Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

24 abril, 2013

sei de pintores que se inquietavam por pressentirem uma relação entre a cor e a palavra - numa sala cheia de livros, num vão de escada


Havia um poeta. Tinha gatos, tinha afectos. Tinha livros. Escrevia palavras. Transformava músicas e cores em palavras.

Decantava a luz, as ervas, as pernas suaves dos rapazes, as flores, as mãos da mãe - e de tudo nasciam palavras inocentes como crianças.

Olhava a sombra da luz nos muros caiados de branco, olhava o voo das aves, aspirava o cheiro doce da fruta, do calor, da erva alta como uma haste, da glande como uma flor - e escrevia palavras límpidas como um dia de verão.

Esse poeta acompanha-me deste sempre, está agora aqui ao meu lado, silencioso, paciente.

E há um poeta que escreve sobre esse outro poeta. E que olha com carinho as palavras que nascem de outros poetas, e que acolhe as pinturas e as músicas e as mulheres e o desejo forte - e, depois, os transforma em poemas que contam histórias e soam como uma toada que já existisse antes de nascer.

Está também aqui, esse poeta, irónico, galante.

Das palavras destes e de outros poetas me alimento eu que aqui estou nesta noite quieta e boa depois de ter caminhado rente ao rio, aspirando a maresia e a cor quente das tardes sobre as paredes.

Junto a mim seguia a minha sombra e a sombra daquele cuja vida se misturou com a minha.


O afecto impresso nas paredes que o tempo dourou


Impressos nas paredes douradas, seguíamos, eu pensando em palavras que traduzam o que vejo - os abraços dos casais que se descobrem, os barcos que, lentos, em silêncio, deslizam no rio, o sol que mergulha no meio de chamas, a ponte que parece um rendilhado sobre o horizonte, a fantástica gaivota que se eleva e cruza o espaço como uma deusa alada - ele, ouvindo-me, esperando por mim, uma boa companhia, um permanente abraço. 

Afectos e palavras, cor e silêncio, luz e voos livres. 

Assim é a minha vida, uma vida leve, habitada pelas palavras que os poetas soltam no espaço e que voam, luminosas, livres, sobre os rios, que voam, cheias de cor e afecto através dos céus, que se aconchegam, bondosas e em silêncio, quando o meu amor me dá a sua mão.



[Abaixo da gaivota que voa como uma deusa, está o poema de Vasco Graça Moura sobre Eugénio e, a seguir, mais uma grande interpretação de Chick Corea, desta vez com Keith Jarrett tocando Mozart]


Gaivota voando sobre o Tejo, com a ponte 25 de Abril em fundo




                                      sei de pintores que se inquietavam por
                                      pressentirem uma relação entre a cor e a palavra.
                                      era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
                                      a luz entardecia, muita gente se afadigava no

                                      lento regresso a casa, as aves recolhiam e
                                      eles sabiam que havia alguém para falar
                                      das águas e das luas e da sombra
                                      das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos

                                      do silêncio. seria à mesa do café, numa
                                      sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
                                      do atelier que lhe propunham essa
                                      revisita das fontes, das perturbadas melancolias

                                      que ele havia de dizer por palavras no papel.
                                      mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
                                      justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
                                      a sua fome do real nas artes da pintura.

                                      era o cruzar das solidões comovidas: tudo
                                      seria reescrito, portuense, partilhado
                                      com uma densa, irisada exactidão, lá onde
                                      umas pétalas da música começam

                                      a partir de uma cor ou de um murmúrio,
                                      de um rosto ou de uma nuvem,
                                      de uma explosão do sol, de uma agonia.
                                      era nos anos sessenta, era em s. lázaro.




['eugénio e os pintores' de Vasco Graça Moura in 'visto da margem sul do rio o porto', uma antologia poética com fotografias de Maria Manuela Graça Moura e aguarelas de António Cruz - um belo livro, vos digo eu]

*


Encontrar,
encontraste Poeta
a luz exacta das palavras
o vento, a brisa lenta
rente
à voz dorida
das sílabas anunciadas.
Em ti
o rigor branco da cal
um olhar eterno de uma Mãe
que nas crianças se prolonga.
Em ti, agora,
o amor liberto da carne
a sombra do tempo que se repousa
na folhagem branda
das árvores que olham o mar.


['A eugénio de Andrade' de Joaquim Castilho no comentário abaixo]


5 comentários:

  1. Tinha que ser o Eugénio, mas também me veio à memória recente o "Ofício Diário" de Torcato da Luz.
    Abraço

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  2. eu também sei, e com gatos e liberdade...

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  3. Olá UJM!

    A minha homenagem Eugénio de Andrade. Posso?

    A EUGÉNIO DE ANDRADE


    Encontrar,
    encontraste Poeta
    a luz exacta das palavras
    o vento, a brisa lenta
    rente
    à voz dorida
    das sílabas anunciadas.
    Em ti
    o rigor branco da cal
    um olhar eterno de uma Mãe
    que nas crianças se prolonga.
    Em ti, agora,
    o amor liberto da carne
    a sombra do tempo que se repousa
    na folhagem branda
    das árvores que olham o mar.

    um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      Se pode? Claro que pode. Mais: deve! O poema é lindo e uma bela homenagem a Eugénio.

      Nem sei se devo ser eu a agradecer mas, ainda assim, porque sou descarada, apesar de não ter procuração para isso, faço-o em nome de todos quantos amam a poesia de Eugénio: muito obrigada.

      E já lá coloquei em cima, no local merecido.

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  4. Hoje tive tempo de vir aqui e gostei de a reencontrar, de mão dada com a poesia e o seu amor.
    Um beijinho

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