Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 janeiro, 2013

Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras


Por aqui entram e saem, esquivos, escondendo antigos segredos, os gatos vadios. Por aqui andam também, soltas pelos ares, voando, entrando e saindo destas casas arruinadas, as gaivotas. E as palavras.

Quem aqui viveu? Quem espreitou o rio por estas janelas? 

Talvez de noite as janelas se abrissem e mulheres muito belas, muito loucas, murmurassem promessas de amor. Talvez ao largo passassem marinheiros de muitas mulheres e sorrissem, acenando lenços com palavras bordadas. Talvez que, nas noites de luar, quando a lua iluminasse o rio, uma mulher muito solitária descesse ao cais e tentasse os pescadores nocturnos. Talvez, nas secretas noites de lua nova, uma mulher de longos cabelos e corajosa nudez descesse à praia esperando que um deus do fundo do mar viesse à superfície para a amar. Talvez.

Ninguém sabe ao certo, foi há muitos anos, as casas estão gastas, cobertas de palavras que, com o tempo, se vão apagando. Quem viveu esses tempos, há muito partiu. Por isso, tudo o que se diga vem precedido da palavra talvez.

Talvez, portanto.

Dizem que, ainda agora, nas noites negras, de muito frio, de tempestade, em que apenas os ventos e os raios habitam estes lugares, as janelas se abrem e de lá de dentro ecoam cantos, lamentos. Ou uivos. Ou gritos. Os pescadores que por aqui passam dizem que é uma gaivota que se perdeu e que deste belo casario fez o seu ninho. E que chama pelas outras e que chora o seu isolamento e que grita as saudades do seu amor.

Mas sabe-se lá. Talvez. Sempre talvez.

Mas eu, quando saio à noite e voo por lá, ouço distintamente doces palavras de amor, chamamentos impúdicos, poemas desfiados em surdina. Palavras. Aqui é a casa das palavras molhadas de maresia e de amor, a casa das palavras brancas envoltas em saudade e solidão, a casa das palavras que choram a loucura e o abandono. Mas não sei se as ouço ou se sou eu que as digo. O que sei é que, quando de lá saio, volta, pesado e longo, o silêncio, um silêncio despido de palavras.



[Abaixo do belo poema de Manuel António Pina, poderão assistir a mais um momento feliz, o encontro de António Zambujo e Roberta Sá em volta de um novo amor]


Praia das Lavadeiras no Ginjal - o Tejo em toda a sua suavidade


                                        Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
                                        nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
                                        pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
                                        na ausência das palavras calar-se.

                                        Não, com nenhuma palavra abrirás a porta,
                                        nem com o silêncio, nem com nenhuma chave,
                                        a porta está fechada na palavra porta
                                        para sempre.

                                        O azul é uma refracção na boca, nunca o tocarás,
                                        nem sob ele te deitarás, nas longas tardes de Verão
                                        como quando eras música apenas
                                        sem uma casa guardando-te do mundo.


                                         ['Uma casa' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']


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