Havia uma ideia. Dessa ideia nasceu um desenho. Desse desenho nasceu uma obra. Quando a obra acabou havia uma casa. A casa tinha janelas. A essas janelas assomavam pessoas que viam o rio.
O tempo passou. As pessoas eram felizes, o rio corria para o mar, a luz entrava pelas janelas. Tudo estava certo.
Até um dia.
Aos poucos, as pessoas foram abandonando as casas. Até que, um dia, a última pessoa também foi. Dia triste esse.
As casas são como as pessoas: querem companhia, carinho. Sozinhas, definham. Foi o que aconteceu: um dia o vento abriu uma janela. Assim ficou. Entrava o sol, a chuva, as ventanias. Entrava pelas janelas e pelo telhado que também deixou de existir. Aos poucos, a casa foi ficando arruinada. Vazia, decaída, infeliz.
Anos de desolação.
Agora alguém pintou um rio azul na parede. Ou o céu.
E ontem, ao passar por lá ao fim do dia, vi uns jovens em frente desta parede azul. O céu e o rio vieram banhar as velhas paredes, vieram para ficar perto dos jovens. E os jovens riem com a sua pele fresca e a sua voz alegre e a beleza assume formas novas e eternas.
À noite, quando a casa está tomada pelo silêncio e as gaivotas se recolhem, este azul refulge e as estrelas descem do céu para virem deitar-se nesta parede coberta com as cores iluminadas da inocência. E os deuses, antes de mergulharem no fundo do mar, ainda passam os olhos por esta casa vazia, sem janelas, mas com um rio azul correndo nas suas paredes.
[Maria do Rosário Pedreira, uma Senhora Poetisa, que é muito cá do Ginjal, volta a fazer-nos uma visita e eu, encantada, deixo-a falar de luz que entra pelos telhados e do que ela quiser. A seguir, Yuja Wang, essa prodigiosa intérprete de piano traz-nos Mendelssohn e eu fico também encantada. A música de uma ilumina as palavras de outra]
Parede parcialmente pintada de azul no velho casario do Ginjal |
No princípio, aprenderam a ter medo e protegeram-se.
Construíram casas de pedra e lama, pequemos refúgios
onde não tardaram a sentir-se cada vez mais sós.
Sonharam que, um dia, um feixe de luz haveria
de afagá-los. E, fascinados pelo céu, desenharam
óculos pelos telhados.
Tiveram, desde logo, a companhia das estrelas.
Hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas
todas as noites, antes de adormecerem.
['A invenção das clarabóias' de Maria do Rosário Pedreira in 'A casa e o cheiro dos livros']
*
Noite já,
a noite tua,
o teu dia,
por fim, adormecido.
Noite,
o teu regaço de silêncio.
Procuras,
na penumbra da tua casa,
nos recantos mais profundos
das tuas sombras,
nos pedaços dispersos do teu tempo
no Ginjal?
a semente esquecida dos teus textos.
['Em homenagem ao seu labor literário' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
Olá UJM!
ResponderEliminarEm homenagem ao seu labor literário
Noite já,
a noite tua,
o teu dia,
por fim, adormecido.
Noite,
o teu regaço de silêncio.
Procuras,
na penumbra da tua casa,
nos recantos mais profundos
das tuas sombras,
nos pedaços dispersos do teu tempo
no Ginjal?
a semente esquecida dos teus textos.
um abraço
Um abraço
Olá Joaquim,
EliminarTão bonito... E é mesmo isto.
Luto contra a falta de tempo, contra o cansaço e o sono. Mas, quando a noite se silencia, sinto vontade de me deixar estar aqui, a respirá-la e a escrever palavras que voam e atravessam os espaços.
Mil vezes obrigada.
Um abraço.
PS: Vou pôr o seu poema lá em cima.