Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

22 abril, 2013

não quero o teu retrato nem o meu, a não ser num templo em ruínas


Alguém anda a pintar as paredes do Ginjal de cores que latejam, que brilham com o sol. As paredes gastas reflectem agora o sol que se põe. O rio e o céu e as paredes brilham com a mesma cor doce, vibrantes e cheios de vida.

Na fotografia não estou eu, nem tu, meu amor. Mas na rua que eu fotografei, passa uma mulher com o seu amor. 

Noutras fotografias estás tu, andando, esperando por mim. 

Tantas fotografias tuas que tenho aqui, meu amor, meu gato aparentemente esquivo, meu gato indecente. Por aqui andas quando o sol se põe, por aqui andas de manhã, respirando a maresia fresca. Outras vezes, quando as noites estão frias e ventosas, passas por entre os gritos e os rangidos dos cais, passas indiferente, tantas vezes já aqui passaste.  Caminhas com determinação, e esperas por essa mulher que se perde a olhar as gaivotas ou os veleiros. Tão diferentes: tu um gato, eu uma gaivota. 

Nessas fotografias em que estás sozinho no meio deste templo decadente, não estás, de facto, sozinho. Atrás do olhar que assim te viu está a mulher que nunca se cansa de te ver, para quem o tempo nunca é tanto, para quem o amor não será nunca uma casa em ruínas.



[Abaixo de mais um poema de Vasco Graça Moura, temos mais uma grande interpretação no violoncelo. Desta vez é Jacqueline du Pré interpretando Saint-Saëns] 


Entardecer no Ginjal. O Tejo e a Ponte 25 de Abril ao fundo



                                         não quero o teu retrato
                                         nem o meu, a não ser
                                         num templo em ruínas:
                                         aí o tempo tanto

                                         gastou degraus, colunas,
                                         e fez do musgo acanto
                                         que podemos sentar-nos
                                         sobre a pedra votiva

                                         e ficar de mãos dadas
                                         sob um céu de ameaça
                                         olhando a objectiva. há
                                         felizmente um disparo

                                         automático a
                                         fuzilar-nos de amor na nossa imagem.


[Poema XIX de 'nó cego, o regresso' de Vasco Graça Moura in 'poesia reunida']

*



Rectângulos de um dia
escritos com luz
escolhas recortadas
janelas transpostas
do olhar de alguém.
Nas páginas impressas de um livro,
no papel efémero de um jornal,
no cartaz que olhamos ao passar
na cuidada elaboração de uma foto de autor,
descobrir
o que sempre tínhamos visto
ou o que jamais poderíamos ter observado.
Alguém nos guia o olhar
para que possamos ver.


[Fotografias de Joaquim Castilho num comentário abaixo]

2 comentários:

  1. Olá UJM!
    FOTOGRAFIAS


    Rectângulos de um dia
    escritos com luz
    escolhas recortadas
    janelas transpostas
    do olhar de alguém.
    Nas páginas impressas de um livro,
    no papel efémero de um jornal,
    no cartaz que olhamos ao passar
    na cuidada elaboração de uma foto de autor,
    descobrir
    o que sempre tinhamos visto
    ou o que jamais poderiamos ter observado.
    Alguém nos guia o olhar
    para que possamos ver.


    Um abraço



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    Respostas
    1. Olá Joaquim!

      Hoje estive a folhear um livro de Susan Sontag sobre fotografia e ela falava nisso que escreveu. O olhar dos outros que nos é dado ver. Reparar no que não reparámos mas que alguém nos está a dar a ver.

      Gosto muito de fotografar, fixar instantes, perspectivas e sei que percebe essa necessidade pois as suas fotografias revelam também que gosta de ver através da lente e dar a conhecer o que viu.

      Muito obrigada!

      O seu belo poema já lá está, onde deve.

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