Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 janeiro, 2013

Eu gostava de poder dizer que entrei no teu corpo como um pássaro


Tempos houve em que sorrias só de pensares que eu ia passar junto à tua janela. E sorrias quando te olhava, e o teu sorriso guardava segredos, malícias, cumplicidades que só eu percebia. E, quando eu te falava, tu sorrias, o coração afagado, mil palavras prestes a depositarem-se no meu colo. Eu amava-te tanto, de forma tão carinhosa, que tudo o que eu dissesse ou fizesse te enternecia. Sentias-te, então, muito amado. Um homem muito feliz, realizado no seu amor correspondido.

Adormecias a pensar em mim, dizias-me, e eu sabia que era verdade porque eu também adormecia a pensar em ti, adormecia a sorrir, enlevada, mulher muito amada.

Acordavas ansiando por estar comigo, vestias-te a pensar em mim, a minha melhor roupinha, dizias a brincar, e perfumavas-te sabendo que eu gostava de ficar com aquele perfume nas minhas mãos, no meu corpo. Sei que era verdade porque comigo acontecia o mesmo. 

Eu não queria saber quais as ruínas que tinha que atravessar para chegar até ti porque tu eras o mundo inteiro, um mundo novo. Nem tu querias saber dos caminhos, dos labirintos que te rodeavam porque o único que te interessava era simples e curto, era o que te levava até mim.

Atravessavas o rio, regressavas salgado e feliz e eu sei que era por mim que rasgavas as águas e içavas as velas.

E eu recebia-te feliz, ouvia os teus feitos de homem do mar, e, outras vezes, ouvia os teus feitos de homem da terra.

Eu vivia, então, dentro de ti e tu vivias dentro de mim.

Mas nunca fizemos promessas e sempre soubemos que todos os dias tinham no fundo de si a semente da separação. Sabíamos que nunca os deuses acordariam ao nosso lado, sabíamos que frágeis e efémeras eram as nossas horas de felicidade.

O nosso coração é agora lugar de exílio e a tua voz já não me visita nem o meu sorriso te afaga o cabelo.

Mas não faz mal: são doces, tão doces, as palavras que ambos usamos para recordar esses dias cheios de luz, cheios de amor. São, não são?


[Abaixo do pássaro que voa, mais um belo poema de Alice Vieira. Logo a seguir, um novo momento feliz: Os Azeitonas com Rui Veloso. O prometido é devido - para quem faz ou acredita em promessas.]


No Jardim do Ginjal, mesmo rente ao Tejo,
o meu amigo pássaro preto de bico amarelo levanta voo, vai à sua vida
- Assim é a vida dos pássaros -



                                               eu gostava de poder dizer
                                               que entrei no teu corpo como um pássaro
                                               espreitando de invisíveis ruínas
                                               e que o som da tua voz bastava
                                               para me salvar

                                               mas de nada serve inventar palavras
                                               quando as palavras que inventamos
                                               não passam de frágeis lugares de exílio
                                               dos gestos inventados fora de horas
                                               delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
                                               de que jurámos ressuscitar um dia

                                               — quando os deuses se lembrassem
                                               de acordar ao nosso lado



[Poema, 'Amor e outros crimes em vias de perdão, 2' de Alice Vieira in 'Dois Corpos tombando na água']



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