Há a multidão, há 'toda a gente', seres todos parecidos, todos normais. O tempo avança e, com ele, vai andando a multidão que se vai renovando mas mantendo-se sempre igual. É um exército anónimo, imóvel apesar de parecer mover-se, é um exército de gente que fala palavras normais, que fala com voz normal.
No entanto, por vezes, no meio da multidão um homem ou uma mulher levanta-se e fala palavras diferentes ou fala com uma voz diferente. A multidão parece então agitar-se, quem é este?, que diz ele? o que quer? e tentam rejeitar o corpo estranho.
Esse homem ou essa mulher, no entanto, não escutam a voz inerte e baça da multidão, essa vasta mole de humanos que caminha de olhos fechados, de boca fechada, de braços caídos. Esse homem ou essa mulher que se levantam falam uma língua desconhecida, usam palavras que pertencem a cantos longínquos que vêm do princípio dos tempos, palavras misteriosas que anunciam o esplendor (e, por vezes, também, a desgraça). Caminham cercados de luz, essa luz primordial que une os intangíveis infinitos.
A multidão ulula, não te queremos, és velho, está doido, não sabes o que dizes, cala-te, ninguém te compreende, vai-te embora, não fazes cá falta - tirem-no daqui!
No entanto, o homem ou a mulher que se levantaram, de peito feito, de bandeira esfarrapada na mão, lágrimas nos olhos francos, continuam, mesmo que, por vezes em surdina, a dizer palavras puras que soltam no vento, palavras que procuram a paz, a música, a beleza, a inexpugnável harmonia, a poesia.
Esse homem ou essa mulher são os mais lúcidos de toda a imensa multidão, vêem mais longe, vêem para além dos tempos - são os Poetas.
[A seguir à fotografia do velho pescador que regressa a casa, poderão encontrar um novo e belo poema de Manuel Alegre e, logo depois, o toreador da Carmen de Bizet]
Há pouco, perto do cair da noite, velho pescador abandona o Ginjal (o Tejo de um azul glorioso) |
Trago em mim um exército perdido
algures no meio de uma estrofe
da saga escrita em língua desaparecida.
Eu próprio sou esse exército sem sentido
e esse país de bandeira esfarrapada
que tremula num campo onde perdura
a sílaba mais pura desse canto
que por qualquer mistério ecoa em mim
em horas de esplendor e de desastre.
Talvez porque eu seja o sem sentido
desse exército perdido numa estrofe
e essa bandeira e esse país e esse fim
['Saga' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']
magnifico poema de um dos grandes bardos da poesia portuguesa, onde sempre entra a condição de ser português num pais agora perdido.
ResponderEliminarSe há continuador do camões dos lusiadas, manuel alegre é esse continuador e só depois vem fernando pessoa (com a mensagem) e outros.
vejo aqui, parece me, aproveitada a metáfora de d. sebastião com o seu exercito dizimado, morto, prisioneiro e perdido, com a bandeira rasgada depois do combate.
mas m a refere se ao presente como herdeiro desses desastres do passado, aliás herdeiro do esplendor tambem, não só do desastre. de geraç~
ao em geração essa marca foi passando.
só um grande trabalhador da poesia pode escrever algo como "exército perdido
algures no meio de uma estrofe".
poucos poetas actuais cantam como ele a condição de ser português, ou soldado desse exercito desfeito e perdido há muito.
é isso o que portugal agora será, "um pais com um exercito sem sentido e uma bandeira eesfarrapada".
e estrofe quer dizer poesia.
Caro Patrício,
EliminarAndo atrasada nos comentários, como expliquei. Só agora (e para mal dos meus pecados já é outra vez 1 e tal da manhã) aqui estou a responder.
Sim, Manuel Alegre tem a poesia dentro dele. As palavras dele têm uma música própria, nós lemos e as palavras parece que ficam iluminadas.
Gostei imenso de ler o que escreveu, as suas palavras acrescentam inteligência à leitura. Gostava que ele pudesse ler o que escreveu sobre ele e sobre a sua poesia.
Obrigada, Patrício Branco, em especial pela generosidade da partilha pois sinto que o faz com gosto.
Cara UJM:
ResponderEliminarPalavras perfeitas, as suas, sobre os poetas e os velhos: aqueles que ou choram sem motivo ou ficam com os olhos secos de lucidez.
Sinto, o nosso poeta, triste e sem alento. Talvez realista!
Abraço da Luísa sobe a calçada
Luísa subindo a calçada,
EliminarPois, como político o Manuel Alegre tem dado uns pontapés na calçada, nem sempre a coisa lhe correu extraordinariamente bem. Mas, como poeta, é um leão que ruge com força e gentileza.
E tem razão, neste poema ele parece estar com os olhos secos de lucidez (grande expressão, Luísa!)
Um abraço, Luísa.
Desde jovem leio e admiro Manuel Alegre.
ResponderEliminarLembro-me de o ouvir em segredo, porque a sua poesia incomodava o regime, abrindo horizontes aos jovens. Hoje está como todos da sua idade, os que lutaram por um País de liberdade sã e se sentem hoje defraudados. É sempre bom lê-lo.
Olá Pôr do Sol,
EliminarAs trovas do vento que passava, as praças das canções, a resistência e a sonoridade corajosa que chegava de rádio - recordações de tempos longínquos de um Manuel Alegre com o peito aberto.
Agora está desiludido e este poema mostra o cansaço, a tristeza da solidão de um soldado abandonado pelo exército.
As palavras dele são ímpares e eu gosto imenso de o ler (e ouvir)
Um beijinho, Sol Nascente.
passei pela livraria e comprei o livro de m a nada está escrito. grande poesia.
ResponderEliminarQue bom que encontrou este livro. É uma maravilha.
EliminarManuel Alegre escreve poesia com quem olha nos olhos e diz, com voz sonora, o que lhe vai na alma.
Gostaria de o ouvir dizer alguns destes poemas. Ele tem uma bela voz de poeta!