Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

10 dezembro, 2012

não perguntes se estas são as vias da perfeição da alma


Colado ao caminho que percorro há um rio mas mal se vê. Do outro lado do rio há uma cidade mas também não se vê. Posso ter sonhado com esta cidade, se calhar é uma cidade magnífica que apenas existe nos meus sonhos. Olho, tentando ver através do manto branco, mas não vejo nada, nenhuma cidade. Ninguém acreditará em mim se insistir nessa cidade inventada.

Dir-lhes-ei, é Lisboa, a magnífica, a bela, a que se deita envolta em luz. Encolherão os ombros. Não há ali cidade nenhuma.

Passo em silêncio neste caminho silencioso e talvez quem me veja de longe pense que estou a entrar dentro de uma nuvem abstracta, que vou desaparecer, dissipar-me, eu névoa, eu quase nada, eu nada.

Passo em silêncio junto a estas paredes que o tempo vai comendo, as cores em delíquio, as janelas tapadas, as portas fechadas, as vozes silenciadas, casas vazias que guardam segredos, corações e conchas.

Mais além, prestes a confundir-se com a névoa, um vulto prepara-se para atravessar uma parede. Desaparecerá no vazio, nesse espaço imenso e silencioso onde repousam os espíritos dos gatos, dos pescadores, das gaivotas, das mulheres transparentes.

Sinto o vento, tão cru, tão limpo. 

É isto, então, a perfeição? São estes os caminhos ferozes da luz?

Continuo. Não sei se ali está um rio, se ali está uma cidade, não sei para onde me leva este caminho. Pouco vejo. Nada ouço. Caminho, em silêncio, no branco indefinido que me leva não sei onde, talvez para um qualquer desconhecido ocidente. Não sei. 


[Mas se estas minhas palavras são vazias e brancas, percorramos antes as palavras de Vasco Graça Moura e, a seguir, desçamos um pouco mais: abro a semana com um compositor que nos irá aquecer a alma, Ernesto Lecuona, um pianista e  compositor cubano (1895-1963)]



Ginjal numa manhã fria de nevoeiro



                                    não perguntes se estas
                                    são as vias
                                    da perfeição da alma,
                                    as concordâncias

                                    duma arte de viver;
                                    o tempo é excessivo nos vestígios: as
                                    antiguidades de roma, as histórias
                                    da morte no ocidente.

                                    súbito um perfume
                                    de remos no rio (audíveis?)
                                    e vento nas conchas resguardadas:
                                    guardam o coração e as suas

                                    certezas ferozes, a sombra
                                    resguardando a luz.


                                    ['nó cego, o regresso, XIII' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida]


*


Névoa
exercício branco
de olhar 
para além do olhar
aprender a ver
sem conseguir olhar
espaço aberto
livre
para imaginar!


[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

*


Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.



Viera do rio pela mão de uma criança.
A cidade é agora de porcelana branca.



[Respectivamente 'Lisboa' e 'Nevoeiro' de Eugénio de Andrade in 'Escrita da Terra']


8 comentários:

  1. JOAQUIM CASTILHO10 dezembro, 2012

    Névoa
    exercício branco
    de olhar
    para além do olhar
    aprender a ver
    sem conseguir olhar
    espaço aberto
    livre
    para imaginar!

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    1. Muito obrigada. Já tomei a liberdade de o alcandorar em lugar com menos névoa. Fiquei foi na dúvida se é seu, se de Gudula. Como não identificou a autoria presumi que fosse seu e assim o 'registei'. Se quiser que corrija, por favor diga-me, está bem?

      E agradeço de novo.

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  2. "Não há mais Portugal do que Lisboa" Francisco de Holanda

    Quando se tem a cidade nos genes há mais de três gerações não há neblina que a esconda.

    Abraço

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    1. 'Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois', Manuel António Pina

      Vejo-a mesmo sem a olhar, sinto-a mesmo de longe, recordo-a quando estou distante, custa-me a afastar-me quando me ausento. Lisboa, a bela, sereníssima.


      Um abraço, jrd.

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  3. Amiga,
    Grande magia existe num dia de nevoeiro!!!
    Lisboa indefinida, o Tejo invisível...mas que importa, se sabemos que quando o Sol voltar, eles lá estarão, com a beleza que há muito nos habituaram.
    Adorei o texto e o poema.
    Abraço.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Estava um frio e uma humidade que não lhe digo nada, até custava andar com as mãos de fora para segurar a máquina. Mas não me dá jeito tirar fotografias com luvas...

      Mas estava tão bonito, tudo tão branco, aquela neblina que tudo tapava, uma magia...

      Obrigada pelas suas palavras.

      Um abraço, MCP!

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  4. Não resisto a acrescentar estes dois do Eugénio:

    LISBOA

    Esta névoa sobre a cidade, o rio,
    as gaivotas doutros dias, barcos, gente
    apressada ou com o tempo todo para perder,
    esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
    rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
    nada mais quero de degrau em degrau.

    NEVOEIRO

    Viera do rio pela mão de uma criança.
    A cidade é agora de porcelaba branca.

    in 'Escrita da Terra'.


    Antonieta

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    1. Antonieta,

      Tem razão: mesmo, mesmo a calhar. Já lá estão em cima.

      Muito obrigada!

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