Há lugares onde os rios são dóceis. Passam, citadinos, sossegados, entre margens maquilhadas. Por ele descem frágeis barcos e são frágeis porque podem ser frágeis, porque os rios são inofensivos, quase inertes, cansados.
Nas cidades do norte os rios que passam a meio das cidades são rios estreitos, pacíficos. Civilizados, claro. Nunca se exaltam, não ultrapassam as margens, não arrancam árvores à passagem, não devoram frutos, não carregam restos de vida no seu ventre.
Aqui, no sul, é o que se vê: uns dias o rio traz árvores inteiras, outras traz frutos, outros traz pedras, tijolos, restos de casas, restos de carros. Um desatino, estes rios das cidades do sul.
Aqui no sul há um rio como este, ágil, voluntarioso, que desliza e salta indómito, uns dias azul, outras verde, outras chumbo, e corre, ligeiro, a misturar-se no mar. Por isso, aqui o rio é salgado, cheira a maresia, tem algas, tem mexilhões agarrados às colunas do cais, tem limos verdes, e tem grandes cargueiros e suaves veleiros e pequenos barquinhos e pobres pescadores. E por ele saíram navegadores que desafiaram monstros, que descobriram mundos. Loucos, valentes.
Um rio excessivo, violento, vibrante, carregado de vida, este.
Este, tal como outros rios das cidades do sul, fala muitas línguas: fala português, espanhol, italiano, grego, cipriota. Um rio que uns dias está cheio de sol, inundado de luz, outras tolda-se perante uma chuva pesada, outras salta levado pelo vento. Sempre o mesmo, irrequieto, volúvel, irreflectido. Dizem.
Não sabem o que dizem.
Não é o mesmo. São águas que nascem do fundo da terra e, por isso, são outras, sempre outras, correm diferentes, estrangeiras, nativas, o que for. Inocentes, puras, fortes, vigorosas estas águas. Sempre dispostas a irem correr à procura de mundos novos.
Que nenhuma apagada figura do norte sombrio venha pretender parar estas águas felizes que aqui correm no sul. As águas vibrantes do sul jamais se deixarão prender entre margens soturnas, tristes.
Porque aqui há corações que não se vendem, há braços cheios de força, há colunas direitas, corpos inteiros.
E há poetas que inventam palavras cheias de luz e há gaivotas passeando entre os escombros, entre as marés, indiferentes à espuma dos dias. Séculos de história não se apagam facilmente, pensa a gaivota. E penso eu também, mas eu, é sabido, sou meio gaivota.
[Abaixo do belo poema de Luiza Neto Jorge, uma mulher pássaro, poderemos ouvir, uma vez mais, uma menina maravilhosa, Yuja Wang, desta vez numa virtuosa interpretação de Rachmaninov]
Gaivota na beira do tejo, numa das pequenas praias do Ginjal |
Nas cidades do sul
há violência e há excesso,
de semente.
Estalam os rios e foge a água.
O corpo, encortiçado, racha.
Lendas vêm de há séculos assoreando
as margens.
E quando à boca de um poço vamos
provar o nosso eco,
águas puras irrompem,
noutra língua.
[Poema da pág 259 de Luiza Neto Jorge in 'poesia']
*
O RIO ONDE
Rio, mar aconchegado
braço longo de água silenciosa
onde as distâncias se repousam
e repousa também o meu olhar cansado
sem medo, sem angústia
na água que de si mesma se esquece
caminhando, caminhando sempre
para algum mar.
Tapete de Sol,
onde barcos lentos deslizam,
sem pressa de chegar.
Espelho aberto, onde o dia se reflete,
corredor que corre sem correr,
que não se atarda, olhando as margens,
que continua
mesmo quando
não tem vontade de continuar.
[De Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
Olá UJM!
ResponderEliminarO RIO ONDE
Rio, mar aconchegado
braço longo de água silenciosa
onde as distâncias se repousam
e repousa também o meu olhar cansado
sem medo, sem angústia
na água que de si mesma se esquece
caminhando, caminhando sempre
para algum mar.
Tapete de Sol,
onde barcos lentos deslizam,
sem pressa de chegar.
Espelho aberto, onde o dia se reflete,
corredor que corre sem correr,
que não se atarda, olhando as margens,
que continua
mesmo quando
não tem vontade de continuar.
um abraço
Olá, Joaquim,
EliminarMuito obrigada pelo seu rio, mar aconchegado. Lá vai para cima, para correr como um espelho aberto no Ginjal, qual tapete de sol.
lindo.
Cara UJM, belo tema, bela imagem.
ResponderEliminarOs rios do sul, curiosamente, sempre os achei menos selvagens e violentos que os do norte que se degladiam com as margens escarpadas e montanhosas. Sempre achei os rios das planuras do sul, mais lascivos e preguicentos. Talvez esteja errado, mas sempre associei o terreno acidentado, a norte, um autêntico mau tratador das doces águas fluviais, quase um martírio para a sua plenitude e liberdade. Já o mesmo não penso dos pássaros libertinos do sul que entendo devastadores de culturas. Mas, rematarei, quer os rios quer os pássaros do sul, são belos, ternos e dignos de poemas e canções, além doutros laudatórios. Do norte, nada mais direi...sou suspeito.
Muita saúde e vida, quer para si, para os seus, sem esquecer os rios e os pássaros do sul.
Olá dbo,
ResponderEliminarAqui tentei metaforizar os países do norte da Europa, bem 'comportadinhos' mas prepotentes, justiceiros, e os vibrantes países do sul, irrequietos, cheios de vida.
E estava a pensar em rios como os do norte da Europa que atravessam as cidades, muito vagarosos, muito calmos, comparando com o Tejo que nestes dias que sucederam às chuvadas e ventanias vinha carregado de árvores e canas e tijolos e sei lá que mais.
Falando em termos geográficos, concretamente em relação a Portugal, dou-lhe razão. Os rios do norte do país, nos seus percursos acidentados, são bem mais irrequietos que os do sul.
Um abraço e muita saúde e alegria também para si e para os seus!