Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 dezembro, 2012

Ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado


Esperava por ti. Alisava a colcha, endireitava as almofadas, via-me ao espelho, penteava-me, espreitava a janela, via as horas, bebia água, ajeitava as cortinas, baixava um pouco o estore, espreitava a janela, via-me ao espelho, via as horas, espreitava a janela.

O gato olhava para mim. Eriçava o pêlo, ansioso, olhava para mim, saltava para o parapeito, olhava para mim.

Esperávamos por ti. Uma inquietação, uma ansiedade, uma vontade de ti, e tu, quando chegavas nem suspeitavas. Estávamos calmos, em silêncio esperando por ti - assim nos vias.

A casa estava na penumbra, o estore para baixo, os cortinados corridos. Apenas eu e o gato. Gostavas de chegar, furtivo, coração aos saltos, e ver que nós estávamos ali, tão serenos. A paz da casa e a paz da nossa serenidade tranquilizava-te. Nunca desfiz essa tua ideia, nunca te contei da nossa ansiedade quase descontrolada.

Depois abraçavas-me, beijavas-me, impaciente, despias-me, querias logo a minha pele. E eu deixava porque o meu corpo só te queria a ti. Nessa altura, eu fechava a porta para o gato não nos ver, sempre aquele receio que o gato depois revelasse o nosso segredo. O gato, tu mesmo o dizias, é meio gente, meio deus, e eu acrescentava que era também meio espírito de pássaro, de pássaro cigano, sem querer saber que três metades são mais que um e que isso não faz sentido.

Deitava-me então sobre ti, abraçava-me e deixava que me abraçasses com muita força, oferecia-me e tu oferecias-te. Éramos então gatos com cio, amantes, clandestinos na penumbra de um abrigo. 

A seguir, atencioso, levantavas-te e ias abrir a porta ao gato. E este vinha, cúmplice, os grandes olhos cheios de magia e malícia, olhando-nos, compreensivo, protector.

Quando partias, eu espreitava-te pela janela e o gato encostava-se a mim, triste pela tua partida, triste pela minha tristeza.

E, até que viesses de novo, desfiávamos as horas, desfiávamos lembranças, segredos, amores proibidos, os olhos húmidos de saudade. Eu e o gato.



[Logo abaixo de um dos gatos do Ginjal que me traz encantada, mais um belo poema de Maria do Rosário Pedreira, já o décimo oitavo. Logo a seguir mais uma maravilhosa música de Ernesto Lecuona]



No Ginjal, o meu belo gatinho tigrado, lindo, lindo




                                   O gato lembra-se de ti nos intervalos. Espera
                                   de olhos acesos as histórias que nos contas.
                                   Passeia-se inquieto sobre o meu parapeito e eriça
                                   o pêlo, cúmplice, quando pressente que regressas.

                                   Chegas sempre de noite. Sei quem és e ao que vens
                                   e ofereço-te o silêncio de um pequeno quarto recuado,
                                   as sombras das traseiras na minha pele, o tempo
                                   de repetir um gesto inevitável. Ouço-te contar
                                   a mesma lenda com lábios sempre novos. Aprendo-a
                                   e esqueço-a . Nunca a saberemos de cor, o gato ou eu.

                                   Depois partes. Levas contigo a tua voz, mas a música
                                   fica. Eu fecho as portadas devagar. O gato mia baixo
                                   à janela. Ninguém acena: guardamos com os outros
                                   a segredo das tuas visitas. Ambos. O gato e eu.


                                   [Poema de  Maria do Rosário Pedreira in Poesia Reunida]





*


Igual à minha Necas
raiada de três tons
(quem sabe da família)

Era tão pequena
ainda nem andava
desamparada
gatinhava no meio da rua 
tão frágil
tão fugidia da ninhada

e nós de partida
finalmente as férias desejadas
as malas arrumadas
o carro já ligado
portão fechado
e o seu miado ai aquele miado...

Foram vitaminas biberons 
(um ai Jesus)
e depois se fez crescida e deu em namorar
pois não
um gato grande e louro
rondava a porta
fazia serenatas (garanto eu)
e lá se foram encontrando em segredo em bailes de garagem
coisas da vida...até que aconteceu

pior foi mesmo 
quando nos vimos de parteiros
e ela se enroscava em nós gemendo
as dores pareciam lancinantes
e o seu esforço quase em vão
e aquele pelo multicor molhado
até que um gato bebé louro louro igual ao pai
finalmente rabiava
e ela lambia lambia aliviada

e nós ali embasbacados
chorando de alegria diante do milagre da vida

A Necas sempre foi arisca
poucos lhe tocam
(ainda hoje)
mas a MÃE NECAS
cheia de carinho
vigiava de perto o seu menino
tanto cuidado tanto amor
que fez dele um gato tão lindo enorme mimado e sonso
(juro que é)
que ainda hoje é conhecido por"Bébé" 


['A MINHA NECAS' de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]

10 comentários:

  1. A MINHA NECAS

    Igual à minha Necas
    raiada de três tons
    (quem sabe da família)

    Era tão pequena
    ainda nem andava
    desamparada
    gatinhava no meio da rua
    tão frágil
    tão fugidia da ninhada

    e nós de partida
    finalmente as férias desejadas
    as malas arrumadas
    o carro já ligado
    portão fechado
    e o seu miado ai aquele miado...

