Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 janeiro, 2014

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

 Numa rocha no Jardim do Ginjal

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.




[Amar de Carlos Drummond de Andrade, dito por Marília Pêra]

*

CONTRASTE

Do amor
Nasce
Uma poalha translúcida
De ternura partilhada
Música
Surdina
Sempre escutada.
No silêncio claro
Uma canção
Transfigurada....


[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

29 janeiro, 2014

No mais, Musa, no mais, que a lira tenho destemperada e a voz enrouquecida, e não do canto, mas de ver que venho cantar a gente surda e endurecida.


Nem me falta na vida honesto estudo,
com longa experiência misturado,
nem engenho, que aqui vereis presente,
cousas que juntas se acham raramente.



Vasco Graça Moura refere Os Lusíadas como o livro da sua vida.


Acima e no título um pequeno excerto do Canto X de Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões


28 janeiro, 2014

"Paisagens Literárias" de escritores de Trás-os-Montes (Manuel Vaz de Carvalho, Bento da Cruz, A.M. Pires Cabral)


A beleza de Trás-os-Montes pede que as palavras voem como pássaros de longas asas sobre as suas fragas e sobre os espaços imensos de ar limpo e luz muito pura.

Este pequeno filme transporta-nos até essa beleza e até ao orgulho de recorte agreste dos transmontanos.



Paisagens Literárias de escritores de Trás-os-Montes

  • realização: José Barbieri
  • vídeo: Eva Ângelo, Solange Carvalho, José Barbieri
  • investigação: Ana Lavrador, Margarida Lopes Fernandes, Isabel Alves 
  • textos literários: Manuel Vaz de Carvalho, Bento da Cruz, A.M. Pires Cabral
  • música: Rafael Del Rio
  • gaita de foles: Alvorada, Manuel Paulo Martins, recolhido por Domingos Morais, 1985
  • produção: Memória Imaterial CRL
  • distribuição web: MEMÓRIAMEDIA www.memoriamedia.net
  • colaboração: LITESCAPE- Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental

22 janeiro, 2014

Hélia Correia no Monte dos Vendavais


A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.


[in a Terceira Miséria]






21 janeiro, 2014

Ser um sinal lançado ao acaso na noite


Se o meu tempo é tão escasso porque me detenho aqui deixando palavras soltas na noite, nos incertos dias, escrevendo não me perguntem para quem?

Sei que, de vez em quando, pessoas invisíveis passam por esta minha casa, e, já que a porta está sempre aberta, entram, sobem as escadas e sei que espreitam o rio, sinto a sua presença silenciosa ao meu lado quando me ponho à janela. Não digo nada, não quero que se vão, e deixo-me ficar, também eu invisível, imóvel, agradecida.

Virão de longe, talvez, talvez do outro lado do mar, do outro lado do mundo. Não me dizem nada e eu, aqui calada, temo que algum dia deixem de vir, que me esqueçam, ou que algum dia eu, sem querer, os tenha magoado e que, magoados, deixem de falar comigo. Se algum dia isso aconteceu mil desculpas peço, foi sem querer, foi sem querer, foi sem querer.

É curto o meu tempo. Curto. Passa a voar. E eu, que tenho tantos sonhos, sinto que devo apressar-me. 

Misturo-me com as flores querendo sentir o que sentem as flores, olho longamente os movimentos das gaivotas, tento sentir o que sentem quando voam, passo a mão pelas pedras molhadas, cobertas de limos macios, quero sentir o que sente a pedra quando banhada pelo rio e quero sentir o que sente o rio quando acaricia as pedras macias que encontra pelo caminho.

Leio mil livros, mil, mil, muitas mil palavras, querendo sentir a alucinação afortunada que sentem as palavras que encontram o seu destino, querendo sentir o que sentem as palavras quando se misturam com o olhar de quem as lê ou com a respiração de quem as diz, em silêncio. E quero ser a luz, a luz infinita que cruza as imensas trevas.

E tenho tão pouco tempo para ser e sentir tudo isto. 


