Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 janeiro, 2013

Não há gesto nem arma que me guarde


Dizias que os meus olhos eram a tua perdição. Olhos verdes são traição, alertava-te eu que sou leal mesmo quando anuncio traições. Mas não me ouvias. Que conhecias as minhas emoções pelos meus olhos, e eu dizia-te que não te fiasses, que sou míope e os olhos das mulheres míopes enganam muito. Dizias que pelos meus olhos conseguias perceber se eu estava longe, ou se eu te queria perto, se te desejava ou não. Olhos verdes são traição, mil vezes te avisei.

Olhos de gata, andar de gata, fugidia e arisca, terna e dengosa como uma gata. Vem, minha gata. E eu ia mas que não contasses sempre com isso, ia mas por pouco tempo, apenas para que tentasses ver o meu coração a partir dos meus olhos. Não me ouvias. Olhos verdes são cruéis como punhais, lembrava-te. Mas não me ouvias.

Os teus olhos são verdes mas ardem como fogo, e eu ria com as tuas palavras. Entusiasmado, fazias variações, fico em fogo com o verde dos teus olhos, e eu ria. Sente as labaredas no meu peito, sente, minha gata. E eu dizia miau.

Os teus olhos cheios de água, húmidos de desejo, e eu aqui à espera que me queiras, lamentavas-te. E eu dizia que não era bem assim.

Gosto tanto dos teus olhos, são um oásis verde no meio do deserto que é a minha vida, e tu não matas a minha sede. E eu ria e avisava que, com tanta conversa fiada, ainda me assanhava.

Quase vejo o fundo do mar no fundo do teu profundo olhar, e tu não me deixas mergulhar, suspiravas. Não deixo?! Mas quem é que disse?!, perguntava eu, já fervendo.

Gata, gatinha linda, gatinha de olhos de fogo, porque não apagas o fogo que me devora?, queixoso. Ai, ai, ai...! Sempre essa conversa que já me irrita!, eu já sem paciência.

Até que, farta, completamente farta, te disse que se és lento no gatilho, que culpa tenho eu disso? Que se, em vez de mergulhares ou fazeres o que apregoas, preferes ficar para aí a inventar palavreado da treta, que culpa tenho eu disso?

E, altaneira, pêlo eriçado, afastei-me: gata assanhada, ora pois. E, de longe, ainda miei, e não venhas dizer que não te avisei! Gatos competentes é o que não falta.



[Nem mais. A seguir à gata vadia do Ginjal, um dos poemas-história de David Mourão-Ferreira e, logo abaixo, mais uma grande interpretação de Glenn Gould, desta vez com Prokofiev. ]


Numa praia do Ginjal, numa manhã muito fria




                                      É já o fogo? Apenas o rastilho?
                                      São dois olhos de gata, ou de regato...
                                      De qualquer modo, um verde pouco exacto.
                                      E de fogo, ou de fonte, inquieto, o brilho.

                                      Mas porque me inquieto e porque brilho
                                      de terror ante o seu verde retrato?
                                      Em que fogo, afogado, me debato?
                                      Porque me treme o dedo no gatilho?

                                      Agora é tarde. Agora é mais que tarde.
                                      Não há gesto, nem arma que me guarde;
                                      em deserto nenhum me abrigarei.

                                      Água? Fogo? Não sei o que me invade....
                                      Onde estavas, revólver da vontade,
                                      quando, ao vê-la, de mim não disparei?



                                      ['Revólver' de David Mourão-Ferreira in A Arte de Amar]

*


Palavras de fogo e água
não me atrevo
elementos da natureza oiço dizer
num deles o perigo e a beleza me atormentam
no outro
afogo o primeiro até enlouquecer 


[Poema de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]

*

Teus olhos
na raiz pura do Olhar
mensageiros indiscretos
dos teus silêncios.
Olhar que fala
que grita,
que chora em ti.
Tu mesmo,
mesmo sem ti.




['Mulher-gata ou gata-mulher?' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

Glenn Gould interpreta Serge Prokofiev - Sonata para Piano No.7, Op.83


28 janeiro, 2013

É belo o tempo de Inverno, no silêncio


Nestes dias de inverno, cai o céu, cai desbragadamente, desaba toda a água que os deuses guardavam, ou agitam-se os ares em feroz vendaval, há uma qualquer vingança que se cumpre. Sem piedade, sem critério. As árvores são arrancadas, o rio engrossa, perde as boas maneiras, arrasta troncos, arranca as canas, arranca flores, frutos, arrasta telhas, restos de tudo o que encontra pelo caminho, as vidas mais frágeis. Em dias assim, o rio torna-se medonho, pesado, escuro, ruge como um monstro acossado - e nós aqui, onde o rio avança para o grande mar, assistimos, indefesos, à inclemência dos elementos da natureza.

Mas depois, de repente, vem o sol. E o rio fica um espelho, um chão de luz. Traz ainda folhas, frutas vindas sabe-se lá de onde. Mas tudo fica calmo. Quem veja assim o rio num dia de sol brando não diria o que se passou horas antes. Fingimento da natureza? Não. Desfez-de mágoas, de depressões, arrancou de dentro de si todos os vendavais que lá guardava. E, libertando-se de todas as cargas, eis que fica leve, disponível para a beleza suave.

As gaivotas, então, descem dos abrigos onde antes se refugiavam, descem dos ares onde antes soltavam gritos de aflição, e pousam, suaves bailarinas, neste lago. Eis que, quais princesas luminosas, se passeiam, felizes, tranquilas. Chegam, elegantes, pousam com gentileza e encantam-se com a brandura deste inverno que sabe também ser tão doce.

E o silêncio é leve, cheio de luz, e acolhe-nos como uma mãe perfumada e quente. É Janeiro, a vida prepara-se para renascer e, com um tempo assim, tão suave, já ninguém se lembra do abraço de morte que, pouco antes, derrubou as vidas mais frágeis, as mais desatentas árvores.



