Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 maio, 2012

E um poema, mesmo de pedra, também passa

     
São as palavras necessárias ao amor? Pode o amor manter-se vivo sem que as palavras o materializem?

Houve tempos, meu amigo, meu amor, em que fingia não te ver. Passavas e eu fazia de conta que não tinhas passado. E falavas e eu fingia só ouvir as outras vozes, nunca a tua.

Via-te num canto e queria ir ter contigo, falar contigo, provocar-te, tentar-te, mas as minhas pernas ficavam presas ao chão, a minha voz não se fazia ouvir. Depois ias-te embora e eu via que, por vezes, olhavas furtivamente para mim mas eu fingia não reparar.

Outras vezes calhava ficar perto de ti. Ignorava-te, só tinha olhos para os outros. Mas, enquanto ria e falava, era em ti que o meu coração pensava, descompassado. Queria, então, chegar-me, encostar o meu braço ao teu, a minha perna à tua, desafiar-te, tirar-te do teu sossego, dizer-te palavras indecentes. Mas mantinha-me imóvel, e, sei lá porquê, as minhas palavras tinham sempre outros destinatários.

Até que um dia os deuses me empurraram para ti e a ti para mim e, desde então, esses intangíveis deuses têm-nos mantido amarrados (com amarras invisíveis, ninguém as vê, apenas nós as sentimos mas com que doçura, com que doçura as sentimos, meu amor...).

Desde esse dia as palavras são um fogo que arde permanentemente entre nós. Não passo sem as tuas palavras, anseio por elas. E as minhas palavras são um afago para ti, um afago que prolongas na tua cabeça quando não estamos perto um do outro.

São as palavras necessárias ao amor? São. São indispensáveis. 

Mas serão suficientes?

Talvez não. As palavras são o sangue morno que circula por dois corpos, são o oxigénio que purifica o coração dos dois, são a seiva da vida - mas há também os beijos, os sorrisos, o desejo, há a ternura do silêncio. Tudo, nas doses certas, forma o chão e o céu de dois corpos que se amam.



[Depois de tanto amor, queiram por favor ver as belas palavras do poema de uma outra Inês, já a terceira que habita este espaço azul e, logo mais abaixo, uma voz vinda dos céus entoa uma outra música divina e, claro, estamos com Händel]



Hoje ao fim do dia, naquela hora abençoada em que o sol doura o Tejo antes de se  pôr



                            Quero-te assim.
                            Com as pernas que nunca tive
                            para te seguir
                            e todos os dedos que fui
                            amputando, do lado do coração,
                            em castigo por não te saber tocar.

                            Assim, de cabeça finalmente perdida
                            para te explicar apenas
                            o essencial -

                            não há palavras
                            suficientes a este amor.
                            E um poema, mesmo de pedra,
                            também passa, a menos que
                            te ganhe para sempre os olhos.



                             ['Tritão - Jardim da Sereia, séc. XVIII' de Inês Dias in 'In Situ']

2 comentários:

  1. Amiga:

    Pode escrever-se um poema com basalto
    com pedra negra e vinha sobre a lava
    com incenso mistérios criptomérias
    e um grande Pico dentro da palavra.

    Ou talvez com gaivotas e cigarros
    cigarras do silêncio que se trilha
    sílaba a sílaba até ao poema que está escrito
    lá em cima no Pico sobre a ilha.

    Manuel Alegre

    E com Alegre a deixo.
    Beijinho
    Mary

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  2. Mary,

    E deixa-me em boa companhia. Será que ele me vai ler poesia em voz alta, com aquela bela voz que ele tem...?

    Bonito poema este. Não conhecia. Um poema escrito na pedra, este, mesmo a propósito. Grande Mary, sempre com uma resposta ou um poema na ponta da língua.

    Um beijinho, Mary e quando voltar venha logo dar notícias!

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