Por estes lados não se sente o sopro quente do deserto, nem há tamareiras de doces frutos, nem areias levantadas pelo caos. Não.
Por aqui não passam cavalos endoidecidos, resfolegando, bafo quente, patas inquietas. Não, nem pensar.
Por aqui não há rosas nómadas, flores ardentes, terras sequiosas, corujas em telhados de zinco. Não, meu amigo, não há.
Aqui há água, muito céu, barcos, há pescadores, há sombras, ruínas, telhados abertos, paredes despedaçadas. Gatos vadios, gaivotas loucas, gansos imaginados, cães sábios, bichos e homens muito velhos, mulheres que voam, também.
Por aqui ninguém os chama para as orações da tarde, e, por isso, ninguém se ajoelha, ninguém reza. Por aqui os deuses são desconhecidos. Quem por aqui anda, anda à procura da imensidão que há para além do horizonte, anda à procura das vozes dos que por aqui muito amaram e que por aqui deixaram a alma à solta.
Não passam, pois, cavalos em correria, nem se ouvem chamamentos, nem sinos, nem uivos, nada. Apenas silêncio. Gente sem dono. Gente que os deuses abandonaram.
E, no entanto, por vezes, alguém que passa em absoluto recolhimento olha ao longe, olha para além do azul e vê, lá muito ao longe, uma sombra ou apenas o esboço de uma sombra, ou apenas um suave contorno. E nisso pensa ver o abençoado o rosto de um terno e muito distante deus. E isso basta a quem nada tem. Isso basta, meu amigo.
[Abaixo do poema de Al Berto, estreia-se hoje um compositor de quem, nem sei como, me tinha esquecido, Franz Joseph Haydn. Na tentativa de reparar tão irreparável erro, abro com uma interpretação a cargo de Rostropovich]
No Ginjal, caminhando rente ao Tejo |
a luminosidade é uma placa de zinco suspensa
do céu do deserto
em redor
a imensidão das areias vibra contra o caos
de pedra e de eufórbios que se multiplicam
a perder de vista
o bafo inquieto dos cavalos acende
a pólvora das festas inesperadas
uma coruja morre
no cimo açucarado da tamareira
caminhas
sitiada pelo canto agudo do muezzin
chamando à oração
mektoub
sítios onde a vida cessou e tudo está escrito
há séculos - onde o coração dos homens
é uma rosa nómada e calcária
no limite da escassa água e desta terra seca
mal abençoada - caminhas
na plana noite das ardósias
nas jeiras de súplicas e recolhimento onde
talvez se esconda
o contorno quase terno do rosto de deus
['mektoub' de Al Berto in 'Horto de Incêndio']
Olá Jeitinho,
ResponderEliminarNão conhecia este poema do Al Berto.
Achei lindo o que escreveu a partir dele!
Bj
Antonieta
Olá Antonieta,
EliminarLer um livro de poesia é ter sempre alguma coisa para descobrir. Ao reler já parece outro.
Comigo, pelo menos, acontece isso. Os poemas mudam de cor, ajeitam-se a quem os lê.
Um beijinho, Antonieta.