Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 dezembro, 2012

Não acordes a mortal infância


Um dia uma mulher teve uma criança. Um dia essa criança brincou, sonhou, talvez, até, tenha sido feliz. Um menino que se fez um homem alto, um corpo forte, um homem que talvez gostasse de dançar, de amar ao som da música.

Um homem que talvez tenha tido o seu amor nos braços, que talvez olhasse o céu e o mar e amasse o azul e esperasse o bem que lhe viria do futuro.

Um homem que avançou no tempo, talvez com o seu amor ao lado, talvez lhe passasse o braço sobre os ombros, talvez passeasse ao longo do rio, talvez olhassem as gaivotas, talvez se deslumbrassem em uníssono perante Lisboa, a bela, ali do outro lado, talvez, se beijassem perante tamanha beleza.

Talvez este homem tenha um coração grande, talvez à sua volta a luz dance, talvez recorde ainda o menino que foi numa distante infância. Talvez. Talvez. Tomara que sim, meu deus.

Ou, então, não. Talvez os deuses o tenham abandonado, talvez a música se tenha silenciado, talvez a luz tenha escurecido, talvez o menino que viveu dentro de si esteja agora morto.

Talvez este homem que, indiferente à beleza do rio e da magnífica cidade, por aqui anda vasculhando os restos, procure apenas restos de sonhos, restos de inocência. Ou restos de comida.



[Por vezes há palavras que me doem enquanto as escrevo. Hesitei em usar esta fotografia, sabia que, se a usasse, me iria doer. Mas há agora tantas situações assim. Não quero que existam. Lutarei para que não existam. Mas tenho tão poucas armas para lutar que aproveitarei todas, mesmo as mais inócuas, como esta. O poema de Manuel António Pina, abaixo, nem puxava estas palavras. 

A seguir, para ver se espanto esta dor, uma música animada ainda de Ernesto Lecuona.]



Na beira de um dos cais do Ginjal, de frente para Lisboa, o Castelo de S. Jorge no alto




                                               A música tem olhos fulgurantes
                                               movendo-se à volta do fogo.
                                               Se és visto por eles tornas-te canto,
                                               tu que és, como tudo é, canto.

                                               Afasta-te do coração,
                                               a tua vida canta sob a música,
                                               não acordes a mortal infância,
                                               foge do que sabes, porque não o sabes.

                                               Talvez sejas apenas o sonho
                                               de um deus não mais desperto que tu.
                                               Ouve-o dentro de ti, ao deus,
                                               cantando luminosamente à tua volta.


['Canção' de Manuel António Pina in 'Todas as Palavras', Poesia Reunida]


2 comentários:

  1. Um belo texto e um belo poema.
    Do sonho já nem há restos e o pesadelo é total...

    Abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. jrd,

      A bela figura daquele homem contra uma Lisboa lindíssima fez-me muita impressão. Decidi nem o fotografar. Mas depois a tentação foi mais forte. Depois resolvi não colocar aqui a fotografia. Mas, uma vez mais, a tentação foi mais forte.

      Uma sociedade que fique indiferente ao fim de linha que é uma situação destas não é sociedade que se preze. E o pior é que ontem voltei a ver uma pessoa a mexer no lixo e a retirar algumas coisas e era uma mulher que até estava razoavelmente vestida.

      Por isso, ontem quando vi este poema, resolvi que iria escrever sobre isto. Mas acabei com um nó na garganta. Talvez por isso ou talvez porque estava cansada me deu, no UJM, para também escrever uma coisa triste.

      O estado em que o país está revolta-me.

      Eliminar