Colado ao caminho que percorro há um rio mas mal se vê. Do outro lado do rio há uma cidade mas também não se vê. Posso ter sonhado com esta cidade, se calhar é uma cidade magnífica que apenas existe nos meus sonhos. Olho, tentando ver através do manto branco, mas não vejo nada, nenhuma cidade. Ninguém acreditará em mim se insistir nessa cidade inventada.
Dir-lhes-ei, é Lisboa, a magnífica, a bela, a que se deita envolta em luz. Encolherão os ombros. Não há ali cidade nenhuma.
Passo em silêncio neste caminho silencioso e talvez quem me veja de longe pense que estou a entrar dentro de uma nuvem abstracta, que vou desaparecer, dissipar-me, eu névoa, eu quase nada, eu nada.
Passo em silêncio junto a estas paredes que o tempo vai comendo, as cores em delíquio, as janelas tapadas, as portas fechadas, as vozes silenciadas, casas vazias que guardam segredos, corações e conchas.
Mais além, prestes a confundir-se com a névoa, um vulto prepara-se para atravessar uma parede. Desaparecerá no vazio, nesse espaço imenso e silencioso onde repousam os espíritos dos gatos, dos pescadores, das gaivotas, das mulheres transparentes.
Sinto o vento, tão cru, tão limpo.
É isto, então, a perfeição? São estes os caminhos ferozes da luz?
Continuo. Não sei se ali está um rio, se ali está uma cidade, não sei para onde me leva este caminho. Pouco vejo. Nada ouço. Caminho, em silêncio, no branco indefinido que me leva não sei onde, talvez para um qualquer desconhecido ocidente. Não sei.
[Mas se estas minhas palavras são vazias e brancas, percorramos antes as palavras de Vasco Graça Moura e, a seguir, desçamos um pouco mais: abro a semana com um compositor que nos irá aquecer a alma, Ernesto Lecuona, um pianista e compositor cubano (1895-1963)]
Ginjal numa manhã fria de nevoeiro |
não perguntes se estas
são as vias
da perfeição da alma,
as concordâncias
duma arte de viver;
o tempo é excessivo nos vestígios: as
antiguidades de roma, as histórias
da morte no ocidente.
súbito um perfume
de remos no rio (audíveis?)
e vento nas conchas resguardadas:
guardam o coração e as suas
certezas ferozes, a sombra
resguardando a luz.
['nó cego, o regresso, XIII' de Vasco Graça Moura in Poesia Reunida]
*
Névoa
exercício branco
de olhar
para além do olhar
aprender a ver
sem conseguir olhar
espaço aberto
livre
para imaginar!
[Poema de Joaquim Castilho num comentário abaixo]
*
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
Viera do rio pela mão de uma criança.
A cidade é agora de porcelana branca.
[Respectivamente 'Lisboa' e 'Nevoeiro' de Eugénio de Andrade in 'Escrita da Terra']
Névoa
ResponderEliminarexercício branco
de olhar
para além do olhar
aprender a ver
sem conseguir olhar
espaço aberto
livre
para imaginar!
Muito obrigada. Já tomei a liberdade de o alcandorar em lugar com menos névoa. Fiquei foi na dúvida se é seu, se de Gudula. Como não identificou a autoria presumi que fosse seu e assim o 'registei'. Se quiser que corrija, por favor diga-me, está bem?
EliminarE agradeço de novo.
"Não há mais Portugal do que Lisboa" Francisco de Holanda
ResponderEliminarQuando se tem a cidade nos genes há mais de três gerações não há neblina que a esconda.
Abraço
'Para cá de mim e para lá de mim, antes e depois', Manuel António Pina
EliminarVejo-a mesmo sem a olhar, sinto-a mesmo de longe, recordo-a quando estou distante, custa-me a afastar-me quando me ausento. Lisboa, a bela, sereníssima.
Um abraço, jrd.
Amiga,
ResponderEliminarGrande magia existe num dia de nevoeiro!!!
Lisboa indefinida, o Tejo invisível...mas que importa, se sabemos que quando o Sol voltar, eles lá estarão, com a beleza que há muito nos habituaram.
Adorei o texto e o poema.
Abraço.
MCP
Olá MCP,
EliminarEstava um frio e uma humidade que não lhe digo nada, até custava andar com as mãos de fora para segurar a máquina. Mas não me dá jeito tirar fotografias com luvas...
Mas estava tão bonito, tudo tão branco, aquela neblina que tudo tapava, uma magia...
Obrigada pelas suas palavras.
Um abraço, MCP!
Não resisto a acrescentar estes dois do Eugénio:
ResponderEliminarLISBOA
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
NEVOEIRO
Viera do rio pela mão de uma criança.
A cidade é agora de porcelaba branca.
in 'Escrita da Terra'.
Antonieta
Antonieta,
EliminarTem razão: mesmo, mesmo a calhar. Já lá estão em cima.
Muito obrigada!