Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 maio, 2012

Fazes-te de santa de alças e pecado e atrevimento


Como escrever eu este texto? Como? Como, se me sinto tão injustiçada, tão mal compreendida? Como se estás sempre com novas exigências...? 

Eu que me tapo e cubro e que, se me destapo não é para que os outros me vejam, apenas tu, que só de ti quero olhos em mim, que eu não sou dessas e tu sabes, eu que te falo de mundos verdes, e de flores em grinaldas suavemente coloridas e de pombos enamorados, piu-piu, e de corações enlaçados e dos preceitos da mamã, eu que tudo faço para te agradar, meu amor, que te abano e te embalo, que te aqueço e alimento, que te visto e te lavo, que completo as tuas palavras para que te não canses, que te penteio e sacudo os ombros, te engomo as camisas e endireito os colarinhos... como podes dizer-me isso?

Eu que te falo de amores eternos, actos de bondade, caridade todos os dias, que dou beijinhos na tua titi, que faço as comprinhas da tua mamã, que te aqueço o jantarinho quando chegas tarde, que te sopro no pescoço quando tens calor, que te descalço os sapatos para não teres que te dobrar, eu que vivo para ti, que vou à missa todos os dias, confessar-me todos os dias... como podes pedir-me isso?

Estou aqui devota, devotada, santificada e vens tu pedir-me que me ajoelhe?! Mais?! Outra vez? Agora ainda sou eu que tenho que te fazer rezar...? Na volta ainda me pedes que te faça ver as estrelas...ora!

Não estarás a pedir demais...?



[Sem mais, passo já a informar que abaixo encontrarão um sugestivo poema de João Paulo Cotrim e depois, what else?, La bella figlia dell'Amore e estamos com o Rigoletto de Verdi]


Tarde nos frescos Jardim do Ginjal


                          Fazes-te de santa
                          de alças e pecado e atrevimento
                          atiras-me rosas cantando
                          modas e lavores
                          ruralidades de esguelha
                          auras e espinhos
                          falo não respondes
                          não te faças de estela e pagela
                          ajoelha e faz-me rezar



[Poema da pág 32 de João Paulo Cotrim in 'Má raça', interessante livro com design e ilustrações de Alex Gozblau e posfácio de Adolfo Luxúria Canibal]

6 comentários:

  1. Amiga:
    Pôr-me de joelhos para ele rezar? O meu amor, nem se eu rastejasse, rezava.
    Gostei da frase: "Na volta ainda me pedes que te faça ver as estrelas...ora!

    Não estarás a pedir demais...?"

    Os homens pedem sempre demais.
    Beijinho
    Mary

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    Respostas
    1. Cá está a Mary engraçada, divertida, que me faz rir.

      Eu estava a rir enquanto escrevia e, ao ver o seu comentário, ainda mais me ri.

      E é uma Mary sábia, claro: 'os homens pedem sempre demais'. Confirmo.

      Um beijinho, Mary.

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  2. um pouco à maneira de algumas coisas de josé carlos ary dos santos só lhe faltando a rima.

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  3. Caro Patrício Branco,

    Tem razão, não me tinha ocorrido mas tem razão. Talvez também à maneira de algumas poesias de Natália Correia.

    Há pouca poesia desta, algo brejeira, algo truculenta. Eu gosto.

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  4. Sim, tambem nc, bom poeta. aliás os 2 dedicaram poemas um ao outro (ex. retrato de natalia). Poetas muitas vezes irreverentes no que dizem, no que atiram através da poesia, poesias satiricas, mordazes, com humor.
    num livro autobiografico publicado o ano passado, "e a menina de quem é filha?", rita ferro transcreve um vivo e divertido dialogo poetico improvisado entre fernanda de castro e j c a dos s a que assistiu neste estilo. Divertido.

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  5. Não li esse livro. Ofereci-o à minha mãe. Amanhã quando for a casa dos meus pais vou ver se descubro essa passagem, deve ser bem interessante.

    Também não conheço esse poema que refere, Retrato de Natália, vou já procurá-lo na internet.

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