[Abaixo do belo poema de Inês Lourenço, temos de novo Glenn Gould, agora com Bach, sempre um grande intérprete]


Gaivotas no Tejo, junto ao Ginjal



                                          É belo o tempo de Inverno,
                                          no silêncio, a lenha húmida
                                          das maternas canções da chuva.
                                          Na lentidão de Janeiro
                                          fica mais longe a morte. As aves
                                          habitam nos beirais
                                          como príncipes destronados.


                                          ['Ária' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura', uma antologia]

*



Gaivotas 
amigas do vento
ensinam o olhar
a olhar
a memória
e o pensamento.




['Haiku, talvez a propósito' ...:) de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]

*


Árvore, cujo pomo, belo e brando,
natureza de leite e sangue pinta,
onde a pureza, de vergonha tinta,
está virgíneas faces imitando;

nunca da ira e do vento, que arrancando
os troncos vão, o teu injúria sinta;
nem por malícia de ar te seja extinta
a cor, que está teu fruito debuxando.

Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo
a meu contentamento, e favoreces
com teu suave cheiro minha glória,

se não te celebrar como mereces,
cantando-te, sequer farei contigo
doce, nos casos tristes, a memória.


Luís Vaz de Camões



[enviado por Ana de Sá em comentário aqui abaixo]

O meu agradecimento a todas as pessoas que votaram no Ginjal!


O meu Ginjal e Lisboa ficou em 4º lugar mas podia ter ficado em 40º que eu vos agradeceria na mesma. Cada voto foi um gesto de generosidade.

Muito obrigada!

Glenn Gould interpreta Johann Sebastian Bach - Partita no.6 in E minor, BWV830. I. Toccata II. Allemande


27 janeiro, 2013

Quero. (Tarde demais)



Não olhes. Está aqui um barco, mesmo ao pé de nós.

         - E que mal tem?

Tem que está lá gente e eu não quero que te vejam.

          - E que mal tem que me vejam?

Podem querer-te também.

          - Também...!? Também como quem...?

Também como os velhos lobos do mar, como os deuses que saem do fundo do mar voando sobre cavalos azuis...

           - Ah, meu poeta, e eu que pensava que também como tu... Tu não me queres?

... Não... Eu não te quero, eu quero-te de uma maneira que é mais do que querer-te.

            - Ah, tão bonito. Diz-me o que é querer mais do que querer. 

Não, não digo. Mostro. Fecha os olhos. Sente. Sente como que te quero.

          - Ah mas eu queria ouvir as tuas palavras, as tuas palavras belas como as grandes asas dos cavalos azuis.

Não, tarde demais para palavras. Sente, sente apenas.

          - ....

Pois, não digas nada. Nada. Sente, sente. Sentes? Sentes como te quero tanto, tanto...?

           - ...



[Abaixo do casal de enamorados, um poema falado de José Luís Peixoto e, logo a seguir, abre-se um novo ciclo, o dos Grandes Intérpretes. E é uma abertura com um dos maiores, Glenn Gould, um grande intérprete de piano.]


No Ginjal, rente ao Tejo, de frente para Lisboa, o Padrão das Descobertas em fundo


                                          Queres? (No ar, a interrogação vibra como
                                          uma onda invisível.)

                                          Queres? (Pelo silêncio, não sei quem és, não
                                          sei a razão em mim que te deseja.)

                                          Queres? (É quase de manhã e poderíamos
                                           esquecer tudo, fazer as malas, dormir
                                           finalmente.)

                                           Queres? (Uma porta talvez aberta para talvez
                                           um abismo ou um deus.)

                                           Quero. (Já não podemos fugir aos nossos olhos
                                           inimagináveis, inalcançável é o cansaço.)

                                           Quero. (A luz do quarto continua acesa sobre
                                            a luz da manhã, tornarmo-nos artificiais.)

                                            Quero. (Os nossos corpos, claro, sempre os
                                            nossos corpos, sempre apenas os nossos únicos
                                            corpos.)

                                            Quero. (Tarde demais.)



                                            [Poema de José Luís Peixoto in 'Gaveta de Papéis']

Glenn Gould interpreta Beethoven - Sonata No.17 - The Tempest - part 3 of 3


Abre-se hoje um novo ciclo. Depois dos compositores, depois do intervalo animado por momentos felizes, chegamos agora aos Grandes Intérpretes. Com o apoio generoso de um Leitor, a quem daqui muito sinceramente agradeço, começo da melhor maneira, com Glenn Gould.


24 janeiro, 2013

O seu desejo é o desejo de tornar habitável o deserto


E se um dia atravessasses a beira do velho casario, andasses pelos muros, roçasses a beira do caminho com o teu desamor, se desperdiçasses a carícia da aragem, e se, apenas, apenas, caminhasses como quem caminha para um destino que não existe?

                    A humidade fresca e luminosa que sobe do rio rasga as lembranças daquele que sonha sozinho e que desenha palavras num pensamento que abandona a beira do rio.

                    Não é um deserto, não é, mas ele não vê quem mergulhe as mãos no calor das suas entranhas, quem sopre segredos envoltos em carícias. Não é um deserto mas é como se fosse. 

                   Estivesse por aqui aquela que um dia respirou o ar que ele respirou, dissesse as palavras que ele, em silêncio, pensou, procurasse o corpo que um dia a visitou - e ele pousaria as defesas, entregaria o desamor, aceitaria os seios que viessem pousar nas suas mãos. 

Mas, pensa, e se um dia o desejo que sobe no interior do teu corpo exige que recolhas as reservas e busques aquela que um dia desapareceu e que espera que, um dia, a chames?

... E se um dia...? E se esse dia for hoje? 

Pensa nisso.

Eu estou à espera.



[Abaixo de mais um poema de António Ramos Rosa, um novo momento feliz e que feliz é: Martinho da Vila encanta Katia Guerreiro]


Praias do Ginjal em dia de acalmia no Tejo




                                      Talvez seja o momento de.
                                      Mesmo sem esperança. E ele escreve:
                                      nenhum impulso para ti
                                      neste espaço deserto.

                                      Ele perscruta entre as pedras e as sombras.
                                      Nada vê. Ignora. Olha.
                                      Que traços são estes,
                                      qual a origem destas palavras nulas?