Pilar da Ponte 25 de Abril parecendo flutuar no céu num dia de névoa e frio
(avistado do Ginjal)


[Na despedida de Claudio Abbado]



Sinfonia nr. 5 - Adagietto de Mahler - conduzida por Claudio Abbado


                                                                      

                                                                      Sondar
                                                                      a linguagem das trevas
                                                                      dormir
                                                                      na neve dos limites
                                                                      atravessar
                                                                      flores distraídas

                                                                      Decifrar
                                                                      numa pedra fria
                                                                      letras a arder
                                                                      entrar
                                                                      em comboios remotos
                                                                      no olho gigante
                                                                      das estações do fim do mundo

                                                                      Ser
                                                                      um sinal
                                                                      lançado ao acaso na noite
                                                                      deixar 
                                                                      noutra boca
                                                                      o gosto de uma ausência

                                                                      Temos tão pouco tempo
                                                                       tão pouco sonho
                                                                       tão pouco



['Tão pouco' de Ernesto Sampaio in Feriados Nacionais]


*


Sem fôlego
De mais versos
Tolhem-se-me
Os poemas,
Palavras brumas
Murmúrios
Silêncios ocos
Nos intervalos vazios 

Do meu tempo.



['O tempo ... e tão pouco' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]



18 janeiro, 2014

Saltam ao caminho a sangrar-me a veia do poema.


As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.


['As sofridas amoras' de Luíza Neto Jorge]




Filme de João Roque sobre Luiza Neto Jorge

*

Poema
construído
palavra a palavra,
lentamente.
Decantado
dos medos e das sombras,
dos ruídos e dos sorrisos,
das chuvas e dos amanheceres
da música que se não ouve.
Dia a dia
dia após dia
um pouco mais
ou quase nada
quase todos os dias.


[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

15 janeiro, 2014

Era uma vez uma mulher que via um futuro grandioso para cada homem que a tocava. Um dia ela se tocou...


Num pontão do Ginjal, sobre o Tejo




Era uma vez uma mulher
 que via um futuro grandioso
 para cada homem que a tocava
 um dia
 ela se tocou...

.  Eu pensava que o amor
 me faria uma rainha
 e quando você chegasse
 não seria mais sozinha.

  Você chega da gandaia
 só pensando numazinha
 seu amor é pouca palha
 para minha fogueirinha.

  O que você jogou fora
 é para poucos
 o meu mal foi jogar
 pérolas aos porcos.

  Eu não sou da sua laia
 não quero sua ladainha
 pra ser mal acompanhada
 prefiro ficar na minha.


 Era Uma Vez poema de Alice Ruiz interpretado por Zélia Duncan


*

No Ginjal, sobre o Tejo, alheada de Lisboa


Já notou que eu te amo
Ou você pensa
Que toda vez que eu ligo
É por engano?

Já sacou que é meu vício
Minha droga
Meu barato
Ou vou ter que curtir a rebordosa
Em algum hospício?

Pra me deixar normal
Só uma overdose de você
Pra me pirar legal
Só uma dose dupla desse mal


   

Overdose poema de Alice Ruiz interpretado por Zélia Duncan


*


Em caso de dor ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema dê um sorriso
Ainda que amarelo, esqueça seu cotovelo 
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre

Caso de tristeza vire a mesa
Coma só a sobremesa coma somente a cereja
Jogue para cima faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra penas viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena reze um terço
Caia fora do contexto invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre

Mas se apesar de banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal do sal do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas três dez cem mil lágrimas sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre


   

 Milágrimas (Itamar Assumpção e Alice Ruiz) com Alice Ruiz e Anelis Assumpção



14 janeiro, 2014

Se eu tivesse de escrever pela gramática, não escreveria coisa nenhuma - e desisti da gramática. Palavras de Cora Coralina.


O amor e o encantamento e o medo e a aflição e a alegria e a tristeza e tudo são coisas que vêm cá de dentro, do límbico, das tripas, do sangue. Não vêm de modelos didascálicos, de conceitos oximorizados e outras semânticas que tais, palavras trabalhadas, enfeitadas, feitas de propósito para alguém usar na lapela da virtude linguística. Digo eu, misturando as palavras e os conceitos de propósito para as tornar ainda mais ostentatórias.


