Frio, muito frio e vento, um vento muito frio. Chovia e estava muito frio quando esta noite passeei na beira do rio. Quase ninguém neste local de cacilheiros que chegam e partem. Parece que as pessoas, em dias assim, ou nestes tempos de chumbo, não se deslocam. Provavelmente ficam em casa, fechadas, fechadas em salas escuras e frias, casas onde uma televisão desfia concursos e novelas para entreter o presente que deixou de caminhar em direcção ao futuro.
Atravesso o local das paragens de autocarro e quase não há autocarros a partirem e a chegarem, nem gente abrigada. Quase não há movimento. Talvez seja do frio ou talvez seja porque os mais novos voaram para outras paisagens e os mais velhos têm frio e já não saem de casa. Um dia talvez já nem saiam da cama.
A chuva caía tormentosa, o vento caía sobre mim com o peso da chuva e os navios rangiam e batiam no cais. Há qualquer coisa de pungente nestes sons doloridos que atravessam o silêncio e o vento. Estes sons dramáticos fazem-nos desejar uma trégua, uma brisa suave e inocente.
Vinha para casa, debaixo da invernia, a pensar que as ondas sobressaltadas esmagam a suave corrente do rio, destroem conchas, destroem o reflexo das estrelas na superfície negra, que não há misericórdia em noites assim.
É em momentos como estes que os cavaleiros do fundo do mar atravessam as marés, que a lua se oculta, que todas as luzes se apagam para que eles, cavaleiros negros e vitoriosos, possam passar em resfolegante tropel pelas ruas tomando todas as mulheres que encontram pelo caminho. E quando mais tarde regressam ao mar, saciados, transportando as vestes das mulheres que deixaram nuas, por terra, sabe-se que o tempo de acalmia está para breve pois, quem olhe com atenção, verá que o seu rasto anuncia uma clara suspeita de luz.
[Abaixo da fotografia de Lisboa e do Tejo, um belo poema de Frederico Lourenço e, logo abaixo, um novo momento feliz, Bernardo Sassetti com Carlos do Carmo. Esperemos, pois, pelo doce maio.]
No Ginjal, na beira do Tejo, num momento de acalmia no fim de semana passado Lisboa do outro lado envolta numa clara suspeita de luz |
Quem não diria que hoje no céu se rasgou a toada
surda da onda no mar? Chuva em bátegas cai,
chuvas marinhas desabam no cume mais alto da serra,
píncaro cego de luz - vejo oceanos sem fim!
Veio o outono e ouvi como nunca o pétreo canto:
mó de moinho no mar; pérola, concha também.
Caem relâmpagos, chuvas na ondulação das montanhas:
tempo de ir e voltar, clara suspeita da luz.
['Clara suspeita da luz.5' de Frederico Lourenço in 'Clara suspeita da luz']
Antes a chuva por companhia do que a solidão da televisão.
ResponderEliminar:(
jrd,
EliminarNão ter vontade de sair, não encontrar motivo para querer ver o mundo e ficar fechado em casa, apagando-se lentamente na companhia de concursos idiotas e novelas absurdas, é qualquer coisa que associo a uma solidão dormente, triste.
De facto, :(