                                       Ele escreve. O seu desejo é o desejo
                                       de tornar habitável o deserto.


                                       ['O momento de' de António Ramos Rosa in Antologia Poética]

*


Teu peito
cofre de afectos
de medos, de sonhos,
de memórias,
escondido, enterrado
sob as tuas colinas brandas
onde é doce adormecer.
E eu
Que me embalo 
Adormecido
No silêncio do teu carinho
No aconchego manso
Do teu regaço
Tu que me ofereces 
A tua sombra
E te repousas 
No meu cansaço.
E eu 
Em ti.



[Poema de Joaquim Castilho em comentário aqui baixo]

Katia Guerreiro e Martinho da Vila interpretam 'Dar e Receber'


23 janeiro, 2013

Tempo de ir e voltar, clara suspeita da luz


Frio, muito frio e vento, um vento muito frio. Chovia e estava muito frio quando esta noite passeei na beira do rio. Quase ninguém neste local de cacilheiros que chegam e partem. Parece que as pessoas, em dias assim, ou nestes tempos de chumbo, não se deslocam. Provavelmente ficam em casa, fechadas, fechadas em salas escuras e frias, casas onde uma televisão desfia concursos e novelas para entreter o presente que deixou de caminhar em direcção ao futuro. 

Atravesso o local das paragens de autocarro e quase não há autocarros a partirem e a chegarem, nem gente abrigada. Quase não há movimento. Talvez seja do frio ou talvez seja porque os mais novos voaram para outras paisagens e os mais velhos têm frio e já não saem de casa. Um dia talvez já nem saiam da cama.

A chuva caía tormentosa, o vento caía sobre mim com o peso da chuva e os navios rangiam e batiam no cais. Há qualquer coisa de pungente nestes sons doloridos que atravessam o silêncio e o vento. Estes sons dramáticos fazem-nos desejar uma trégua, uma brisa suave e inocente.

Vinha para casa, debaixo da invernia, a pensar que as ondas sobressaltadas esmagam a suave corrente do rio, destroem conchas, destroem o reflexo das estrelas na superfície negra, que não há misericórdia em noites assim.

É em momentos como estes que os cavaleiros do fundo do mar atravessam as marés, que a lua se oculta, que todas as luzes se apagam para que eles, cavaleiros negros e vitoriosos, possam passar em resfolegante tropel pelas ruas tomando todas as mulheres que encontram pelo caminho. E quando mais tarde regressam ao mar, saciados, transportando as vestes das mulheres que deixaram nuas, por terra, sabe-se que o tempo de acalmia está para breve pois, quem olhe com atenção, verá que o seu rasto anuncia uma clara suspeita de luz.



[Abaixo da fotografia de Lisboa e do Tejo, um belo poema de Frederico Lourenço e, logo abaixo, um novo momento feliz, Bernardo Sassetti com Carlos do Carmo. Esperemos, pois, pelo doce maio.]


No Ginjal, na beira do Tejo, num momento de acalmia no fim de semana passado
Lisboa do outro lado envolta numa clara suspeita de luz



                                             Quem não diria que hoje no céu se rasgou a toada
                                             surda da onda no mar? Chuva em bátegas cai,
                                             chuvas marinhas desabam no cume mais alto da serra,
                                             píncaro cego de luz - vejo oceanos sem fim!
                                             Veio o outono e ouvi como nunca o pétreo canto:
                                             mó de moinho no mar; pérola, concha também.
                                             Caem relâmpagos, chuvas na ondulação das montanhas:
                                             tempo de ir e voltar, clara suspeita da luz.


['Clara suspeita da luz.5' de Frederico Lourenço in 'Clara suspeita da luz']

Carlos do Carmo e Bernardo Sassetti interpretam Cantigas do Maio


22 janeiro, 2013

eu permaneço aqui de guarda à água lisa


Outros vão. Tu foste. Eu também podia ter ido. Talvez até contigo. Mas não sou de ir em fantasias, não sou de largos voos. Queria, mas não sou. Ou melhor: finjo que sou. Mas faltam-me as largas asas, falta-me a ambição, o destemor, a loucura. Digo que sim, que tenho tudo isso, mas tu sabes que não é verdade.

Era verão, o sol estava manso, dourava-nos a pele e, pelos teus silêncios, eu percebia que estavas prestes a partir. O mundo chamava por ti. Se ficasses ter-me-ias apenas a mim. Eu estaria aqui, junto a esta praia na qual o rio se entretém, estaria como sempre estou: pronta e disponível para te amar. Mas isso nunca foi suficiente para ti e eu aceito. Quem quer ir não deve ser convencido a ficar. Quem quer ir, só indo poderá um dia voltar; se não for, nunca cá estará.

Não te pedi, pois, que ficasses; apenas te pedi que não te despedisses. E, por isso, um certo dia abriste as asas e, sem palavras, partiste. Não chamei por ti. Fiquei em silêncio olhando o rasto de saudade que se desenhava no imenso espaço que cruzavas.

Agora está muito frio, escurece muito cedo, e eu não te tenho para me poder encostar a ti, para me beijares a curva do pescoço ou a prega entre os seios, para me segurares as mãos desoladas, para impedires que o frio cubra a minha pele. Mas não olho o rio nem o céu tentando descobrir-te na intangível linha do horizonte, nem as minhas palavras constroem preces por ti. Não. Espero, apenas espero, tranquilamente. Guardo as margens do rio. 

Guardo esta água branda que te trará até mim, eu sei que sim, que um dia voltarás para mim. Nesse dia nada te direi, apenas te beijarei, meu amor, meu amor. Guardo, pois, estas frias águas nas quais os dois mergulharemos nesse dia, nus, noite dentro, seres do fundo do mar, amantes perfeitos.



[Abaixo de mais um poema perfeito de Vasco Graça Moura, três momentos felizes, três grandes interpretações de uma das canções perfeitas de José Afonso]


Gaivota em terra, pensando nas suas decisões - e o Tejo, gelado, ali ao lado


                                   as aves migram em setembro.
                                   nem vou com elas, nem
                                   guardo delas
                                   a mínima memória.