'Amo-te Ursinha!!! Demais...'

(Declaração de amor escrita numa parede do Ginjal)


Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

['Poeminha de Amor' de Cora Coralina]


*

A palavra a Cora Coralina


*

13 janeiro, 2014

Vive dentro de mim a mulher do povo. Bem proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos, de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Graffiti numa parede junto à ex-Lisnave

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem-feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Cacilhas numa manhã fria de chuva

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada. 
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem chiadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Junto ao Tejo, numa manhã de névoa e frio

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.



'Todas as vidas' de Cora Coralina dito por Clemente Drago


Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas ou Cora Coralina, (Cidade de Goiás, 1889 — Goiânia 1985) foi poeta e contista brasileira. Produziu uma obra poética rica em motivos do quotidiano do interior brasileiro, em particular dos becos e ruas históricas de Goiás. Começou a escrever poemas aos 14 anos, porém, publicou seu primeiro livro em 1965, aos 76 anos. 

12 janeiro, 2014

Moço, cuidado com ela! Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...


Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada ato que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia. 



Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflita..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma fato em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês. 




Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do cotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
 julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.  


E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
VACA é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!


['Aviso da Lua que menstrua' de Elisa Lucinda dito pela própria no espectáculo"Parem de falar mal da rotina"]


10 janeiro, 2014

Se eu disser que vi um pássaro sobre o teu sexo, deverias crer?


Voar como uma palavra, atravessar o Tejo como o desejo de uma mulher, ser impudica ou um pássaro branco, atravessar mil noites, ostentar com orgulho o sexo, escrever poesia, ouvir poesia, dizer poesia, sonhar com um vasto mar azul, sentir a doce inocência sobre a pele, perfumes carnais, e palavras, palavras, palavras.

Eu. Os meus segredos. O meu mundo. (Corrijo: parte do meu mundo)


O Tejo no Ginjal



Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?


Do Desejo escrito e dito por Hilda Hilst



09 janeiro, 2014

Em que espelho ficou perdida a minha face?


Em Cacilhas, de frente para Lisboa, num dia sombrio, o Tejo escuro, agitado


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?




Poema 'Retrato' de Cecília Meireles aqui dito por Paulo Autran sobre parte do filme UP (Altas aventuras)



08 janeiro, 2014

A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.


Na tarde clara de um domingo quente, surpreendi-me
Intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro
Desejo de raspar a cabeça e me pôr nua no centro da minha vida
E uivar até me secarem os ossos
Que queres que eu faça Deus?

Quando parei de chorar, o homem que me aguardava disse-me:
Você é muito sensível, por isso tem falta de ar!
Chorei de novo porque era verdade e era também mentira, sendo só meio consolo

Respira fundo, insistiu!
Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico


Graffiti numa parede perto da ex-Lisnave


Que ex-voto levo à Aparecida se não tenho doença e só lhe peço a cura?
Minha amiga devota se tornou budista. Torço para que se desiluda e volte a rezar comigo as orações católicas.

Eu nunca ia ser budista!
Por medo de não sofrer, por medo de ficar zen
Existe santo alegre ou são os biógrafos que os põem assim felizes como bobos?

Minas tem coisas terríveis.
A serra da piedade me transtorna.
Em meio a tanta rocha de tão imediata beleza, edificações geridas pelo inferno, pelo descriador do mundo.

O menino não consegue mais, vai morrer, sem força para sugar a corda de carne preta do que seria um seio, agora às moscas.

Meu coração é bom mas não aceita que o seja.
O homem me presenteia.
Porque tanto recebo quando seria justo mandarem-me à solitária?



Gata no Ginjal


Palavras não, eu disse. Eu só aceito chorar!
Porque então limpei os olhos quando avistei roseiras e mais o que não queria, de jeito nenhum queria aquela hora, o poema, meu ex-voto.
Não a forma do que é doente, mas do que é são em mim.
E rejeito e rejeito premida pela mesma força do que trabalha contra a beleza das rochas.

Me imploram amor Deus e o mundo.
Sou pois mais rica que os dois.
Só eu posso dizer a pedra: És bela até a aflição!
O mesmo que dizer a ele: Sois belo, belo, sois belo.

