Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

16 janeiro, 2013

De olhos fechados me abandono


Olho o rio, disfarço. Faço de conta que estou a ver a ponte, que aprecio o pôr do sol, que espreito algum  navio que entre a barra. Sou especialista na arte do disfarce. 

Ela também olha quem passa, uma menina inocente, bem comportada, se for preciso sorri. Uma namorada enlevada, abraçada, feliz e eu um namorado absorto, distraído. 

E sorri mesmo e diz baixinho, bem junto ao meu pescoço, fazendo-me arrepiar, só espero que depois de tanto olhares o horizonte apareças com um poema. Disfarço, e respondo em surdina, está bem, já te mostro o poema. Ela morde-me o lóbulo da orelha, não lhe vejo o rosto mas sei que sorri, e diz, promessas.

Há uma neblina rósea, há uma maresia doce. As tardes assim vêm carregadas de desejo, anunciam noites de amor. O ar está macio, macio, e o meu coração também. Não consigo perceber onde é, ao certo, a linha do horizonte, tudo me parece difuso. Que maravilha, que bem estar.

Ao fundo uma gaivota eleva-se e desliza no meio da luz, grita, desafia o tempo, goza a quietude do fim do dia. 

Fecho os olhos. E ouço-a dizer, então, poeta, como irás conseguir pôr uma gaivota no meio da estrofe se não vês a forma como voa? E eu, ainda de olhos fechados, não vejo mas sinto.

De olhos fechados me abandono, este é o lugar mais perfeito do mundo, digo. Ela diz, já vês de olhos fechados? e eu digo, tudo é perfeito, tu és perfeita, o cheiro que vem de ti é perfeito, o teu seio quente contra o meu ombro é perfeito, a tua mão que me leva a voar é perfeita, a música do rio que passa é perfeita. Ela pára, isso é o poema? Não rima... Quase me dá vontade de rir mas digo apenas, não pares

E ela recomeça, suave, firme. Mais devagar, peço. Não, mais devagar não, gosto de ver as nascentes dos rios, gosto de ver o teu rosto quando sobre ti cai uma chuva de estrelas, gosto tanto de ti, e a sua foz enrouquece, fremente.

E eu faço-lhe a vontade. Do meu corpo nasce a semente da grande festa. 

Com um amor como o nosso a vida recomeça todos os dias.



[Abaixo do casal à beira do rio, reparo uma outra injustiça - e já temo que muitas mais esteja eu a cometer. Pela primeira vez aqui no Ginjal o poeta José Régio; e, claro, para compensar a anterior ausência, tinha que fazer uma entrada retumbante. Abaixo temos mais um momento feliz, os amigos João Gil e Luís Represas em tempo de gente amável, seja ou não sisuda]


Fim de tarde no Ginjal, o Tejo mexido


                                               Sábia talvez inconsciente,
                                               doseando com volúpia, uma ancestral sofreguidão,
                                               ali onde o desejo mais me dói, mais exigente,
                                               me acaricia a tua mão.

                                               De olhos fechados me abandono, ouvindo
                                               meu coração pulsar, meu sangue discorrer,
                                               e sob a tua mão, na asa do sonho, eis-me subindo
                                               àquele auge em que todo, em alma e corpo, vou morrer…


                                               ['Monólogo a dois' de José Régio in Filho do Homem]

*


Ah! Sede de ti
de beber teu corpo
de um trago só
navegar sonhando
no teu rio
Do teu rio 
ser o leito
e repousar
exausto
nas tuas margens
seguindo
o voo anónimo
de pássaros invisíveis
no espaço interior 
de ti
onde os rios se escondem
e o mar se inventa.

[Poema da autoria de Joaquim Castilho em comentário aqui abaixo]

*

Escorres-me pelos sentidos
como chuva intensa de verão,
refrescando, os gemidos,
que nos provoca a paixão.

Tudo em mim és tu...

Tenho-te...
O teu corpo desenhado ao milímetro,
na polpa dos meus dedos.
O teu cheiro gravado a fogo na minha pele.
E o som dos teus desejos ecoam,
como o marulhar suve da onda que se espraia.
Depois, como o ribombar intenso do trovão.

Tenho o sabor de ti guardado em mim.


[Poema da autoria de Bartolomeu em comentário aqui abaixo]


6 comentários:

  1. Olá UJM!

    Bolinha vermelha por bolinha vermelha aí vai uma resposta/comentário:


    Ah! Sede de ti
    De beber teu corpo
    De um trago só
    Navegar sonhando
    No teu rio
    Do teu rio
    Ser o leito
    E repousar
    Exausto
    Nas tuas margens
    Seguindo
    O voo anónimo
    De pássaros invisíveis
    No espaço interior
    De ti
    Onde os rios se escondem
    E o mar se inventa.

    um abraço

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    1. Olá Joaquim,

      E é que não é isto mesmo...? Grande baú que tão belos poemas guarda e rapidamente ajeitados, de tal modo que todos assentam como uma luva ao ambiente em que vêm pousar.

      Já lá está no sítio devido.

      Muito obrigada!

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  2. Escorres-me pelos sentidos
    como chuva intensa de verão,
    refrescando, os gemidos,
    que nos provoca a paixão.

    Tudo em mim és tu...

    Tenho-te...
    O teu corpo desenhado ao milímetro,
    na polpa dos meus dedos.
    O teu cheiro gravado a fogo na minha pele.
    E o som dos teus desejos ecoam,
    como o marulhar suve da onda que se espraia.
    Depois, como o ribombar intenso do trovão.

    Tenho o sabor de ti guardado em mim.
    ;)
    (D'El-Bartolomeu)

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    Respostas
    1. Olá Bartolomeu,

      Dos céus, de uma certa passarola, desceu devagar, palavra a palavra, um poema muito bonito que trazia consigo algumas das palavras que eu tinha deixado voar. Gostei muito.

      Já lá está em cima. Muito obrigada!

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  3. fortemente erótico o poema de josé régio, belissimo poema aliás, e é poeticamente correcto que o poeta de vila do conde e de portalegre aqui figure, no ginjal e lisboa.
    é bom voltar a estes poetas por vezes um pouco esquecidos, de régio basta p.ex. ler o cantico negro para ver que ele atinge aí o nivel dum alvaro de campos.

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  4. Olá Patrício,

    Foi dos primeiros livros de poesia que tive como meus. Tenho-os aqui comigo com a data escrita. Andava no liceu. A minha mãe sabendo que eu gostava de poesia e dele em particular ofereceu-me pelo Natal dois livros dele. Não seriam muito indicados para a jovem que eu era, talvez uns 15 anos, nem sei bem, mas a minha mãe, por essa altura, já tinha desistido de me orientar na escolha das leituras.

    É um grande poeta mas parece que passou de moda. A ver se, por aqui, vou tentando reparar esse mal (na fraca medida das minhas possibilidades, é certo).

    Muito obrigada pelas suas observações, sempre tão pertinentes.

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