                                   escurece mais cedo,
                                   o tempo não se rouba,
                                   escoa-se como o frio
                                   por uma camisola

                                   até dentro da pele.
                                   as aves migram
                                   calmamemte. eu
                                   permaneço aqui

                                  de guarda à água lisa que viu passar seus bandos
                                  e em que hás-de debruçar-te


['XXIV poema de nó cego, o regresso' de Vasco Graça Moura in 'Poesia Reunida I']

|||



Sentado estás
no meu silêncio
presente
na estranha distância
de não te ter
Olhas-me
Imagem
tenho-te em mim
porque tu
tu que partiste
me habitas.



[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

José Afonso e Cristina Branco e Janita Salomé, em separado, interpretam 'Redondo Vocábulo'


Uma das composições de Zeca Afonso de que mais gosto

Três interpretações

21 janeiro, 2013

Eu gostava de poder dizer que entrei no teu corpo como um pássaro


Tempos houve em que sorrias só de pensares que eu ia passar junto à tua janela. E sorrias quando te olhava, e o teu sorriso guardava segredos, malícias, cumplicidades que só eu percebia. E, quando eu te falava, tu sorrias, o coração afagado, mil palavras prestes a depositarem-se no meu colo. Eu amava-te tanto, de forma tão carinhosa, que tudo o que eu dissesse ou fizesse te enternecia. Sentias-te, então, muito amado. Um homem muito feliz, realizado no seu amor correspondido.

Adormecias a pensar em mim, dizias-me, e eu sabia que era verdade porque eu também adormecia a pensar em ti, adormecia a sorrir, enlevada, mulher muito amada.

Acordavas ansiando por estar comigo, vestias-te a pensar em mim, a minha melhor roupinha, dizias a brincar, e perfumavas-te sabendo que eu gostava de ficar com aquele perfume nas minhas mãos, no meu corpo. Sei que era verdade porque comigo acontecia o mesmo. 

Eu não queria saber quais as ruínas que tinha que atravessar para chegar até ti porque tu eras o mundo inteiro, um mundo novo. Nem tu querias saber dos caminhos, dos labirintos que te rodeavam porque o único que te interessava era simples e curto, era o que te levava até mim.

Atravessavas o rio, regressavas salgado e feliz e eu sei que era por mim que rasgavas as águas e içavas as velas.

E eu recebia-te feliz, ouvia os teus feitos de homem do mar, e, outras vezes, ouvia os teus feitos de homem da terra.

Eu vivia, então, dentro de ti e tu vivias dentro de mim.

Mas nunca fizemos promessas e sempre soubemos que todos os dias tinham no fundo de si a semente da separação. Sabíamos que nunca os deuses acordariam ao nosso lado, sabíamos que frágeis e efémeras eram as nossas horas de felicidade.

O nosso coração é agora lugar de exílio e a tua voz já não me visita nem o meu sorriso te afaga o cabelo.

Mas não faz mal: são doces, tão doces, as palavras que ambos usamos para recordar esses dias cheios de luz, cheios de amor. São, não são?


[Abaixo do pássaro que voa, mais um belo poema de Alice Vieira. Logo a seguir, um novo momento feliz: Os Azeitonas com Rui Veloso. O prometido é devido - para quem faz ou acredita em promessas.]


No Jardim do Ginjal, mesmo rente ao Tejo,
o meu amigo pássaro preto de bico amarelo levanta voo, vai à sua vida
- Assim é a vida dos pássaros -



                                               eu gostava de poder dizer
                                               que entrei no teu corpo como um pássaro
                                               espreitando de invisíveis ruínas
                                               e que o som da tua voz bastava
                                               para me salvar

                                               mas de nada serve inventar palavras
                                               quando as palavras que inventamos
                                               não passam de frágeis lugares de exílio
                                               dos gestos inventados fora de horas
                                               delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
                                               de que jurámos ressuscitar um dia

                                               — quando os deuses se lembrassem
                                               de acordar ao nosso lado



[Poema, 'Amor e outros crimes em vias de perdão, 2' de Alice Vieira in 'Dois Corpos tombando na água']



Os Azeitonas e Rui Veloso interpretam 'O prometido é devido'


O 'Ginjal e Lisboa' passou à 2ª fase na escolha do melhor blogue na categoria de Língua Portuguesa, no concurso promovido pelo blogue Aventar



Já o referi no Um Jeito Manso mas, para os que vêm por estas bandas e não passam por lá, escrevo também aqui.

Começo, obviamente por me dirigir a todos quantos me fizeram chegar até aqui: agradeço-vos  muito. 

Caso queiram continuar a apostar em mim, as votações estão de novo abertas, agora para escolher o melhor blogue em cada categoria.




CONCURSO BLOGS DO ANO 2012
promovido pelo AVENTAR



Este blogue está na categoria de Língua Portuguesa e as votações (uma vez por dia, dado que há controlo por IP) são feitas aqui, no blogue Aventar que promove este concurso.

Obrigada!

*

Se descerem um pouco mais, encontrarão o texto, a fotografia, o poema e, a seguir, a música, ou seja, a estrutura habitual deste blogue. Isto foi apenas um aparte.

20 janeiro, 2013

Antes de um lugar há o seu nome


Que lugar é este que se alojou no meu coração? 

Para este lugar vou com o meu amor, vou sempre com o meu amor. 

Muitos caminhos percorremos antes, antes de aqui chegarmos. Descobrimo-nos no meio de inflamada paixão, escolhemos um ninho junto ao céu onde nos espantávamos com a nossa imensa sorte por podermos lavar os olhos num rio largo, amplo, com uma baía mansa, muitas cidades a ladear o rio. E, de lá, abraçados, víamos as trovoadas e os raios que rasgavam os céus, e o sol que se punha em chamas nas tardes de calor, e a chuva e o vento inclemente, e as gaivotas de largas asas. A vista era a toda a volta, o espaço era imenso, imenso. E nós, amigos e amantes, estávamos aquietados no nosso ninho, com as nossas crias, e não nos lembrávamos de percorrer caminhos desabrigados junto a ruínas.

