Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 maio, 2012

A perfeita, quase económica, concisão de um gesto que nos dispensasse da fala


Num fim de uma tarde silenciosa e imóvel, um homem e uma mulher sentam-se rente ao rio, de frente para o suave cenário de Lisboa. Passo perto deles e parecem conversar mas eu não os ouço. Mas vejo que olham coordenadamente no mesmo sentido. Olham em frente e olham os dois, depois passa um navio e ambos os seguem com o olhar, depois há qualquer ponto a meio e o olhar de ambos converge para esse ponto. Há ali uma coreografia harmoniosa dos olhares. Talvez já nem precisem de falar para que os olhares interpretem essa coreografia.

Neste entardecer de absoluta quietude nem os navios gemem na atracação, nem se ouvem gritos de gaivotas, nem passam carros que perturbem o silêncio. Parece que uma súbita paz desceu sobre este homem e esta mulher que parece dispensarem as palavras. 

Pairo por aqui, pela beira do rio, gaivota em terra esperando o momento certo para voar, mas dou por mim movendo-me também em silêncio. Lisboa, do outro lado, é uma pintura silenciosa, pequenas casas brancas e douradas, telhados rosados, e daqui parece ser apenas um desenho sem pessoas, sem ruído, sem mágoas, apenas um desenho minucioso de casinhas sossegadas.

E, então, do céu prateado nasceu uma luz dourada, que trouxe movimento e alegria a este espaço silencioso em que as palavras já não eram necessárias.

Nessa altura, o homem e a mulher levantaram-se ao mesmo tempo, olharam para trás ao mesmo tempo, uma última vez olharam o rio e Lisboa, e abraçados, levados por longas asas douradas, seguiram noutra direcção. Passaram por mim em silêncio. 

Claro que não me viram porque nessa altura também já eu voava, banhando-me na inesperada luz dourada que nascia do rio silencioso.



[Logo abaixo deste homem e desta mulher silenciosos que banhavam o olhar na luz que dourava Lisboa, poderão ler um belo poema de Tatiana Faia. A seguir um coro que jamais me cansarei de ouvir, Va, pensiero, sull' ali dorate]



Na beira do Tejo, num fim de tarde cinzento que, de repente, se pôs dourado, iluminando Lisboa



                           na superfície dos dias o vidro do inverno
                           sobre a praia é de repente demasiado
                           longo demasiado pesado esta indecisa
                           melancolia que habita o espaço de cada
                           pequena vitória ou de cada pequena alegria
                           precipita-se numa palavra anterior
                           à pele eu escuto-te e é apenas uma sílaba
                           o corte de um fruto à superfície
                           a perfeita quase económica concisão
                           de um gesto que nos dispensasse da fala


                           ['Outros Pássaros - V' de Tatiana Faia in Lugano]

3 comentários:

  1. Cara UJM:

    Quando a fala é indispensável para a compreensão e o breve olhar ou o gesto conciso são suficientes, que perfeita e celeste harmonia …
    Sempre a surpreender-nos! Gostei muito.

    E tenha dias muito felizes
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa,

      Eu acho mesmo que a proximidade da água tranquiliza. Um fim de dia junto a um rio é uma coisa que me descansa a cabeça, que me faz ficar mais leve. E os momentos de paz e silêncio junto ao rio são de uma tranquilidade.

      E há sempre casais que olham o rio ou que se abraçam. Há uma paz muito sossegada no ar.

      Dias felizes, 'noviça' Luísa.

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  2. Amiga:
    Por vezes, os olhos falam mais que a boca. Dois pares de olhos, olhando o horizonte, pensam em uníssono. Dois corpos que se levantam ao mesmo tempo, seguem lado a lado, mãos ou braços entrelaçados, sentem-se juntos.
    Sabe? Eu e o meu marido temos falado pouco. Quando entramos em casa, os nossos passos, os nossos olhos, vão para o mesmo local. Quando acordamos, ainda estremunhados, buscamos ambos o mesmo. É triste e doce, ao mesmo tempo.
    Já conseguimos sorrir. Já tentamos fazer planos.
    Gostei do texto e da poesia. Vou ouvir o Nabuco.
    Beijinho
    Mary

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