Sim, é verdade. Não te conseguia ver mais à minha frente, não suportava mais os teus ciúmes, as tuas embirrações. Que farta que eu estava!
Já o disse no outro dia, quando saíste de casa deixando-me furiosa. Tudo te serve para me ofenderes e para me arreliares - que a saia é curta, que as meias são coloridas de mais (e nem vale a pena explicar-te, mais uma vez, que não são meias: são leggings!), que os saltos são altos demais, que o verniz das unhas é muito chamativo, que o penteado é espampanante, que dá demasiado nas vistas. Já não consigo ouvir essa lenga-lenga, ora! Se não gostas, não comas. Deixa-me em paz, ó santinho de pau carunchoso!.
Mas tu voltas sempre, és um chato, vais-te encavalitar na beira do cais, armado em menina amuadiça e depois, passado um bocado, já aí vens, rabo entre as pernas, pé ante pé. Mas não é para me vires dizer um carinho... não: é sempre para me vires chatear ainda mais. Pois fica sabendo que não mudo. O que é bom é para se ver, ora essa! E depois gosto de me ver assim, fica-me bem, tenho uma boa perna, não vou escondê-la, ora! Se não gostas de ver, olha para o lado.
E, portanto, desta vez, quem bateu com a porta fui eu.
Ficaste pregado ao chão a olhar para a minha saia nova de lycra toda às cores e para as minhas leggings fúcsia que fazem pendant com a saia... e nem te dei tempo a respirar. Pus uma écharpe toda fina pelos ombros, agarrei na malinha de mão e... ala que se faz tarde! Aí vai ela...!
Pus estes caramelos aqui da rua todos a olhar para mim. Até o velho da barbearia veio à porta para me ver, a baba até lhe escorria pelo canto da boca. Fiz-lhe um adeusinho com a mão, armada em rainha de Inglaterra. Adeusinho e até ao meu regresso...!
E agora aqui estou, a ver para onde é que hei-de comprar o bilhete.
Mas não sei. Há tanto tempo que não vou a lado nenhum sem ti. Sei lá onde é que hei-de ir... Que chatice. Se calhar vou só ali até ao outro lado do rio, a ver se arranjo um sítio onde ir comer uns caracóis. Mas não me apetece nada ir sozinha. E tu que também gostas tanto de caracóis... Até parece que já estou com saudades de ti, ó meu estupor. Até que és querido, até que gosto que me espreites para debaixo da saia quando te desculpo de seres tão parvo.
Pensando bem vou mas é mesmo ligar-te a ver se queres ir ali comigo beber uma imperial e comer uns caracóis.
[Bem, depois desta nova cena, só mesmo a ponderação de um poema atilado pela mão de Rita Taborda Duarte e, logo a seguir, Cecilia Bartoli também 'pinta a manta' ao som de Händel.]
Junto à bilheteira |
Voltar as costas não é nunca abandonar:
é apagar o mundo
atrás de nós
e
trocá-lo
trocá-lo inge nua mente
por uma memória
imaginada
['Do olhar - Final III' de Rita Taborda Duarte in 'Experiências descritivas - dos sentidos das coisas'
divertido texto.
ResponderEliminarquanto ao poema parece-me um pouco duro na sua sintaxe ou suceder das palavras: não é nunca, e, trocá lo inge.
Caro Patrício Branco,
EliminarFico contente que tenha gostado do texto.
O poema é duro, sim, também acho. Requer uma leitura suave, em voz muito baixa, em marcha lenta, de modo que casa sílaba se transforme em palavra - 'nua' 'mente', uma mente que se desnuda para receber apenas memórias imaginadas.
Pelo menos, assim o leio.
Amiga:
ResponderEliminarEu, se fosse homem, também não gostava da maneira de vestir da dama.
O pior, é que lhe dou razão a ela. Se ela gosta, ela é que sabe,
Ainda estou meia abalada destes dias.
Adorei o texto e o Poema. É duro, mas tão verdadeiramente sentido!
Abraço
Mary
Mary,
EliminarSou como a Mary: ponho-me no lugar da senhora. Vê-se que gosta, que fez gosto na escolha. Tanta gente como ela. Se gostam e não fazem mal a ninguém, para quê contraria, para quê criticar? Eu não consigo. E, pelo contrário, enterneço-e e ponho do lado de quem afirma a sua identidade desta forma (posso não me identificar ou não gostar mas isso é um problema meu).
O poema levou-me a criar esta história e diverti-me a fazê-lo. é isto que gosto nos poemas: puxam-me pelos neurónios... (e por vezes agitam-me o coração).
Um beijinho, Mary.