Não, nessa altura frequentávamos jardins e parques, praias, museus, e caminhos convencionais.

Tínhamos uma cadela que era da nossa família, uma menina muito doce, e, em conjunto, fazíamos a nossa viagem feliz, venturosa.

Até que um dia, já éramos de novo apenas os dois no nosso amado ninho, descobrimos que os nossos caminhos iam dar a este lugar mágico. Um refúgio desabrigado. Um rio já perto do mar, casas em ruína, pescadores à linha, gatos vadios, gaivotas livres, barcos à vela, uma maresia fresca, uma neblina por vezes doce, um vento por vezes rude, um frio tantas vezes cortante, um céu que não acaba, a cidade que amamos do outro lado. E nós ali sempre juntos. Vamos e vimos, e sempre juntos. Este é um lugar que se desenha dentro dos nossos corações, que se alojou nos nossos corações.



[Abaixo do vigésimo poema de Maria do Rosário Pedreira, Poetisa com lugar cativo no Ginjal, temos um novo momento feliz, desta vez Ana Moura e Pedro Abrunhosa. Eu não sei quem te perdeu.]


Ruínas no Ginjal, vistos através de um buraco que, de novo,
apareceu aberto num paredão rente ao caminho


                                                  Antes de um lugar há o seu nome. E ainda

                                                  a viagem até ele, que é um outro lugar
                                                  mais descontínuo e inominável.

                                                  Lembro-me

                                                 do quadriculado verde das colinas,
                                                 do sol entretido pelos telhados ao longe,
                                                 dos rebanhos empurrados nos carreiros,
                                                 de um cão pequeno que se atreveu à estrada.

                                                 Íamos ou vínhamos?


[Poema de Maria do Rosário Pedreira in 'A Casa e o Cheiro dos Livros')

*


Aconteceu 
um outro acontecer
não em outro
mas naquele lugar
o lento despertar 
de um estranho segredo.
Um rumor de selva
que se adivinha
rajadas de vento brando,
barcos 
em mãos de desejo.
E o olhar de água
como que desfeito
longe,
mesmo muito longe, 
felizmente longe
de qualquer razão.



['Terá sido assim?' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

*


Não sei onde queria estar hoje segunda feira
talvez pisando a neve que enfeita as ruas de Paris
ou escrevendo um poema num quadrado que se chama sempre comentário
tricotando com agulhas grossas um cachecol
(sim de lã)
talvez ensaiando o queijo fresco que a minha filha sabe fazer e me ensinou
ou então
rabiscando o desenho do meu modesto recanto de Verão
nos "mares do Sul"

tédio, mau humor
irritação de não saber porquê
a cabeça cheia de sonhos e projectos
e o corpo(o "raio" do corpo)
indolente expectante aparvalhado
mastigando devagar uma maçã

Que raiva esta
perder assim ingloriamente
um dia do precioso calendário
irritante desperdício
ou repouso necessário?

Quem sabe...talvez amanhã seja diferente.



['"Dia de chega para lá' de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]

Ana Moura e Pedro Abrunhosa interpretam 'Eu não sei quem te perdeu'


17 janeiro, 2013

E mesmo que me mostres, da rosa a cabeça entontecida, do vinho, o delírio


Há muito tempo, eu já era uma menina que amava o mar. Corria sobre as rochas, entrava nas grutas, escondia-me nos recantos onde a areia se mantinha molhada e o ar era sempre fresco, passava a mão pela pedra molhada, aveludada, coberta de limos verdes, macios, apanhava mexilhões, saltava por entre as poças de água, mergulhava as mãos nas covas das rochas onde a água do mar ficava retida, sempre com medo que algum caranguejo me mordesse.

Quando eu era muito pequena e tinha cabelos muito compridos (que, quando ia para a praia, a minha mãe apanhava em longas tranças), os meus pais escolhiam um recanto entre as rochas, com sombras, e, sobretudo, onde não houvesse ninguém. Descíamos da estrada para lá pelos rochedos, escadas escavadas na pedra - e eu acho que é desses tempos que me veio o medo pelas alturas, de vez em quando ainda sonho que ando em sítios desprotegidos, muito altos - e passávamos lá o dia. Abrigávamo-nos do sol junto às rochas, ajustávamos o abrigo em função das marés. 

Estávamos mesmo junto à água muito límpida e eu entrava e saía do mar, sem medo, feliz por poder brincar ali onde passavam pequenos cardumes de ínfimos peixes, feliz por nadar e chapinhar num mar que era só meu.

Os meus pais chamavam-me, que eu não saltasse das rochas para a água, que não subisse às rochas muito altas, que não fosse para longe. Mas a minha liberdade era total e o mundo, para mim, era sempre um lugar maravilhoso.

Uma vez apareceu um casal inglês com uma menina da minha idade, muito branquinha, muito lourinha, o cabelo curtinho, tão clarinho. E tinha um fato de banho com folhinho em baixo, muito parecido com o meu. Fui brincar com a menina. Os meus pais eram muito novos e os dela muito velhos. O senhor inglês e a sua simpática mulher admiravam-se com a minha familiaridade com o mar, eu mergulhava, sempre gostei muito de mergulhar, e admiravam-se também com a minha liberdade, era uma pequena menina muito livre, muito alegre. No fim, os meus pais e os dela trocaram moradas. Ela chamava-se Jill e, ao princípio com alguma dificuldade pois o meu inglês ainda era limitado e com facilidade depois, trocámos cartas até quase ao fim da nossa adolescência. Os envelopes eram de papel fininho debruados com uma cercadura às risquinhas encarnadas e azul, porque as cartas iam de avião.

Por altura dos nossos treze, catorze, quinze anos, já era eu que ficava muito admirada com a liberdade dela. 

Penso que foi o contacto tão próximo com essa menina também muito livre - que vivia tão longe de mim, e que me deixava admirada com o que me contava, que me falava com naturalidade da sua precoce perda da virgindade, que me falava das festas de fim de semana já um pouco regadas a vinho e a sexo - que também fez com que eu crescesse sabendo que o horizonte é uma linha imaginária que fica muito, muito distante. 

