Havia um poeta. Tinha gatos, tinha afectos. Tinha livros. Escrevia palavras. Transformava músicas e cores em palavras.
Decantava a luz, as ervas, as pernas suaves dos rapazes, as flores, as mãos da mãe - e de tudo nasciam palavras inocentes como crianças.
Olhava a sombra da luz nos muros caiados de branco, olhava o voo das aves, aspirava o cheiro doce da fruta, do calor, da erva alta como uma haste, da glande como uma flor - e escrevia palavras límpidas como um dia de verão.
Esse poeta acompanha-me deste sempre, está agora aqui ao meu lado, silencioso, paciente.
Decantava a luz, as ervas, as pernas suaves dos rapazes, as flores, as mãos da mãe - e de tudo nasciam palavras inocentes como crianças.
Olhava a sombra da luz nos muros caiados de branco, olhava o voo das aves, aspirava o cheiro doce da fruta, do calor, da erva alta como uma haste, da glande como uma flor - e escrevia palavras límpidas como um dia de verão.
Esse poeta acompanha-me deste sempre, está agora aqui ao meu lado, silencioso, paciente.
E há um poeta que escreve sobre esse outro poeta. E que olha com carinho as palavras que nascem de outros poetas, e que acolhe as pinturas e as músicas e as mulheres e o desejo forte - e, depois, os transforma em poemas que contam histórias e soam como uma toada que já existisse antes de nascer.
Está também aqui, esse poeta, irónico, galante.
Está também aqui, esse poeta, irónico, galante.
Das palavras destes e de outros poetas me alimento eu que aqui estou nesta noite quieta e boa depois de ter caminhado rente ao rio, aspirando a maresia e a cor quente das tardes sobre as paredes.
Junto a mim seguia a minha sombra e a sombra daquele cuja vida se misturou com a minha.
Junto a mim seguia a minha sombra e a sombra daquele cuja vida se misturou com a minha.
O afecto impresso nas paredes que o tempo dourou |
Impressos nas paredes douradas, seguíamos, eu pensando em palavras que traduzam o que vejo - os abraços dos casais que se descobrem, os barcos que, lentos, em silêncio, deslizam no rio, o sol que mergulha no meio de chamas, a ponte que parece um rendilhado sobre o horizonte, a fantástica gaivota que se eleva e cruza o espaço como uma deusa alada - ele, ouvindo-me, esperando por mim, uma boa companhia, um permanente abraço.
Afectos e palavras, cor e silêncio, luz e voos livres.
Assim é a minha vida, uma vida leve, habitada pelas palavras que os poetas soltam no espaço e que voam, luminosas, livres, sobre os rios, que voam, cheias de cor e afecto através dos céus, que se aconchegam, bondosas e em silêncio, quando o meu amor me dá a sua mão.
[Abaixo da gaivota que voa como uma deusa, está o poema de Vasco Graça Moura sobre Eugénio e, a seguir, mais uma grande interpretação de Chick Corea, desta vez com Keith Jarrett tocando Mozart]
Gaivota voando sobre o Tejo, com a ponte 25 de Abril em fundo |
sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no
lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos
do silêncio. seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias
que ele havia de dizer por palavras no papel.
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.
era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam
a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia.
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.
['eugénio e os pintores' de Vasco Graça Moura in 'visto da margem sul do rio o porto', uma antologia poética com fotografias de Maria Manuela Graça Moura e aguarelas de António Cruz - um belo livro, vos digo eu]
*
Encontrar,
encontraste Poeta
a luz exacta das palavras
o vento, a brisa lenta
rente
à voz dorida
das sílabas anunciadas.
Em ti
o rigor branco da cal
um olhar eterno de uma Mãe
que nas crianças se prolonga.
Em ti, agora,
o amor liberto da carne
a sombra do tempo que se repousa
na folhagem branda
das árvores que olham o mar.
['A eugénio de Andrade' de Joaquim Castilho no comentário abaixo]
Encontrar,
encontraste Poeta
a luz exacta das palavras
o vento, a brisa lenta
rente
à voz dorida
das sílabas anunciadas.
Em ti
o rigor branco da cal
um olhar eterno de uma Mãe
que nas crianças se prolonga.
Em ti, agora,
o amor liberto da carne
a sombra do tempo que se repousa
na folhagem branda
das árvores que olham o mar.
['A eugénio de Andrade' de Joaquim Castilho no comentário abaixo]
Tinha que ser o Eugénio, mas também me veio à memória recente o "Ofício Diário" de Torcato da Luz.
ResponderEliminarAbraço
eu também sei, e com gatos e liberdade...
ResponderEliminarOlá UJM!
ResponderEliminarA minha homenagem Eugénio de Andrade. Posso?
A EUGÉNIO DE ANDRADE
Encontrar,
encontraste Poeta
a luz exacta das palavras
o vento, a brisa lenta
rente
à voz dorida
das sílabas anunciadas.
Em ti
o rigor branco da cal
um olhar eterno de uma Mãe
que nas crianças se prolonga.
Em ti, agora,
o amor liberto da carne
a sombra do tempo que se repousa
na folhagem branda
das árvores que olham o mar.
um abraço
Olá Joaquim,
EliminarSe pode? Claro que pode. Mais: deve! O poema é lindo e uma bela homenagem a Eugénio.
Nem sei se devo ser eu a agradecer mas, ainda assim, porque sou descarada, apesar de não ter procuração para isso, faço-o em nome de todos quantos amam a poesia de Eugénio: muito obrigada.
E já lá coloquei em cima, no local merecido.
Hoje tive tempo de vir aqui e gostei de a reencontrar, de mão dada com a poesia e o seu amor.
ResponderEliminarUm beijinho