    Foram vitaminas biberons
    (um ai Jesus)
    e depois se fez crescida e deu em namorar
    pois não
    um gato grande e louro
    rondava a porta
    fazia serenatas (garanto eu)
    e lá se foram encontrando em segredo em bailes de garagem
    coisas da vida...até que aconteceu

    pior foi mesmo
    quando nos vimos de parteiros
    e ela se enroscava em nós gemendo
    as dores pareciam lancinantes
    e o seu esforço quase em vão
    e aquele pelo multicor molhado
    até que um gato bebé louro louro igual ao pai
    finalmente rabiava
    e ela lambia lambia aliviada

    e nós ali embasbacados
    chorando de alegria diante do milagre da vida

    A Necas sempre foi arisca
    poucos lhe tocam
    (ainda hoje)
    mas a MÃE NECAS
    cheia de carinho
    vigiava de perto o seu menino
    tanto cuidado tanto amor
    que fez dele um gato tão lindo enorme mimado e sonso
    (juro que é)
    que ainda hoje é conhecido por"Bébé"



    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Erinha,

      Que engraçado! Gostei tanto de saber desses amores... Quanta ternura, quanta dedicação. Eu que sempre fui mais de cães (por causa do grande afecto que dediquei à minha cãzinha), dou agora comigo fascinada por gatos.

      Gostei imenso do poema sobre a Sua Necas e, claro está, já pode ser vista no corpo da mensagem. Acho que fica muito bem junto à fotografia do gato malhadinho do Ginjal.

      Muito obrigada!

      Um beijinho, Erinha!

      Eliminar
  2. Ai, Ai, Jeitinho, assim não vale!

    Como é que pode resistir a um gatinho desses?

    Esse gatinho está mesmo a pedir para ser tratado com muito jeitinho, mansamente, carinhosamente...

    Vá lá, leve-o para casa!

    E agora vamos às palavras, suas e da Rosário: Simplesmente maravilhosas!


    Antonieta

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Antonieta,

      Por muitas razões não dá. Não quero aprisionar um animal tão livre. Se os visse ali junto ao rio, saltam, correm, brincam. Livres, livres. E este agora também vem ter comigo, também vem pôr-se encostado às minhas pernas. Uma ternura.

      Obrigada pelas sua palavras tão simpáticas.

      Um beijinho, Antonieta.

      Eliminar
  3. JOAQUIM CASTILHO11 dezembro, 2012

    Um texto encantadoramente felino! Gostei ...e muito!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Joaquim Castilho,

      Gostei dessa, do texto ser felino. Gosto. Palavras com olhos transparentes como o do gato, palavras macias como o pêlo do gato, palavras ágeis (digo isto porque tirei fotografias a dois saltos e fico espantada com a agilidade fantástica deste belo gatinho).

      muito obrigada!

      Eliminar
  4. Para casa???

    Têm um apartamento e um "calçadão" só para eles!!!
    A Necas, o Bebé e a Pinguinhas, eterna namorada do dito.

    Relação às vezes complicada. Sempre dois contra um.
    E uma forma "mal cheirosa" de marcar território.
    Amo-os de coração.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Já me ri.

      Os belos gatos do Ginjal guardam as margens do Tejo, saltam com alegria, descobrem os insondáveis tugúrios que por ali há, brincam uns com os outros.

      Se eu vivesse numa casa com quintal teria animais. Mas fechados num andar é muito violento. E a estes gatos que agora procuro com encantamento eu não poderia privar de liberdade.

      A minha mãe tem sempre gatos no jardim, andam por lá, deitam-se ao sol em cima dos vasos.

      A sua troika felina também deve ser assim, espreguiçados ao sol, imagino.

      Os nomes são o máximo! E acho também o máximo a ternura que mostra por eles.

      Um abraço, Erinha!

      Eliminar
  5. Amiga UJM
    A intensidade das suas palavras completam o lindo poema que escolheu.

    Este gatinho que por si espera, é uma ternura!!

    Um beijinho

    MCP

    P.S. Permita-me que dê os parabéns à leitora ERA UMA VEZ, pelo maravilhoso poema, que postou em comentário.



    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá MCP,

      Os gatinhos parece que já vêm ter comigo e eu por ali fico a fotografá-los, a vê-los, a falar com eles. E o meu marido, que gosta de andar com ritmo, sempre a puxar e a chamar por mim, sempre a dizer que tiro milhares fotografias aos gatos, que os gatos já nem me devem poder ver, que qualquer dia fogem de mim para não terem que me aturar...

      :))

      Obrigada. Um beijinho, MCP.

      Eliminar