Talvez também por isso nunca me tenha sentido prisioneira. Nunca em torno de mim se fecharam as fronteiras. 

Eu era, sempre fui, ainda sou, acho que sempre serei, uma menina do mar. E, por isso, por muita cidade que eu pise, por muito que a terra chame por mim, por muita gente que me rodeie, eu sei que é o mar, o silêncio, o mistério do fundo do mar que chama por mim. É de lá que eu vim, do fundo do mar.

Talvez parte de mim a ele volte um dia *.


[Abaixo da fotografia, um poema de uma Poetisa que aqui vem pela primeira vez, Maria Andresen, filha de Sophia. Logo abaixo, um dos momentos mais felizes de que há memória, Maria Bethânia e Rita Lee.

PS1: A praia que acima refiro é a Figueirinha ou Galapos

PS2: * Daqui por muito tempo, espero]


Uma Menina no Mar numa das praias do Ginjal
(a fotografia está com as cores saturadas para não se distinguir a cara da menina
e reforço o que está escrito noutros locais do blogue:
caso me escrevam a solicitar que retire a fotografia, fá-lo-ei de imediato)



                                                   E mesmo que me mostres, da rosa
                                                   a cabeça entontecida, do vinho,
                                                   o delírio, o passo vacilante, do fogo,
                                                   a fúria, a intrepidez e me ensines

                                                   como se barra esse poder ilimitado
                                                   E que, pela carne me chamem a vastidão
                                                   da terra e a truculência do mundo
                                                   O meu caminho é para trás e conduz-te

                                                   para o fundo onde o ventre da impaciente
                                                   Rainha nos espera


                                                   [A "Menina do Mar" de Maria Andresen in Livro das Passagens]

*



Vieste de um lugar bem distante.
Trazias paisagens no olhar,
cheiro da urze, no cabelo ondulante.
Vieste, para conhecer o mar.

A leveza breve do andar.
A suavidade do gesto, o respirar.
Fizeram-me por momentos sonhar,
quando caminhavas junto ao mar.

Encantou-me a luz do sol, no teu sorriso.
Quando me perguntaste onde ia dar,
aquele mar verde, brando e liso.
E eu, respondi, que ao teu olhar.

Encantou-me a delicadeza do teu colo,
quando te sentaste ao meu lado.
E, tirando o casaco a tiracolo.
Sobressaiu teu peito encastelado.

Dissemos coisas belas um ao outro.
Segredaste-me desejos de viajar.
Revelaste-me que és guiada por um astro.
E que te reges pela força desse mar.

E eu, senti poder voar.
Segurando a tua mão junto a mim.
Senti-me ir contigo a esse lugar.
Percorrendo esse mar que não tem fim.


['Tu e o Mar' de Bartolomeu num comentário aqui abaixo]

Rita Lee e Maria Bethânia interpretam 'Baila comigo' num dos mais felizes momentos que aqui já se publicaram


16 janeiro, 2013

De olhos fechados me abandono


Olho o rio, disfarço. Faço de conta que estou a ver a ponte, que aprecio o pôr do sol, que espreito algum  navio que entre a barra. Sou especialista na arte do disfarce. 

Ela também olha quem passa, uma menina inocente, bem comportada, se for preciso sorri. Uma namorada enlevada, abraçada, feliz e eu um namorado absorto, distraído. 

E sorri mesmo e diz baixinho, bem junto ao meu pescoço, fazendo-me arrepiar, só espero que depois de tanto olhares o horizonte apareças com um poema. Disfarço, e respondo em surdina, está bem, já te mostro o poema. Ela morde-me o lóbulo da orelha, não lhe vejo o rosto mas sei que sorri, e diz, promessas.

Há uma neblina rósea, há uma maresia doce. As tardes assim vêm carregadas de desejo, anunciam noites de amor. O ar está macio, macio, e o meu coração também. Não consigo perceber onde é, ao certo, a linha do horizonte, tudo me parece difuso. Que maravilha, que bem estar.

Ao fundo uma gaivota eleva-se e desliza no meio da luz, grita, desafia o tempo, goza a quietude do fim do dia. 

Fecho os olhos. E ouço-a dizer, então, poeta, como irás conseguir pôr uma gaivota no meio da estrofe se não vês a forma como voa? E eu, ainda de olhos fechados, não vejo mas sinto.

De olhos fechados me abandono, este é o lugar mais perfeito do mundo, digo. Ela diz, já vês de olhos fechados? e eu digo, tudo é perfeito, tu és perfeita, o cheiro que vem de ti é perfeito, o teu seio quente contra o meu ombro é perfeito, a tua mão que me leva a voar é perfeita, a música do rio que passa é perfeita. Ela pára, isso é o poema? Não rima... Quase me dá vontade de rir mas digo apenas, não pares

E ela recomeça, suave, firme. Mais devagar, peço. Não, mais devagar não, gosto de ver as nascentes dos rios, gosto de ver o teu rosto quando sobre ti cai uma chuva de estrelas, gosto tanto de ti, e a sua foz enrouquece, fremente.

E eu faço-lhe a vontade. Do meu corpo nasce a semente da grande festa. 

Com um amor como o nosso a vida recomeça todos os dias.



[Abaixo do casal à beira do rio, reparo uma outra injustiça - e já temo que muitas mais esteja eu a cometer. Pela primeira vez aqui no Ginjal o poeta José Régio; e, claro, para compensar a anterior ausência, tinha que fazer uma entrada retumbante. Abaixo temos mais um momento feliz, os amigos João Gil e Luís Represas em tempo de gente amável, seja ou não sisuda]


Fim de tarde no Ginjal, o Tejo mexido


                                               Sábia talvez inconsciente,
                                               doseando com volúpia, uma ancestral sofreguidão,
                                               ali onde o desejo mais me dói, mais exigente,
                                               me acaricia a tua mão.