Quase entendo a razão da minha falta de ar
Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor.

A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.



Ex-Voto de Adélia Prado, aqui dito por Elisa Lucinda.


07 janeiro, 2014

Já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida.


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: 
Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? 
Às vezes dá certo. 
Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase 
"se eu fosse eu"
que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. 
Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. 

Graffiti numa parede junto à antiga Lisnave

Experimente: 
Se você fosse você, como seria e o que faria? 
Logo de início se sente um constrangimento: 
A mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. 
No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. 
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado.
Como?
Não sei !
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. 
Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. 
E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao Futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. 
Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. 
E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. 
Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. 
Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.



"Se eu Fosse Eu" - ( Clarice Lispector ) - [ Na voz de Aracy Balabanian ]


(aqui)

06 janeiro, 2014

Adélia Prado fala sobre o amor


Adélia Prado falando sobre o Amor! - Pra ser bem sincero... sabe aqueles momentos que a gente queria que o tempo parasse?...pois é!...

A gravação desse progama, lá em São Paulo, foi um dos melhores momentos que já passei nesta vida.

Tudo o que eu quis um dia: música e poesia. Foi uma graça encontrar a Adélia, Túlio, o Chico Pinheiro, minha querida Maria Lúcia Godoy, e a simpatia do meu primo Zé de Freitas (Marido da Adélia). Que noite mais boa, sô!!!



*

05 janeiro, 2014

Mulher, essa espécie ainda envergonhada


Mulher. Eu sou mulher. Sinto-me muito mulher. 

Uma vez, uma amiga contou-me que um amigo dela que me tinha conhecido lhe perguntava sempre por mim e, quando ela brincou com ele, ele disse-lhe que achava que eu era a mulher mais mulher que ele tinha conhecido. Nunca nada sobre mim me agradou tanto. 

Uma mulher muito mulher. Toda mulher. Orgulhosamente mulher. Feminina, namorada, amante. E mãe. E muito mãe. Mãe desdobrada em mãe dos filhos dos filhos, cada vez mais mãe.

Ser mulher não me pesa. Ser mulher deixa-me voar.

Mulher desde que nasci, sempre. Em cada instante. Mulher. Escrevo palavras de mulher. Sou corajosa como só as mulheres sabem ser. Sou brava e sou doce como só às mulheres fica bem ser.

Mulher.


Graffiti numa parede perto da ex-Lisnave




Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira
- cargo muito pesado pra mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


['Com licença poética' de Adélia Prado, aqui]



Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.


[Início de 'Poema de Sete Faces' de Carlos Drummond de Andrade']


02 janeiro, 2014

Dinato: Que escreverei, companheiro? ........ Belzebu: Que ninguém busca consciência e todo o mundo dinheiro.


Não é de hoje. É da natureza humana. Mas tanto é a vã ganância como a pura consciência. O bem e o mal convivem, sempre conviveram, sempre conviverão. Por vezes prevalece um até que o outro venha e se imponha. O poder e a força aparentemente estão mais do lado do Mal mas sabemos todos (o Mal também sabe e por isso tão bem se defende) que o Bem se fará valer. Qualquer dia, qualquer dia.

Neste primeiro dia de 2014 que fique pois a lembrança que isto é ciência que vem dos antigos. Por cada um que quer a lisonja mesmo que envolta em mentira, há um outro que quer a verdade, que quer pagar o que deve, que a ninguém quer enganar. E que esses, os ninguéns, um dia, todos juntos, saberão expulsar do palco os que tudo querem gozar, obrigando os outros a pagar.

Feliz 2014!

Árvore derrubada e arrastada no Tejo, avistada no Ginjal





Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.

Ninguém:
Eu hei nome Ninguém, 
e busco a consciência.

Belzebu:
Esta é boa experiência:
Dinato, escreve isto bem. 

Dinato:
Que escreverei, companheiro?
Belzebu:
Que ninguém busca consciência. 
e todo o mundo dinheiro. 

(...)

[Excerto de 'Todo o Mundo e Ninguém' contido no 'Auto da Lusitânia' de Gil Vicente, aqui num vídeo realizado para o EAD da ULBRA ]