Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 janeiro, 2013

O fogo já não arde como ardia dantes


Que frio que está. Um frio que me gela os ossos, um frio que sobe do rio, que atravessa o cais, que sobe pelo meu corpo. Já não sou novo, sabes disso. É um frio que vem lá muito do fundo do mar, de onde os navios naufragados repousam, de onde os deuses beijam secretas sereias. Um frio carregado de maresia. Fosse eu novo e esse frio poderia transformar-se em fogo. Ah o vigor que eu tinha. Frio que subisse pelo meu corpo logo teria efeitos de sol, de chama, de impudico beijo.

Do meu corpo nasciam flores, flores que se erguiam ao sol, flores que oferecia a quem com o olhar me oferecesse um sonho. E as mulheres vinham vê-las e eu, audacioso, dizia que se aventurassem, que as colhessem, com vagar, com amor.

Mas agora o meu corpo já não responde assim.

O meu cabelo está branco, os meus ossos cansados, e eu sento-me aqui, junto ao cais, aspiro o ar frio. E sonho. Sonho apenas. 

Olho o rio, olho um navio imponente e quem me dera embarcar, olho a outra margem e quem me dera alcançá-la e sinto o frio. Tanto, tanto frio.

Mas se o meu corpo arrefeceu, já o meu coração e a minha cabeça não.

E, então, como te disse, sento-me a sonhar.

E sonho.

Sonho que se aproxima, como se dançasse, uma mulher inventada, cabelos louros, corpo de formas generosas, um belo corpo de mulher. Olha para mim e começa a cantar baixinho. Vê tu, sonho que uma mulher me olha com um olhar em chamas e me chama. E que eu vou.

E que o meu corpo ganha força, que eu a elevo no ar, a faço rodopiar. E eu tenho outra vez vinte anos, vê tu bem, e uma mulher eleva-se nos meus braços cheios de fogo e de força. E eu abraço-a e beijo-a. E junto dançamos como se uma fogueira de paixão nos incendiasse. Dançamos, dançamos e ela não tem peso, tem asas e eu tenho um corpo sem frio, todo ele uma flor que se eleva, em chamas, em chamas, sabes lá.



[Abaixo do casal que dança na beira do rio, reparo uma falta grave. Pela primeira vez trago aqui um poeta de quem, em tempos, não perdia um poema: José Gomes Ferreira. A seguir, já que são tempos de momentos felizes, temos Jorge Palma e João Gil. Senta-te aí.]


Num cais do Ginjal, num fim de tarde, bailado rente ao Tejo


                                                                                                              (Este frio que arde nas fogueiras e no sol)

                                               O fogo já não arde
                                               como ardia dantes
                                               nos meus olhos de ter amantes.

                                               Com o frio da tarde
                                               chegou lentamente
                                               - nas ruínas do sol já sem asas de borboletas -
                                               outro frio diferente
                                               e tão fundo
                                               como se subisse
                                               dos ossos do planeta.

                                                (O frio que gera
                                                o fogo da superfície
                                                e as flores da primavera)


['O fogo já não arde' de José Gomes Ferreira in Poesia III]

*


Tropeço na memória dos teus lábios
quando eu e tu, deitados ao luar
entrelaçávamos nossos dedos ávidos
e nos amávamos longamente à beira mar

As estrelas brilhantes, polvilhavam
nossos corpos com sua luz de magia
o vento tocava-nos de mansinho
bailava-nos, com seu cheiro a maresia

E nós, ternamente apaixonados
jurámos um amor de fantasia
votos em nossos corações guardados
por tudo o que nos demos nesse dia


['Um sonho à beira-mar' de Bartolomeu num comentário aqui abaixo]

6 comentários:

  1. http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2012/06/no-cafe-com-o-grande-poeta.html

    O meu poeta!

    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Já lá estive a ver. Justas e devidas homenagens todas as que fizermos a José Gomes Ferreira.

      Obrigada.

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  2. Olá UJM!

    Porque será que, nos meios literários e mesmo nas "media", já ninguém se refere a esse grande poeta que foi e é José Gomes Ferreira???
    Obrigada UJM por recordá-lo no seu Ginjal!

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    1. Olá Joaquim,

      Não sei porquê mas saíu de cena. E eu própria, que já aqui coloquei tantos e tantos poetas, também me tinha esquecido. Imperdoável. E tanto, tanto, que eu acompanhava e gostava da poesia dele. A ver se vou reparando.

      E obrigada eu por manifestar o seu agrado.

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  3. "Um sonho à beira-mar"

    Tropeço na memória dos teus lábios

    Quando eu e tu, deitados ao luar

    Entrelaçávamos nossos dedos ávidos

    E nos amávamos longamente à beira mar




    As estrelas brilhantes, polvilhavam

    Nossos corpos com sua luz de magia

    O vento tocava-nos de mansinho

    Bailava-nos, com seu cheiro a maresia




    E nós, ternamente apaixonados

    Jurámos um amor de fantasia

    Votos em nossos corações guardados

    Por tudo o que nos demos nesse dia

    (do Bartolomeu)
    ;)

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    1. Oh Bartolomeu, muito obrigada,

      Tão bonito. Gostei muito. Gosto tanto de dizer que das palavras nascem palavras - e é mesmo verdade.

      O poema já está lá em cima, onde merece estar.

      Muito obrigada mais uma vez.

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