
que cura o desencanto
abafa o pranto
o limite para além do limite
a tristeza
o cansaço
a rotina encardida
as parvoeiras da vida
E quando a zanga apaga a frágil luz
por pouca ainda acesa
e quando o nevoeiro se adensa
e a coisa dura...
esqueço-te
.................
e depois lembro-me
que te queria aqui
vagueando comigo em Singapura...
[Poema da autoria de 'Era uma Vez' in Comentário aqui abaixo]
Amiga:
ResponderEliminarHoje fui eu que ri. Sabe porquê? O meu amor, quando amua, a última frase que pronuncia, antes de deixar de falar, ouvir, passar a olhar através de mim, como se eu fosse transparente ou, inexistente, é: "Qualquer dia embarco para Singapura". Porquê para Singapura? Não sei. Na altura em que o diz, é escusado perguntar, porque não fala mesmo. Depois, sinceramente, nem lhe pergunto, porque não fico nada preocupada.
E pronto. São assim os amuos dos homens.
Os nossos são diferentes. Choramos, resmungamos, fechamos-nos no quarto. Quando saímos, temos um lindo par de olheiras e, com ar de vitima, perguntamos: "Que queres jantar?". Pomos um só prato na mesa, deixamos-nos andar por ali, até que ele pergunta: "Estás a fazer greve da fome, ou dieta?" Com ar de Violetta da Traviata, dizemos: "Não tenho fome, obrigada".
Tudo isto é ridículo, Amiga, mas são os amuos cá de casa. Ai se ele sabe, que eu contei!... Lá vai para Singapura.
Beijinho
Mary
Mary,
ResponderEliminarFartei-me de rir quando escrevi isto. Felizmente cá em casa não há pratos pelo ar, pontapés nas portas e cenas dessas. Mas no prédio em que eu morava antes, no andar por baixo de mim havia com cada 'cegada'... muitas vezes estivemos para chamar a polícia porque nem sabíamos se não andariam os dois na pancadaria. Mas, geralmente, no dia a seguir víamo-los a passear, abraçados, como se fossem namorados apaixonados.
Cá em casa já não me dá muito para choros: brigo e pode ser à bruta, ou rezingo ou 'chingo' mas, mal acabo, passado um bocado já me passou e, se necessário for, no dia seguinte tenho ideia de que houve chatice mas já não me lembro bem porquê. Felizmente ele também é mais ou menos do mesmo género. Já não tenho paciência para me chatear muito...
Mas se estivesse a chorar, desconsolada, uma coisa seria certa: a seguir, sentava-me eu a jantar e ele que se 'desengomasse' sozinho. E se ele protestasse sem saber que havia de comer, faria eu ouvidos de mercador ou dizia que não era meu problema. Mas acho que, se houvesse uma coisa assim, me acabaria por dar vontade de rir.
...agora Singapura...? Ia para longe, o seu amor...! É melhor não o deixar ir, que isso é muito longe para o ir lá buscar. E não o deixe, mesmo, ler estas nossas conversas de hoje...
(Já me fartei de rir com este seu comentário!)
Um beijinho.
Amiga:
ResponderEliminarEu como pouco, o que preocupa o meu amor. Por isso, ponho-o a comer sozinho.
Já tive uns vizinhos, que até as malas voaram pela janela.
Eu brinco, mas fico terrivelmente infeliz, quando nos zangamos. Enquanto não passa, sinto-me tão triste!
Hoje fomos almoçar a Cascais e depois consegui levá-lo à Casa da Paula Rego. Tenho que dar a mão à palmatória. Adorei, ele também, ficámos fãs da Paula. Tem coisas impressionantes. Qualquer dia, vou voltar. Voltamos cansados, mas conseguimos arejar a cabeça. Ele já está a dormir.
Ainda estou sem sono. Amanhã vou almoçar a casa do meu Corvo.
Beijinho, Amiga
Mary
São 3 da manhã, só agora acabei o meu post de hoje lá no UJM (só posso ser maluca, não é?) mas agora vi este seu comentário e fiquei toda contente. A gostar da paula Rego...? Eu não lhe dizia? primeiro estranha-se, depois entranha-se. Ela conhece as mulheres como poucos outros pintores. As mulheres vaidosas, ou manhosas, ou cansadas, ou gozonas.