                                               De olhos fechados me abandono, ouvindo
                                               meu coração pulsar, meu sangue discorrer,
                                               e sob a tua mão, na asa do sonho, eis-me subindo
                                               àquele auge em que todo, em alma e corpo, vou morrer…


                                               ['Monólogo a dois' de José Régio in Filho do Homem]

*


Ah! Sede de ti
de beber teu corpo
de um trago só
navegar sonhando
no teu rio
Do teu rio 
ser o leito
e repousar
exausto
nas tuas margens
seguindo
o voo anónimo
de pássaros invisíveis
no espaço interior 
de ti
onde os rios se escondem
e o mar se inventa.

[Poema da autoria de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]

*

Escorres-me pelos sentidos
como chuva intensa de verão,
refrescando, os gemidos,
que nos provoca a paixão.

Tudo em mim és tu...

Tenho-te...
O teu corpo desenhado ao milímetro,
na polpa dos meus dedos.
O teu cheiro gravado a fogo na minha pele.
E o som dos teus desejos ecoam,
como o marulhar suve da onda que se espraia.
Depois, como o ribombar intenso do trovão.

Tenho o sabor de ti guardado em mim.


[Poema da autoria de Bartolomeu em comentário aqui abaixo]


Luis Represas e João Gil interpretam Sisudo Amável


15 janeiro, 2013

Perco-me à vista da pedra onde o mar vem largar a pele


Olho o rio já tão perto do oceano e, só de olhar, já lhe sinto o sal. Aqui mesmo, neste preciso lugar, molhei eu os meus lábios em ti, meu amor. Estavas salgado e não sei se era da maresia, se era suor, se eram lágrimas. Choravas, então, lembras-te? Impuro, impuro, dizias para ti próprio, punias-te em surdina.

Com desvelos de mãe, eu secava a água que escorria do teu corpo, meu amor, não és impuro, não és. E beijava-te, meu menino, meu amor. Mas tu não querias absolvição.

Aqui, neste recanto, numa outra noite, provei o sabor do teu corpo, ainda tu sussurravas lamentos, não contes a ninguém, não contes, jura que não contas. E eu afagava o teu cabelo e dizia, juro, juro, mas agora esquece. E tu esqueceste e foste meu, meu lindo, meu amor.

Aqui, onde o rio se agita, se espraia, se endoidece, endoideceste tu, nos meus braços, meu amor, a pele macia, o coração agitado, o corpo engalanado, e eu, meu amor, todo teu, amante de corpo e alma, corpo em festa, meu doido, meu doido, fica comigo até que a manhã desponte, fica, fica, que eu canto-te canções de embalar, fica que eu digo-te poemas de amor e saudade, fica, fica.

Mas não ficaste. Eras, sempre foste, amor de passagem, incerto companheiro. Não aceitavas o que o teu corpo te pedia, não te aceitavas o que o teu coração e a tua cabeça te diziam. Fugias. 

Foges sempre. Mesmo agora, quando te procuro e vejo nos teus olhos o amor e o desejo por mim, tu foges, foges de mim. Foges de ti. Mas sabe, meu amor, que, haja o que houver, eu espero por ti.



[Pela segunda vez aqui o poeta Luís Miguel Nava que tão bem cantou o amor junto ao mar. A seguir há mais um momento feliz, Teresa Salgueiro e José Carreras. Haja o que houver.]


Rente ao Tejo, no jardim do Ginjal


                               
                                              O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
                                              ao longo das falésias, o que sempre
                                              me traz a exaltação desses rapazes que circulam
                                              por Lisboa no verão.
                                              O mar está-lhes na pele. Partilho
                                              com eles os quartos das pensões, sentindo as ondas
                                              a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
                                              da pedra onde o mar vem largar a pele.



                                              ['Na pele' de Luís Miguel Nava in Poesia Completa 1979-1994]


*


É necessário
Domar as frases
Moldar as palavras
Para que se aproximem
Do amor que sentimos
Que queremos escrever.
As cores, as formas, 
A loucura
Como as vivemos
Como as queremos ter vivido
Como imaginámos, 
Algum dia,
Tê-las mesmo vivido
À sombra de um qualquer mar!



[Poema da autoria de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

José Carreras e Teresa Salgueiro interpretam 'Haja o que houver'


14 janeiro, 2013

O fogo já não arde como ardia dantes


Que frio que está. Um frio que me gela os ossos, um frio que sobe do rio, que atravessa o cais, que sobe pelo meu corpo. Já não sou novo, sabes disso. É um frio que vem lá muito do fundo do mar, de onde os navios naufragados repousam, de onde os deuses beijam secretas sereias. Um frio carregado de maresia. Fosse eu novo e esse frio poderia transformar-se em fogo. Ah o vigor que eu tinha. Frio que subisse pelo meu corpo logo teria efeitos de sol, de chama, de impudico beijo.

Do meu corpo nasciam flores, flores que se erguiam ao sol, flores que oferecia a quem com o olhar me oferecesse um sonho. E as mulheres vinham vê-las e eu, audacioso, dizia que se aventurassem, que as colhessem, com vagar, com amor.

Mas agora o meu corpo já não responde assim.

O meu cabelo está branco, os meus ossos cansados, e eu sento-me aqui, junto ao cais, aspiro o ar frio. E sonho. Sonho apenas. 

Olho o rio, olho um navio imponente e quem me dera embarcar, olho a outra margem e quem me dera alcançá-la e sinto o frio. Tanto, tanto frio.

Mas se o meu corpo arrefeceu, já o meu coração e a minha cabeça não.

E, então, como te disse, sento-me a sonhar.

E sonho.

Sonho que se aproxima, como se dançasse, uma mulher inventada, cabelos louros, corpo de formas generosas, um belo corpo de mulher. Olha para mim e começa a cantar baixinho. Vê tu, sonho que uma mulher me olha com um olhar em chamas e me chama. E que eu vou.

E que o meu corpo ganha força, que eu a elevo no ar, a faço rodopiar. E eu tenho outra vez vinte anos, vê tu bem, e uma mulher eleva-se nos meus braços cheios de fogo e de força. E eu abraço-a e beijo-a. E junto dançamos como se uma fogueira de paixão nos incendiasse. Dançamos, dançamos e ela não tem peso, tem asas e eu tenho um corpo sem frio, todo ele uma flor que se eleva, em chamas, em chamas, sabes lá.



