Dizias que os meus olhos eram a tua perdição. Olhos verdes são traição, alertava-te eu que sou leal mesmo quando anuncio traições. Mas não me ouvias. Que conhecias as minhas emoções pelos meus olhos, e eu dizia-te que não te fiasses, que sou míope e os olhos das mulheres míopes enganam muito. Dizias que pelos meus olhos conseguias perceber se eu estava longe, ou se eu te queria perto, se te desejava ou não. Olhos verdes são traição, mil vezes te avisei.
Olhos de gata, andar de gata, fugidia e arisca, terna e dengosa como uma gata. Vem, minha gata. E eu ia mas que não contasses sempre com isso, ia mas por pouco tempo, apenas para que tentasses ver o meu coração a partir dos meus olhos. Não me ouvias. Olhos verdes são cruéis como punhais, lembrava-te. Mas não me ouvias.
Os teus olhos são verdes mas ardem como fogo, e eu ria com as tuas palavras. Entusiasmado, fazias variações, fico em fogo com o verde dos teus olhos, e eu ria. Sente as labaredas no meu peito, sente, minha gata. E eu dizia miau.
Os teus olhos cheios de água, húmidos de desejo, e eu aqui à espera que me queiras, lamentavas-te. E eu dizia que não era bem assim.
Gosto tanto dos teus olhos, são um oásis verde no meio do deserto que é a minha vida, e tu não matas a minha sede. E eu ria e avisava que, com tanta conversa fiada, ainda me assanhava.
Quase vejo o fundo do mar no fundo do teu profundo olhar, e tu não me deixas mergulhar, suspiravas. Não deixo?! Mas quem é que disse?!, perguntava eu, já fervendo.
Gata, gatinha linda, gatinha de olhos de fogo, porque não apagas o fogo que me devora?, queixoso. Ai, ai, ai...! Sempre essa conversa que já me irrita!, eu já sem paciência.
Gata, gatinha linda, gatinha de olhos de fogo, porque não apagas o fogo que me devora?, queixoso. Ai, ai, ai...! Sempre essa conversa que já me irrita!, eu já sem paciência.
Até que, farta, completamente farta, te disse que se és lento no gatilho, que culpa tenho eu disso? Que se, em vez de mergulhares ou fazeres o que apregoas, preferes ficar para aí a inventar palavreado da treta, que culpa tenho eu disso?
E, altaneira, pêlo eriçado, afastei-me: gata assanhada, ora pois. E, de longe, ainda miei, e não venhas dizer que não te avisei! Gatos competentes é o que não falta.
[Nem mais. A seguir à gata vadia do Ginjal, um dos poemas-história de David Mourão-Ferreira e, logo abaixo, mais uma grande interpretação de Glenn Gould, desta vez com Prokofiev. ]
Numa praia do Ginjal, numa manhã muito fria |
É já o fogo? Apenas o rastilho?
São dois olhos de gata, ou de regato...
De qualquer modo, um verde pouco exacto.
E de fogo, ou de fonte, inquieto, o brilho.
Mas porque me inquieto e porque brilho
de terror ante o seu verde retrato?
Em que fogo, afogado, me debato?
Porque me treme o dedo no gatilho?
Agora é tarde. Agora é mais que tarde.
Não há gesto, nem arma que me guarde;
em deserto nenhum me abrigarei.
Água? Fogo? Não sei o que me invade....
Onde estavas, revólver da vontade,
quando, ao vê-la, de mim não disparei?
['Revólver' de David Mourão-Ferreira in A Arte de Amar]
*
Palavras de fogo e água
não me atrevo
elementos da natureza oiço dizer
num deles o perigo e a beleza me atormentam
no outro
afogo o primeiro até enlouquecer
[Poema de 'Era uma Vez' num comentário aqui abaixo]
*
Teus olhos
na raiz pura do Olhar
mensageiros indiscretos
dos teus silêncios.
Olhar que fala
que grita,
que chora em ti.
Tu mesmo,
mesmo sem ti.
['Mulher-gata ou gata-mulher?' de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]