Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 abril, 2013

Uma frase começa antes da frase como um rio começa antes de um rio


Antes de tudo era o quê? Um imenso vazio, negro, espesso, silencioso? A ausência do verbo? A solidão mais absoluta?

Ou nada disso? A mais bela melodia? O som puro da ausência de qualquer ruído? A luz mais límpida da infinita transparência? A mais total liberdade? O tudo por nascer? Todos os caminhos por descobrir?

E, quando começou, como foi? O sobressalto do erro? O medo do desconhecido? A indecisão perante o imenso labirinto? 

E em que ponto estamos agora? É isto ainda o começo? Ainda estamos a cometer os tropeços da infância? Ou estamos a caminhar, cansados e descrentes, para o inexorável fim?

Não sei. Nada sei. Cada vez menos sei.

Que palavras são estas, as que agora escrevo? Palavras mil vezes ditas, sem respiração, velhas, sem vigor? Ou palavras novas, que descubro, feliz, à medida que aqui, à minha frente se desenham? Palavras que caminham sozinhas, livres, sem dono? E que um dia a mim regressarão como meninas a uma mãe?

E eu própria? Estou percorrendo os caminhos mil vezes trilhados por tantos outros antes de mim, que por aqui passam e depois desaparecem sem deixar rasto? Ou já vivi antes, não eu mas outros eus que passam testemunho de uns para outros, tal como eu passei aos meus filhos e estes aos seus filhos e assim o sangue vai, quente e fértil, deixando um invisível e silencioso rasto de saudade e vida?

Nada sei. Uma frase antes da frase, um rio antes de um rio, um começo antes do começo, Deus antes de Deus, diz o Poeta. E eu, aqui, junto a vós, recolho-me e junto as mãos. E espero sem saber o que espero.



[Abaixo do cravo vermelho abandonado junto ao Tejo que corre, mais um poema de Manuel Alegre. Abaixo dele um momento de limpidez pelas mãos de Chick Corea]


No Ginjal, cravo abandonado numa mesa junto ao Tejo neste 25 de Abril



                                                        Uma frase começa antes da frase
                                                        como um rio começa antes de um rio.
                                                        Uma frase começa onde tropeço
                                                        no amor que antes de ser já era adeus
                                                        começa antes do fogo e antes do frio
                                                        como princípio inverso ou fim do avesso
                                                        como começo antes do começo
                                                        ou talvez como Deus antes de Deus.



                                                        ['Como um rio' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']

     

1 comentário:


  1. 'No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus' É reconfortante pensar e acreditar de forma tão simples, repousar das nossas preocupações num ente anteriormente estabelecido. Mas a noção da existência do caos não nos larga e colocar questões para as quais não existem respostas fáceis faz parte da nossa maneira de ser, da nossa inquietação espiritual. Pobres de nós se perecer em nós esta capacidade de perseguir a verdade...qualquer que ela seja.

    Belo texto, UJM.

    Bjs

    Olinda

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