EliminarVai ver que quanto mais vir, mais gostará de ver. E passear em Cascais é tão bom!
Bom almocinho lá no ninho do seu Corvo!
Um beijinho, Mary.
bem interessante, um poeta que desconhecia.
ResponderEliminare o texto que antecede o poema muito me divertiu. Amuos estudados, ameaças falsas, pois vou me embora, pequenas chantagens, mas a resposta foi o silencio, etc.
Obrigada, Caro Patrício Branco,
EliminarTambém não conhecia este poeta e estou a gostar. O livro é muito bonito, mesmo como objecto pois cada poema é ilustrado e a ilustração é muito a propósito. Se passar numa livraria, espreite que acho que vai gostar.
Quanto ao meu texto: divirto-me a escrever (também) neste registo, algo truculento, algo popular. Diálogos inventados que não são mais do que um patchwork a partir de fragmentos vividos, ouvidos. E começo a escrever e começo a divertir-me, rio-me a escrever.
Obrigada pelas suas palavras! Bom domingo!
Aqui de SINGAPURA
ResponderEliminarEste pode ser o lugar imaginário
para o amuo de nariz
de razão
ou de raiz
Esta pode ser a cidade
que cura o desencanto
abafa o pranto
o limite para além do limite
a tristeza
o cansaço
a rotina encardida
as parvoeiras da vida
E quando a zanga apaga a frágil luz
por pouca ainda acesa
e quando o nevoeiro se adensa
e a coisa dura...
esqueço-te
.................
e depois lembro-me
que te queria aqui
vagueando comigo em Singapura...
Erinha,
EliminarQue boa surpresa, que belo poema. Vai já lá para cima.
(A ver se o marido da nossa amiga não percebe que foi ele quem inspirou este saborosíssimo poema...)
Um beijinho.
Erinha:
ResponderEliminarCá em casa não há segredos. Não consigo rir só. Ele viu-me rir, li-lhe o seu delicioso poema e, foi um festival de riso e comoção.
Está a ver, no que deu uma frase, que eu ando a ouvir há 47 anos? Nunca ele pensou, inspirar um poema, com aquela frase. O melhor, é que às vezes a frase ainda tem outro apêndice: Qualquer dia embarco "de comboio" para Singapura. Imagine, onde chegam os sonhos do homem! Até vai de comboio.
Adorei o seu poema, amiga. Ele também.
Quando não tem vontade de embarcar para Singapura, tem um grande senso de humor.
Beijinho
Mary
:)))
ResponderEliminarUm registo diferente, lindo e muito real, a preencher os silêncios de Cotrim. Gostei. Muito. A foto a compor muitíssimo bem essa 'conversa'.
Parabéns. E parabéns também a 'Era uma vez', adorei a sua réplica.
:)
Bjs
Olinda
Olá Olinda,
EliminarMuito obrigada.
Diverti-me a escrever, já me apetecia 'inventar' aqui uma briga das antigas, quase com 'ela' a andar na rua à procura dele e, furiosa, dar com ele ali e, num acesso de raiva, empurrá-lo para dentro de água. Uma 'cena' mesmo. Mas lá me consegui conter...
Gostei imenso do poema da Era uma Vez que teve mais um momento de inspiração, agora repescando palavras do comentário da Mary. Fantásticas as duas.
Um beijinho, Olinda.
Querida Mary
ResponderEliminarAinda bem que riem juntos. Isso sim... é felicidade.
Não estaria na hora de fazer uma viagem "a dois" até Singapura???
Dois grandes abraços.
Erinha querida:
EliminarNeste momento, as grandes viagens, estão em linha de espera.
No fim de semana, uma viagem ao Algarve. Depois de dia 15, mudança para casa do mais velho, descansar e olhar pelo neto. Depois, logo vemos. Está-me mesmo a apetecer, sair daqui.
Mais uma vez, obrigada pelo belo poema.
Beijinho, amiga
Mary
Erinha,
ResponderEliminar... gostei desse desafio... o casalinho de pombinhos ir numa lua de mel de comboio por aí fora até Singapura...
Boa!