Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 janeiro, 2014

Já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida.


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: 
Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? 
Às vezes dá certo. 
Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase 
"se eu fosse eu"
que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. 
Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. 

Graffiti numa parede junto à antiga Lisnave

Experimente: 
Se você fosse você, como seria e o que faria? 
Logo de início se sente um constrangimento: 
A mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. 
No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. 
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado.
Como?
Não sei !
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. 
Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. 
E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao Futuro.
"Se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. 
No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. 
Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. 
E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. 
Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. 
Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.



"Se eu Fosse Eu" - ( Clarice Lispector ) - [ Na voz de Aracy Balabanian ]


(aqui)

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