[Abaixo do casal que dança na beira do rio, reparo uma falta grave. Pela primeira vez trago aqui um poeta de quem, em tempos, não perdia um poema: José Gomes Ferreira. A seguir, já que são tempos de momentos felizes, temos Jorge Palma e João Gil. Senta-te aí.]


Num cais do Ginjal, num fim de tarde, bailado rente ao Tejo


                                                                                                              (Este frio que arde nas fogueiras e no sol)

                                               O fogo já não arde
                                               como ardia dantes
                                               nos meus olhos de ter amantes.

                                               Com o frio da tarde
                                               chegou lentamente
                                               - nas ruínas do sol já sem asas de borboletas -
                                               outro frio diferente
                                               e tão fundo
                                               como se subisse
                                               dos ossos do planeta.

                                                (O frio que gera
                                                o fogo da superfície
                                                e as flores da primavera)


['O fogo já não arde' de José Gomes Ferreira in Poesia III]

*


Tropeço na memória dos teus lábios
quando eu e tu, deitados ao luar
entrelaçávamos nossos dedos ávidos
e nos amávamos longamente à beira mar

As estrelas brilhantes, polvilhavam
nossos corpos com sua luz de magia
o vento tocava-nos de mansinho
bailava-nos, com seu cheiro a maresia

E nós, ternamente apaixonados
jurámos um amor de fantasia
votos em nossos corações guardados
por tudo o que nos demos nesse dia


['Um sonho à beira-mar' de Bartolomeu num comentário aqui abaixo]

O Ginjal e Lisboa inscrito no concurso do blogue Aventar nas categorias 'Língua Portuguesa' e também em 'Livros, literatura, poesia'


Aos Leitores deste blogue que não são leitores do meu outro blogue, o Um Jeito Manso,  informo que, por sugestão de leitores que, nem sei porquê resolvi seguir, de facto inscrevi mesmo os meus blogues no concurso do blogue Aventar.

Como era possível inscrever cada um em duas categorias eu, que não sou de modas, aproveitei e inscrevi mesmo:

  • O Um Jeito Manso está em:

  1.     Actualidade Política - blogue individual  (página 1 de 4) e em
  2.     Generalistas (página 2 de 4)

  • O Ginjal e Lisboa está em:

  1.  Língua Portuguesa (a mesma que a anterior, isto é, página 2 de 4)    e em
  2.  Livros, literatura, poesia (idem, página 2 de 4)

  • Inscrevi-me ainda em Blogger do Ano e apareço duas vezes, com cada um dos blogues (página 4 de 4)


Aos poucos da minha família que sabem que tenho os blogues pedi para votarem mas não me levaram a sério, acham que não tenho hipóteses. Como mais ninguém sabe que tenho esta 'pancada', não posso fazer campanha junto de mais ninguém senão junto dos meus leitores. Por isso, se vos apetecer, já sabem onde é (e pode votar-se uma vez por dia).

[... Com este jeito para arranjar votos ainda me vou arregimentar num partido...]

Jorge Palma & João Gil interpretam 'Senta-te aí'


13 janeiro, 2013

Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras


Por aqui entram e saem, esquivos, escondendo antigos segredos, os gatos vadios. Por aqui andam também, soltas pelos ares, voando, entrando e saindo destas casas arruinadas, as gaivotas. E as palavras.

Quem aqui viveu? Quem espreitou o rio por estas janelas? 

Talvez de noite as janelas se abrissem e mulheres muito belas, muito loucas, murmurassem promessas de amor. Talvez ao largo passassem marinheiros de muitas mulheres e sorrissem, acenando lenços com palavras bordadas. Talvez que, nas noites de luar, quando a lua iluminasse o rio, uma mulher muito solitária descesse ao cais e tentasse os pescadores nocturnos. Talvez, nas secretas noites de lua nova, uma mulher de longos cabelos e corajosa nudez descesse à praia esperando que um deus do fundo do mar viesse à superfície para a amar. Talvez.

Ninguém sabe ao certo, foi há muitos anos, as casas estão gastas, cobertas de palavras que, com o tempo, se vão apagando. Quem viveu esses tempos, há muito partiu. Por isso, tudo o que se diga vem precedido da palavra talvez.

Talvez, portanto.

Dizem que, ainda agora, nas noites negras, de muito frio, de tempestade, em que apenas os ventos e os raios habitam estes lugares, as janelas se abrem e de lá de dentro ecoam cantos, lamentos. Ou uivos. Ou gritos. Os pescadores que por aqui passam dizem que é uma gaivota que se perdeu e que deste belo casario fez o seu ninho. E que chama pelas outras e que chora o seu isolamento e que grita as saudades do seu amor.

Mas sabe-se lá. Talvez. Sempre talvez.

Mas eu, quando saio à noite e voo por lá, ouço distintamente doces palavras de amor, chamamentos impúdicos, poemas desfiados em surdina. Palavras. Aqui é a casa das palavras molhadas de maresia e de amor, a casa das palavras brancas envoltas em saudade e solidão, a casa das palavras que choram a loucura e o abandono. Mas não sei se as ouço ou se sou eu que as digo. O que sei é que, quando de lá saio, volta, pesado e longo, o silêncio, um silêncio despido de palavras.



[Abaixo do belo poema de Manuel António Pina, poderão assistir a mais um momento feliz, o encontro de António Zambujo e Roberta Sá em volta de um novo amor]


Praia das Lavadeiras no Ginjal - o Tejo em toda a sua suavidade


                                        Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
                                        nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
                                        pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
                                        na ausência das palavras calar-se.

                                        Não, com nenhuma palavra abrirás a porta,
                                        nem com o silêncio, nem com nenhuma chave,
                                        a porta está fechada na palavra porta
                                        para sempre.

                                        O azul é uma refracção na boca, nunca o tocarás,
                                        nem sob ele te deitarás, nas longas tardes de Verão
                                        como quando eras música apenas
                                        sem uma casa guardando-te do mundo.


                                         ['Uma casa' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']